Salvio Kotter
Salvio Kotter passou por formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudita, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.
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Lawfare na Pau Oco, a Lava Jato de Rondônia, por Salvio Kotter

Inquérito instaurado por delegados de Rondônia, liderados por Júlio César de Sousa Ferreira, vem mostrando instrumentalização política

Foto: Reprodução/ Rede Amazônica

Lawfare na Pau Oco, a Lava Jato de Rondônia

por Salvio Kotter

Conflito de Interesses na Operação Pau Oco expõe lawfare

A Operação Pau Oco, deflagrada para combater supostos esquemas de corrupção ambiental em Rondônia por meio da liberação de madeira ilegal pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado, cujo inquérito foi instaurado por delegados da polícia civil de Rondônia, liderados por Júlio César de Sousa Ferreira, vem mostrando que não passou de conflito de interesses e instrumentalização política do sistema de justiça naquele Estado.

Documentos e registros oficiais revelam vínculos estreitos entre agentes públicos responsáveis pela operação e o gabinete do deputado estadual Delegado Camargo (PL-RO), sugerindo que a iniciativa jurídica pode ter sido aparelhada como plataforma de promoção política.

As ligações abrangem desde a magistrada que conduz as ações penais até o delegado de polícia encarregado das investigações – ambos conectados profissional ou familiarmente ao círculo de confiança do parlamentar.

A seguir, investigamos esses laços e suas implicações, contextualizando o caso no legado da Operação Lava Jato e na perspectiva do lawfare (uso estratégico da lei para fins de perseguição política).

Conexões entre juíza, delegado e o gabinete de Delegado Camargo

O primeiro dado alarmante é a relação pessoal envolvendo a juíza Roberta Cristina Garcia Macedo, responsável pelos processos judiciais da Operação Pau Oco na 1ª Vara Criminal da comarca de Porto Velho.

Roberta é casada com Ronei Antonio Giordani Filho, servidor comissionado na Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, atualmente atuando como chefe de gabinete-adjunto do deputado Delegado Camargo.

Em outras palavras, o cônjuge da magistrada trabalha diretamente sob a influência política do principal interessado em capitalizar os resultados da operação, o delegado Júlio César.

Um registro civil oficial comprova o vínculo matrimonial entre Roberta e Ronei Giordani, evidenciando a coincidência inquietante: a juíza que julga a Pau Oco é esposa de um colega de trabalho do delgado que apurou os fatos denunciados.

Tal cenário, per se, já suscita amplas dúvidas sobre a imparcialidade judicial e levanta questionamentos sobre eventual conflito de interesses.

A situação se agrava ao mapearmos também as ligações do núcleo policial da Operação Pau Oco com o mesmo gabinete parlamentar.

O delegado de polícia Júlio César, que chefiou parte das investigações da Pau Oco (quando à frente da DRACO II – Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), posteriormente passou a ocupar cargo de confiança como chefe de gabinete do deputado Delegado Camargo.

Conforme dados do Portal da Transparência da ALE-RO, Júlio César foi nomeado chefe de gabinete do parlamentar em fevereiro de 2023, pouco após o início do mandato, com salário-base de R$ 20,9 mil.

Trata-se de uma movimentação altamente incomum: um delegado de polícia envolvido numa operação de grande envergadura migrar diretamente para o staff particular de um político.

Os laços não terminam aí. A esposa de Júlio César, Renata Miranda de Lima, também figurou na folha de pagamento do gabinete de Dep. Delegado Camargo. Renata foi nomeada em 05/05/2023 como assessora técnica no gabinete do deputado. Assim, marido e esposa (delegado Júlio César e a advogada Renata) e o esposo da juíza (Ronei Giordani) trabalham juntos no gabinete do deputado Camargo.

Essas coincidências desenham um quadro preocupante: a mesma rede de pessoas transitou entre os papéis de acusadores, julgadores e assessores políticos, todos orbitando em torno de um único núcleo de poder.

