Em xeque: o direito de arena no xadrez
por Pedro Marcos Nunes Barbosa e Adriano Saldanha Gomes de Oliveira
Com as densas transformações nas categorias de sujeito de direito, objeto e fato jurídico vividas desde 1988, o mundo do streaming e do desporto poderá proporcionar um convívio saudável de atletas que combinem habilidades de dois dos protagonistas mais famosos da Ilíada e da Odisseia.
Uma narrativa romantizada da história desportiva costuma situar a origem das disputas competitivas no ambiente da polis grega. Como paradigmas da superação dos limites humanos de uma determinada era, os esportes eram contrastados pela habilidade predominante exigida: mira, destreza, fôlego, resiliência, força, celeridade, distância ou altura – em síntese, virtudes do corpo. Neste quadrante helênico, a figura mitológica de Aquiles seria o ‘referencial maior’ aos contendentes e postulantes. Ao passar dos séculos, o modelo mecânico de pujança corporal se espraiou para esportes coletivos, além de ser objeto de fortes transformações em diálogo com diversas tecnologias para aprimoramento dos desempenhos individuais. A ciência, a estatística, materiais e ferramentas mais eficazes, e o estudo do rendimento alheio, tudo isto passou a ser rotina de quem, profissionalmente, precisa superar o próprio desempenho.
A despeito de tal tradição, o conceito do que seja esporte foi – paulatinamente – sendo objeto de transformações includentes, resultando, por exemplo, no significativo aumento da quantidade de modalidades inseridas nos Jogos Olímpicos.
Assim, em 1896, nos jogos da 1ª edição do que alguns chamam de “era moderna”, em Atenas, Grécia, foram oferecidas 43 medalhas de ouro para conquista, contra as 339 disputadas na sua 32ª edição, em 2021, em Tóquio, Japão.
Além da invenção de formas desportivas até então inexistentes, houve – também – o reconhecimento de vetustas modalidades d’antes vistas como jogos, danças e desafios não desportivos. Essa hipertrofia de novas formas culturais-desportivas acaba por dissipar o predomínio absoluto da virtude corporal, por reduzir a relevância da juventude perante a senioridade, por minimizar supostas diferenças de gênero no rendimento atlético, e por equilibrar a plástica mecânica-muscular com outra espécie de característica humana: o intelecto. No modelo desportivo do século XXI, Aquiles teria um rival à altura: Ulísses.
A acreditação de uma prática cultural como esporte gera consequências capitalistas e sociais: maximização do interesse do público-destinatário, formação de fã-clubes e torcidas, cobertura da mídia, campeonatos internacionais e, claro, muita lucratividade1. A profissionalização da práxis costuma atrair a monopolização do exercício dos praticantes que, durante a fase amadora, cumulavam tarefas de pouca ou nenhuma vinculação (ex: horas do dia na confeitaria com um período vespertino na capoeira).
O Comitê Olímpico Internacional reconhece o xadrez como esporte, embora não participante dos Jogos, quer de verão, quer de inverno, ao lado de outros ausentes famosos, como o bridge, o críquete, a sinuca, o futebol americano, o montanhismo e o automobilismo. Tal aspiração do xadrez, porém, é antiga, tendo estado próximo de integrar as 8ª e 27ª edições dos Jogos Olímpicos, Paris 1924, e Sidney 2000. Em paralelo, o xadrez ostente, talvez, a condição de único esporte com forte tradição na organização, de forma independente, de uma competição internacional onde os jogadores atuam na representação de seus países, e sob a denominação de Olimpíadas, desde 1927; competição esta com periodicidade bienal a partir de 1950. Por sinal, em virtude disto, o Comitê Olímpico Brasileiro há anos dedica um de seus diretórios à informação e regulação dos atletas enxadristas2.
Hoje, portanto, quando a Federação Internacional de Xadrez3 elenca tal tradicional jogo como uma modalidade desportiva, não há dúvida que seu bem sedimentado status atrai consequências jurídicas. Por exemplo: (a) apenas a União, Estados e Distrito Federal poderiam legislar4 sobre o tema (art. 24, IX, da CRFB); e (b) torna-se papel das políticas públicas fomentarem o seu mister (art. 217 da CRFB). Ou seja, a práxis passa a receber uma incidência jurídica (fato jurídico lato sensu) que antes não era merecedora de tutela (fato social) quanto a uma série de aspectos legais.
