Nem discrição, nem tampouco discrição: novelas nada exemplares, por Eliseu Venturi

Fotor FGV – modificada

Nem discrição, nem tampouco discrição: novelas nada exemplares

por Eliseu Raphael Venturi 

A palavra “discrição” é interessante ao Direito por sua polissemia, repleta de significação jurídica. Se, por um lado, a “discrição” refere-se ao dever de um agente – geralmente julgadores¹ – ser comedido e reservado, ao mesmo tempo nomina um poder de agir destas mesmas autoridades constituídas; em verdade, uma liberdade de agir, desde que conforme a juridicidade.

O jurista argentino Carlos Santiago Nino compreendeu que o problema da discrição (discricionariedade) é dos mais instigantes da Filosofia do Direito, expressando-se pela “[…] pergunta sobre como os juízes devem exercer a discrição – de fato ou de direito – de que gozam para resolver casos que não estão solucionados de modo inequívoco pelo sistema jurídico”², o que se coordena ao dever legal de julgar sem escusas em razão do silêncio, obscuridade ou insuficiência das leis.

Para Nino, a discrição de fato, que ocorre com maior regularidade, decorre da própria linguagem, ou seja, advém de ambiguidades, vaguezas, lacunas e inconsistências do sistema jurídico, enquanto as de direito são autorizações expressas do direito para tais atos interpretativos. Para o pensador, a tradição continental, por ser assentada na dogmática jurídica, formula com menos profundidade o problema, se comparada à tradição anglo-saxã, em que já se parte da desconfiança da possibilidade de construção inconteste de respostas corretas no Direito.

O autor, então, situa o problema da discrição no contexto do papel dos juízes em uma sociedade democrática, partindo do fato de estes não serem eleitos e dos questionamentos inevitáveis, assim, em torno de decisões com base em princípios, valorações e concepções ideológicas determinadas e não democraticamente validadas, bem como eventuais aplicações retroativas de regras criadas no curso do processo.

Nino destaca a concepção de Ronald Dworkin³ para se restringir a discrição nas democracias. Muito sinteticamente, a proposta de Dworkin se assenta na “doutrina da responsabilidade política”, a noção de que os servidores públicos devem decidir aquilo que podem racionalmente justificar com base em uma teoria geral que possa ser reinvocada.

Ainda, proporia Dworkin a base na distinção entre “princípios que estabelecem direitos” (ao que devem os juízes aderir) e “políticas que fixam objetivos sociais coletivos” (pauta da agenda dos outros poderes, vedada ao juiz). Ainda, como limite, a proposta da “consistência articulada”, necessidade da adoção a princípios que poderiam também justificar as normas institucionalmente reconhecidas.

Nino, articulando críticas feitas e, inclusive, expondo as suas, expõe questionamentos a tais restrições propostas por Dworkin: obscuridade nas distinções entre princípios e políticas; ilusão na assepsia dos juízes ante políticas; ilogicidade quanto à adesão irrestrita aos princípios. Ante a “consistência articulada”, o autor critica a não correção de injustiças decorrentes de princípios injustos que justificam normas, por isso mesmo, também injustas.

Para o autor, contudo, as diferenciações apontadas por Dworkin são relevantes: a concessão de um benefício por força de um direito ou por força de um objetivo social coletivo permaneceria uma distinção relevante. Por isso, Nino propõe que se deveria exigir “[…] que as políticas, mas não os princípios, que os juízes devem considerar em suas decisões devem ser necessariamente inferidas das finalidades que buscam os outros poderes do Estado ao estabelecer as normas do sistema”[4]

Conclui Nino, assim, que juízes (especificamente, mas não unicamente), para intermediar justiça e coação, deveriam observar objetivos sociais coletivos, sondando aqueles cujo manejo seria legítimo face a democracia representativa, assim como deveriam assumir sua responsabilidade moral de decisão segundo princípios.

Tal discussão evidencia como a interpretação e aplicação do Direito é tanto mais aberta e porosa do que alguns bordões do senso comum parecem crer, sobretudo quando relacionados à legalidade; e, ao mesmo tempo, quão a atividade parece realmente delimitada, tal como na proposta de Nino, o que só evidencia como o Direito se manifesta como objeto técnico e hermenêutico complexo, irredutível às corriqueiras simplificações.

Evidencia-se, ademais, como a crítica jurídica é não só possível como urgente e necessária, posto haver inúmeras fontes de direitos e de objetivos comuns: direitos subjetivos vigentes, objetivos constitucionais, objetivos legais; várias são as referências e as violações. E, também, avulta como a arbitrariedade não se evita mascarar com palavras ingênuas, pelo contrário, se esconde na mais contraditória linguagem, por mais que seja ovacionada e televisionada.

No cenário brasileiro contemporâneo [5], cada vez mais se vê nem discrição, com agentes públicos alçando-se aos questionáveis estrelatos, nem tampouco discrição, pelas interpretações descompromissadas seja com princípios de direitos, seja com políticas de objetivos comuns, seja guiadas por uma doutrina da responsabilidade jurídica de justificação, seja sequer orientadas a deduzir princípios criadores de normas.

Contos em capítulos de novelas nada exemplares; como diria o mais indispensável do que nunca Vampiro Curitibano, “um moço em Curitiba devia se afogar…”[6].

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Artigos 35, I, e VIII; 36, III; 56, II, Lei Complementar 35/1979. Artigos 1º, 5º, 25, Código de Ética da Magistratura

² NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. Tradução de Elza Maria Lazarotto. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 509

³ DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 50-61

Idem, p. 513

Para um elenco não exaustivo de alguns trágicos exemplos dos descolamentos, dos agentes (e não exclusivamente julgadores), do Direito: NASSIF, Luis. Os descaminhos da justiça e o caráter do brasileiro. GGN online. O jornal de todos os Brasis. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/os-descaminhos-da-justica-e-o-carater-do-brasileiro-por-luis-nassif>. Acesso em: 07 jun. 2018.

6 TREVISAN, Dalton. Novelas nada exemplares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959. Conto: Valsa da Esquina. Destaca-se que o desfecho do conto se refere a um afogamento metafórico: “— Você deve se afogar no barril de rum”

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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