A juíza que que julgará a ação penal fruto da investigação feita pelo delegado Júlio César tem em casa um assessor do líder político que brada contra os alvos da operação; o delegado que investigou os suspeitos foi acolhido – ele e sua esposa – na equipe do mesmo político.

Tais fatos sugerem forte aparelhamento da máquina investigativa-judicial em prol de agenda política, bem como indícios de que a Operação Pau Oco possa ter sido (e diante de tantos fatos fica muito difícil acreditar no contrário) usada como trampolim midiático para o Delegado Júlio César se projetar como paladino anticorrupção, numa estratégia reminiscente à da Lava Jato em âmbito nacional.

Manipulação de provas e uso político da Justiça

As suspeitas de desvio de finalidade na Operação Pau Oco não se baseiam apenas em vínculos pessoais – elas encontram respaldo em episódios concretos de irregularidades investigativas.

Uma das fases da operação foi sustentada por provas questionáveis, a ponto de envolver possível fabricação de evidências.

Em outubro de 2019, veio à tona a denúncia de que a Polícia Civil de Rondônia teria alterado nos autos da Pau Oco a transcrição de um áudio, atribuindo a um investigado um diálogo que, de fato, nunca ocorreu.

O áudio verdadeiro constante do processo não correspondia à transcrição apresentada pelas autoridades policiais, que teria sido forjada para incriminar terceiros.

Esse falso diálogo, segundo advogados, foi usado indevidamente para envolver o ex-governador Daniel Pereira nas investigações, levando um desembargador a autorizar prorrogação de prisões e novas buscas com base nessa prova fabricada e, os envolvidos indevidamente no áudio transcrito, foram presos por mais de trinta dias, nas masmorras no presídio Urso Branco, um dos mais violentos do país.

A fraude quanto ao áudio editado foi tornada pública pelo próprio delegado Júlio César, em um grupo de whatsapp formado por agentes da polícia civil e delegados da Draco II, além de membros do Ministério Público e inclusive uma assessora do então Desembargador Marins, então relator do inquérito no Tribunal de Justiça de Rondônia.

O delegado Júlio, de forma desesperada, alertou que a transcrição “não condiz com o áudio do CD anexado”, caracterizando que “em tese estamos induzindo o magistrado sobre a existência de uma organização criminosa”.

A repercussão foi imediata. O delegado Júlio César de Souza Ferreira – então responsável pelo inquérito na DRACO II – foi afastado da Operação Pau Oco juntamente com outros dois delegados, após esse e outros escândalos virem à tona.

De herói do combate ao crime, Júlio César passou a acusado: comentava-se nos bastidores sua possível demissão da Polícia Civil e responsabilização pelo abuso de autoridade, inclusive com cobrança de ressarcimento de diárias indevidas recebidas durante a operação.

Em síntese, a credibilidade da Pau Oco ficou, para sermos educados, seriamente abalada, com indícios de que foi conduzida de maneira temerária para atingir alvos pré-determinados – prática que se assemelha às acusações de lawfare feitas contra a Operação Lava Jato (na qual provas de conveniência teriam sido produzidas ou manipuladas visando fins políticos).

É nesse contexto de descrédito investigativo que ganham relevância as relações pessoais descritas anteriormente.

Se já havia sinais de fabricação de provas para direcionar a Pau Oco contra certas figuras públicas, o fato de autoridades policiais e judiciais envolvidas manterem vínculos com um ator político agrava a suspeita de que a operação serviu de instrumento de promoção política.

O benefício político conseguido pelo delegado é tangível: Júlio César, após a nomeação na ALE-RO, chegou a lançar-se candidato a prefeito, intitulando-se “Delegado Júlio César” e filiando-se a partido político, apoiado justamente na notoriedade adquirida em operações que conduziu e em suas alianças.

Em suma, há (no mínimo) fortes indícios de que o sistema de justiça foi instrumentalizado em Rondônia, tal qual se denunciou em âmbito federal na época da Lava Jato, mesclando interesses judiciais e políticos de forma promiscua.