Isto não significa dizer, todavia, que uma vez reconhecido como esporte5, rapidamente passaremos a assistir duelos animados de enxadristas comentados pelas transmissões televisivas hegemônicas de quatro em quatro anos durante as Olimpíadas de verão (evento COI), ou de dois em dois anos durante as Olimpíadas de Xadrez (evento FIDE). Porém, é possível que um dia se revele a inclusão deste esporte como integrante do rol6 taxativo dos desportos olímpicos. Quiçá este desporto que, antes de ser deificado na Caíssa do renascentista italiano Marco Girolamo Vida, contrasta a força e coragem de Aquiles a astúcia e inteligência de Odisseu, seja pioneiro em promover uma final olímpica abolicionista da divisão em gêneros (Olimpíadas e Paraolimpíadas) e de fito transgeracional, entre um infante e um idoso.
Para que se compreenda a relevância hermenêutica da atribuição da prática enxadrista como esporte perante o Direito pátrio, imagine-se o seguinte recorte temporal: (a) no hiato pre-reconhecimento desportivo, se alguém transmitisse uma partida de xadrez para o grande público os seguintes fatos jurídicos incidiriam – (a1) os valores da personalidade7 dos disputantes (voz e fenótipo pelo direito à imagem8), (a2) os direitos conexos (art. 5º, II e III, XII, e 95 da lei 9.610/98) da emissora autorizada a transmitir o evento, e (a3) porventura os sinais distintivos que distinguem os patrocinadores do evento (art. 129, da lei 9.279/96) de seus concorrentes. E (b) no período pós-reconhecimento desportivo, além da harmonização da gama de direitos descrita em (a1), (a2) e (a3) a incidência dos (b) direitos de Arena9 (art. 42-A da lei 14.205/21) em favor da entidade organizadora10, ainda que venha a ser objeto da partilha dos benefícios com os esportistas, e sem qualquer prejuízo de eventual vinculação laboral dos últimos11.
A complementação de direitos intelectuais de índole patrimonial e existencial na prática enxadrista não significa, contudo, enclaustramento e cerceamento informacional. Por exemplo, não há que se falar (i) em direito do autor sobre jogadas, independentemente do grau de originalidade empregada pelo atleta, para evitar a apropriação privada do domínio público, além da incidência do art. 8, I, II e IV, da lei 9.610/98. Isto seria, mutatis mutandi, a arrogação de que apenas Didi poderia consentir o emprego da folha-seca no futebol, ou de que Tom Schaar12 precisaria autorizar outro skatista a executar o 1080º; ou (ii) em cercear que terceiros, concessionários autorizados pela entidade organizadora ou não, informem ao público através de representações gráficas (tabuleiro eletrônico) ou puramente informacionais (Bispo na casa D5) sincrônicas o que ocorre nos torneios. Desde que não se capte o fenótipo dos jogadores, estar-se-ia apenas prestigiando a máxima liberdade de acesso à informação (art. 46, I, ‘a’ da lei 9.610/98 e art. 5º, XIV da CRFB) e do labor da imprensa.
Com as densas transformações nas categorias de sujeito de direito, objeto e fato jurídico vividas desde 1988, o mundo do streaming e do desporto poderá proporcionar um convívio saudável de atletas que combinem habilidades de dois dos protagonistas mais famosos da Ilíada e da Odisseia. Revoluções ainda mais complexas ocorrerão no ambiente da regulação dos chamados e-sports, com o diálogo das categorias jurídicas supra citadas para além dos programas de computador (lei 9.609/98), mas este é um diálogo para outro dia.
1 “É a raridade simbólica do título no espaço dos nomes de profissão que tende a comandar a retribuição da profissão (e não a relação entre a oferta e a procura de uma certa forma de trabalho): segue-se daqui que a retribuição do título tende a tornar-se autónoma em relação à retribuição do trabalho. Assim, o mesmo trabalho pode ter remunerações diferentes, conforme os títulos daquele que o exerce (titular/interino; titular/em exercício, etc.). Dado que o título é em si mesmo uma instituição (como a língua) mais duradoira que as características intrínsecas do trabalho, a retribuição do título pode manter-se apesar das transformações do trabalho e do seu valor relativo: não é o valor relativo do trabalho que determina o valor do nome, mas o valor institucionalizado do título que serve de instrumento o qual permite que se defenda e se mantenha o valor do trabalho” BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 15ª Ed, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 149.
