Justiça

Mães de Maio pedem intervenção federal no Guarujá e fim da Operação Escudo

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.

Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História

A definição que o filósofo e crítico literário Walter Benjamin conferiu ao quadro de Paul Klee, na verdade um desenho a nanquim, tem assombrosa atualidade e no caso das chacinas promovidas pela Polícia Militar do Estado de S. Paulo, a descrição possui traços proféticos e realistas. 

São 16 mortos contabilizados de forma oficial pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ocasionadas pela Operação Escudo, iniciada após um agente da Rondas Tobias Aguiar (Rota) ser baleado e morto durante diligência na Vila Júlia, no Guarujá, litoral paulista. 

“Chegaram com sangue nos olhos. A Vila Júlia fica ali perto do túnel, na Enseada, mas saiu (polícia) matando em vários bairros. Justificam combate às drogas. Mentira. É extermínio, chacina. Os bairros estão sitiados, ameaçados”, diz morador de uma dessas comunidades que prefere não se identificar.   

O Movimento Mães de Maio (leia mais abaixo) reivindica “intervenção imediata do ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, na cidade de Guarujá, a retirada das tropas da Rota da cidade e o esclarecimento dos óbitos, justificados por uma mesma versão da PM alinhada aos termos da excludente de ilicitude

A Operação Escudo chegou ao sétimo dia de atividades repressivas e tem previsão para durar 30 dias. O ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, percorreu as comunidades afetadas nesta quarta-feira (2) para começar a escutar as famílias das 16 vítimas fatais da Operação Escudo. 

“Não, é mais. Esse número de vítimas é maior, mais gente morreu e pode morrer. Aparece depois, ainda mais se a pessoa morta não tem uma família pra ir lá no IML (Instituto Médico Legal) reivindicar. Vai precisar ir atrás, vasculhar”, conta outra moradora dos bairros atingidos.  

Santos entra na mira da Operação Escudo

Em face da situação no Guarujá, a vizinha cidade de Santos teve duas novas mortes confirmadas nesta quarta e ainda sem identificação. Uma ocorreu no Morro da Penha. Junto com o suspeito, a polícia apreendeu “arma, drogas e apetrechos do tráfico”. 

No entanto, a segunda morte confirmada foi a de um suspeito baleado na terça-feira (1) na Rua Engenheiro José Garcia da Silva, no Jabaquara, que também é um morro. A Penha e o Jabaquara se interligam, como é o caso de todos os outros morros da cidade. 

E justamente para um morro, o do Marapé, o veículo com os criminosos que atiraram contra dois policiais, sendo uma agente baleada com mais gravidade, mas fora de perigo de morte, no final da madrugada desta segunda-feira (31). Após o incidente, a Operação Escudo se embrenhou nos morros da cidade. 

Versão combinada: excludente de ilicitude

A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contesta a versão da Polícia Militar sobre as ações da Operação Escudo que desde a última sexta-feira (28) fez ao menos 16 vítimas fatais. Para isso, a análise dos registros de ocorrências tem sido importante. 

Para o coordenador do núcleo de direito antidiscriminatório da comissão, Flávio Roberto Campos, os PMs combinaram uma narrativa única de “legítima defesa” nos registros das ocorrências que terminaram em morte. Desse modo, as mortes entram na excludente de ilicitude, prevista no Código Penal desde 2019. 

Os boletins de ocorrência registram sete supostos confrontos com a PM no Guarujá. Nos documentos, de consulta pública, mas com os sete supostos confrontos levantados pelo UOL, os policiais afirmam que todos os suspeitos morreram após reagirem às abordagens. 

Dos sete mortos mencionados, os policiais dizem que três chegaram a disparar contra os agentes. Os outros quatro teriam apontado a arma para os PMs ou sacado a arma da cintura. Os policiais alegam ter “revidado injusta agressão” após ficarem na mira de suspeitos, exatamente o que prevê a excludente.

“São denúncias de violações de direitos humanos, tortura e execuções. Mas os policiais envolvidos nessas ações combinam a mesma versão em todas as ocorrências com morte”, disse o coordenador de núcleo da Comissão de Direitos Humanos da OAB. 

Para ele, a polícia diz que está combatendo o crime organizado, “mas não há uma testemunha sequer que comprove isso. O que sabemos é que estão matando as pessoas que têm antecedentes criminais. Só queremos que a polícia pare de matar”.

Movimento Mães de Maio

O Movimento Mães de Maio, formado na Baixada Santista em face das mortes de civis como retaliação aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), em maio de 2006, repudiou em nota a Operação Escudo e questionou a forma como ela se organizou após a morte do policial da Rota. 

“Causa espanto a Secretaria de Segurança não esclarecer a morte do soldado e viabilizar o efetivo das polícias para “vingar” a morte do referido soldado. Ano passado a mesma SSP registrou 0 (zero) mortes de soldados em supostos confrontos. O que está por trás deste extermínio autorizado pelo governo fascista de São Paulo?”, diz trecho da nota. 

A ONG lembra que a cidade de Guarujá foi um dos principais palcos dos Crimes de Maio, a chacina de 2006, com a atuação da polícia “nos rincões das favelas, desde o morro da Vila Baiana à Favela do Caixão. São estes os territórios criminalizados (…) habitados por parte da população”.

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

View Comments

  • E eu estou impressionado com a quantidade de suicidas, que é o caso de indivíduos "reagindo" à prisão. E até atirando em policial MILITAR, por motivo fútil ou sem motivo. Impressionante!
    Claro, recebendo a reação. SEMPRE LETAL.

  • Assim como em 2006 nada foi feito, agora em 2023 nada sera feito, o governo federal 'e o mesmo, alguem acredita que lula vai fazer força pra federalizar o caso?

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