Do legado da Lava Jato às implicações legais do caso

A Operação Pau Oco, tudo leva a crer, replicou em escala regional a mesma lógica da Lava Jato: um consórcio de agentes públicos que conduzem investigação e julgamento de maneira espetacularizada, enredados com interesses políticos locais e externos.

Durante a força-tarefa da Lava Jato, também vimos procuradores e juízes que agiam coordenadamente – conforme revelado nas mensagens da “Vaza Jato” – mirando adversários específicos e catapultando suas próprias carreiras públicas.

O resultado, hoje reconhecido pelos mais diversos estudos, foi desastroso para o país: sob o pretexto de combater a corrupção, a Lava Jato devastou setores estratégicos da economia brasileira, como construção pesada, indústria naval e de petróleo. As maiores empreiteiras nacionais perderam grande parte de suas receitas, e mais de 4,4 milhões de empregos foram destruídos no período, contribuindo para a retração do PIB.

Estaleiros inteiros fecharam as portas, e o pré-sal passou em boa medida às mãos de multinacionais, sempre no interesse geopolítico dos Estados Unidos. Após anos de avanços e recuos na condução do caso, até a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) reconheceu a ingerência internacional nos rumos da Lava Jato.

Esse “parêntese histórico” ilumina o caso de Rondônia. Operações judiciais conduzidas com motivações político-ideológicas deturpam o Estado de Direito e podem servir a agendas ocultas. Se confirmado que a Pau Oco foi contaminada por parcialidade de seus agentes – seja pela proximidade com um ator político local, seja por possíveis influências externas – suas ações penais podem vir a ser invalidadas, à semelhança do que ocorreu com diversas condenações da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal.

Do ponto de vista jurídico, os indícios de parcialidade e conflito de interesses ensejam reflexões à luz da legislação processual brasileira.

O Código de Processo Penal, em seu art. 252, elenca hipóteses de impedimento absoluto do juiz, isto é, situações em que a lei presume a parcialidade e veda a atuação do magistrado. É discutível se o papel de Ronei Giordani como assessor parlamentar se enquadra tecnicamente como “autoridade policial”, mas não há dúvidas de que seu interesse no desfecho da ação (e o de seu chefe Camargo) é direto, dadas as vantagens políticas em jogo.

No mínimo, a imparcialidade da juíza Roberta Macedo está comprometida por interesse indireto do cônjuge, o que configura motivo de pedido de suspeição.

Também o Código de Processo Civil (art. 145), aplicado subsidiariamente e por analogia, prevê que há suspeição do juiz quando este for amigo íntimo de qualquer das partes, ou quando alguma das partes for devedora/credora de seu cônjuge, ou ainda quando o juiz tiver interesse no julgamento em favor de uma das partes.

No caso Pau Oco, embora não se trate de relação de amizade ou dívida, pode-se arguir que o juiz (ou juíza) tem interesse no feito em benefício de terceiro (o delegado Júlio César), via seu esposo.

Ainda que essa situação específica não esteja literalmente descrita na lei, a Constituição Federal assegura a todos os cidadãos o direito a um juiz imparcial, de modo que situações anômalas como essa costumam ser resolvidas pela declaração de suspeição por quebra da confiança na isenção do julgador. Há vasta jurisprudência determinando o afastamento de magistrados sempre que sua atuação puder macular a imagem de independência do Poder Judiciário.

Afinal, não basta a mulher de César ser honesta; é preciso parecer honesta – e aqui, infelizmente, a aparência de parcialidade é flagrante.

Do lado do delegado Júlio César, os possíveis desvios de conduta (como a inserção de provas falsas) podem ensejar sua responsabilização criminal e administrativa.

Já houve representação de investigados junto ao Ministério Público e à Corregedoria pelos abusos cometidos na Pau Oco.

Some-se a isso o fato de Júlio ter sido “premiado” com cargos políticos após as irregularidades, o que configura indícios de troca de favores e contamina a integridade de toda a operação.

Não seria absurdo cogitar que a Operação Pau Oco inteira possa ser anulada pelo Poder Judiciário, caso se reconheça formalmente a suspeição da juíza ou a má-fé nas investigações.