2 https://www.cob.org.br/pt/cob/documentos/antidoping/aut–autorizacoes-de-uso-terapeutico/atletas-internacionais-aut/federacao-internacional-de-xadrez-fide-aut
3 https://www.fide.com/fide/about-fide: em tradução livre – “A Federação Internacional de Xadrez – FIDE – é o corpo dirigente do esporte do Xadrez (…)”.
4 “Algumas regras não apenas regulam mas também constituem, ou tornam possível, a forma de atividade que regulam. O exemplo clássico são as regras de xadrez. As pessoas não estavam simplesmente empurrando pedaços de madeira em cima de um tabuleiro até que alguém finalmente disse: “Para evitar que fiquemos esbarrando um no outro, precisamos de algumas regras.” As regras do xadrez não são como as regras de trânsito. Pelo contrário, a própria possibilidade de jogar xadrez depende da existência das regras de xadrez, porque jogar xadrez é agir de acordo com pelo menos um determinado conjunto considerável de regras de xadrez. Chamo tais regras de “regras constitutivas”, porque agir de acordo com as regras constitui a atividade regulada por elas. Regras constitutivas também regulam, mas fazem mais do que regular; elas constituem a própria atividade que regulam da maneira que sugeri. A distinção entre fatos brutos e fatos institucionais, como argumentei e continuarei a argumentar aqui, só pode ser totalmente explicada em lermos de regras constitutivas” SEARLE, John R. Mente, Linguagem e Sociedade. Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000, p. 115.
5 Vale uma objetiva menção a proposta legiferante pertinente: depois de aprovação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania o Projeto de Lei 5.840/2016 que atribui ao Xadrez, Damas, Pôquer, Bridge e Go como “esportes da mente” aguarda apreciação do Senado Federal.
6 https://olympics.com/pt/esportes/
7 “A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. O fato de a personalidade ser considerada como valor unitário, tendencialmente sem limitações, não impede que o ordenamento preveja, autonomamente, algumas expressões mais qualificantes como, por exemplo, o direito à saúde” PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 155.
8 “Apesar de ser um direito de personalidade, o direito de imagem apresenta, por um lado, um conteúdo “positivo” enquanto direito a difundir a própria imagem, permitindo a publicação da respectiva imagem, e ainda um conteúdo “negativo” que impede e evita a captação e reprodução não autorizada por terceiros da imagem do respectivo titular daquele direito” CARVALHOSA, Sofia de Barros e. O Direito de Imagem do Praticante Desportivo Profissional. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 57.
9 Na clássica conceituação da boa doutrina paulista: “podemos definir o direito de arena como a prerrogativa que compete ao esportista de impedir que terceiros venham, sem autorização, divulgar tomadas de sua imagem ao participar de competição, ressalvados os casos expressamente previstos em lei” CHAVES, Antonio. Direito de Arena. São Paulo: Julex Livros, 1988, p. 15.
10 “For federations, this is a way of benefiting, whether it is from merchandising or just for publicizing themselves. Federation are in an ideal position to exploit and pool together image rights; they can simply have one template assignment or license, have it signed by every player and then sell on to third parties, or use the rights for their own merchandising or other commercial purposes” WHITE, Nick. Sports Image Rights. In. WERRA, Jacques de. Sport et Propriété Intellectuelle. Genebra: L.G.D.J, 2010, p. 76.
11 “Do texto mencionado – como já dito, o precursor do entendimento atual do artigo 42 da Lei 9.615/98 -, compreende-se com muita clareza que tal direito deve ser entendido como um plus à remuneração ajustada entre atleta profissional e entidade de prática desportiva, sem que repercuta ou reflita nas parecelas de índole eminentemente salarial” CAPUTO BASTOS, Guilherme Augusto. Direito Desportimo. Brasília: Alumnus 2014, p. 74.
12 https://blogs.oglobo.globo.com/radicais/post/bob-burnquist-sobre-1080-fiquei-impressionado-440024.html
Atualizado em: 10/2/2022 08:40
Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.
Adriano Saldanha Gomes de Oliveira
Juiz Federal. Mestre em Direito pela UERJ.
Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/359433/em-xeque-o-direito-de-arena-no-xadrez
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Parabéns aos articulistas, necessário pensar, para além do que será posto pela organização de novos torneios através de plataformas virtuais, os desdobramentos jurídicos destas situações. Aguardo novos textos sobre os e-sports!!