Considerações

Os enleios descritos acima revelam um preocupante conluio entre agentes da lei e da política em Rondônia, colocando em xeque a legitimidade da Operação Pau Oco.

As evidências documentais apontam para uma captura do sistema de justiça por interesses particulares, onde uma operação policial-judicial teria sido orientada menos pelo afã de justiça e mais pela conveniência de um projeto de poder.

As semelhanças com a Operação Lava Jato não passam despercebidas: novamente identifica-se o emprego do aparato de investigação e julgamento como arma política, resultando em prejuízos institucionais e sociais profundos.

No caso rondoniense, além de potenciais injustiças contra os investigados, há o risco de desmoralização do Judiciário local e a erosão da confiança pública no Ministério Público e nas polícias – danos difíceis de reparar.

Cabe aos órgãos de controle competentes (Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, corregedorias) e às instâncias recursais judiciais analisarem detidamente essas situações. A imparcialidade do juiz é pilar do devido processo legal, e não se pode admitir que continue à frente do caso uma magistrada cujo cônjuge figura em posição de interesse direto ligado a um dos “beneficiários” da operação.

Da mesma forma, é imperioso apurar se houve articulações político-partidárias orientando a atuação policial – o que, se comprovado, macula irremediavelmente os procedimentos. O que está em jogo vai muito além da Operação Pau Oco e de Rondônia: trata-se de assegurar que o sistema de justiça brasileiro não seja instrumentalizado como ferramenta de disputa política, mantendo-se fiel aos princípios republicanos.

A lição que fica reforçada pelos excessos da Lava Jato e seus epílogos, é que os fins não justificam os meios – quando os meios violam a lei e a ética, os próprios fins (o combate à corrupção, por exemplo) tornam-se corrompidos. Em nome da credibilidade das instituições, transparência e isenção precisam prevalecer, sob pena de continuarmos assistindo a justiça de “pau oco”: vistosa por fora, porém, corroída pelos cupins dos interesses ocultos por dentro.

Referências

  1. Código de Processo Penal (art. 252).
  2. Código de Processo Civil (art. 145).
  3. Constituição Federal (princípio do juiz natural e imparcialidade).
  4. Portal da Transparência da ALE-RO (nomeações e exonerações).
  5. Diário Oficial da Assembleia Legislativa de Rondônia (atos de nomeação e exoneração de Júlio César e Renata Miranda).
  6. Registro Civil oficial (certidão de casamento da magistrada).
  7. Reportagens sobre transcrição inexistente na Operação Pau Oco, Rondoniagora: https://www.rondoniagora.com/geral/transcricao-de-audio-inexistente-teria-motivado-segunda-fase-da-operacao-pau-oco.
  8. Declarações do ex-governador Daniel Pereira em entrevista ao radialista Fábio Camilo, vídeo: https://youtu.be/DAzLjrmn5uY?si=lM8U7Ar-u8RO0Gne.
  9. Relatos de irregularidades na DRACO II e afastamento de delegados (SIC TV, 2019).
  10. Estudos de impacto econômico da Lava Jato (DIEESE, UFRJ).
  11. Manifestações sindicais do setor petrolífero sobre a perda do pré-sal e interesses geopolíticos.
  12. Declarações de ex-membros da Lava Jato e da ABIN sobre ingerência norte-americana.

Links recomendados para aprofundamento

  • https://www.rondoniagora.com/geral/transcricao-de-audio-inexistente-teria-motivado-segunda-fase-da-operacao-pau-oco
  • https://youtu.be/DAzLjrmn5uY?si=lM8U7Ar-u8RO0Gne

Salvio Kotter passou formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudita, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.

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1 Comentário

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  1. E,de insegurança jurídica em insegurança jurídica, continuamos na lama, consolidando a nova “República Velha”.
    Quando é que vão prender – e multar pesadamente – esses ladrões de gravata, a buscar proveito próprio, esculhambando o sistema de civilidade?

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