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Sobre as sabatinas no Senado dos EUA

Acho que há um conjunto de erros aí no que toca à Suprema Corte dos Estados Unidos.

Deixem-me contar um segredinho: sabatinas de meses e meses são mais uma conseqüência do cabo de guerra político e partidário da bota direita e da bota esquerda (como Nikita Khrushchev, que tinha um senso de humor genial, se referia aos partidos Republicano e Democrata) do que realmente um escrutínio sério.

i. Os senadores estadunidenses não são mais preparados do que os nossos. Se os nossos quisessem usar suas assessorias parlamentares para montar questionários rigorosos, poderiam.

ii. O problema é que o congresso dos EUA, mais do que o nosso, é infestado de advogados (infestado é o termo certo, pensem em baratas, cupins e outros bichos). Promotorias estaduais são um trampolim político para muitos jovens ambiciosos. Portanto, há muitos parlamentares que sabem o que perguntar, sim, mas isso não significa que as perguntas e longas discussões por elas ensejadas realmente extraiam algo de útil para saber se um indicado vale para o cargo ou não.

Opriiii. O principal problema, no entanto, não é esse, e sim o fato de que os EUA são um sistema de Lei Comum, enquanto nós somos um caso de Lei Civil. E, ainda por cima, a constituição deles é tão clara quanto a esfinge. E para completar, ao contrário do nosso STF, a Suprema Corte dos EUA muda de jurisprudência como quem muda de roupa: há casos incontáveis em que a mesma constituição é interpretada de formas antagônicas de uma geração para outra. Ou seja, uma composição da corte pode mudar completamente o entendimento que outra composição teve anos antes.

Qualquer pessoa séria diria que interpretar o mesmo texto de formas diametralmente opostas é coisa de maluco, mas nos EUA isso é chamado de “o brilho da constituição viva”. Brilho dos ministros vivaldinos, isso sim.

E não é por outro motivo que as sabatinas são tão longas. Como a Suprema Corte pode esticar, torcer e engomar a constituição deles como lhes aprouver, os senadores encenam toda aquela farsa porque o que querem de fato saber é o que os candidatos pensam a respeito de temas que lhes são caros, como o aborto. Só que no Brasil, o que os nossos ministros pensam sobre o aborto não interessa, porque há uma lei muito clara a respeito e não há o que interpretar. Roe versus Wade jamais chegaria ao STF no Brasil. Em outras palavras, a Suprema Corte dos EUA é opinativa, muito mais do que o STF (eu poderia até dizer que são os palpiteiros oficiais daquele país), então faz sentido lá, como não faz aqui, tentar descobrir se o candidato tem alguma tara inconfessável que possa modular seus julgamentos. Os republicanos tentam descobrir se o candidato possui vezos “progressistas” (nos EUA isso é palavrão) e os democratas, se o dito-cujo é a favor do porte de armas ou outra idiotice do gênero.

iv. E no fim, não adianta nada. Os indicados acabam refletindo a atmosfera política de Washington, que convenhamos, é pútrida. As longas sabatinas raramente expõem algo que seria realmente importante sobre o candidato. Se o indicado dançar ao tom do baile, ele pode ter um exército de esqueletos no armário maior do que o de Pieter Brueghel que vai ser aprovado, contanto que tenha coberto seus rastros a contento (ou seja, se tiver sido esperto o bastante para não ser acionado judicialmente, mesmo que o malfeito esteja bem documentado jornalisticamente). Se não, vejamos:

– A última indicada, Elena Kagan, foi saudada como a terceira mulher da Corte. Só que de feminista ela nada tem, porque não contratou UMA mulher que fosse quando foi deã da Faculdade de Direito de Harvard. E ainda por cima, deu cobertura a um caso de plágio que ocorreu em sua gestão.

– Sonia Sotomayor é outra sem interesse algum em defender a coisa pública. O setor patronal vibrou com sua indicação. Sua vara quando juíza era especializada em questões trabalhistas e – surpresa! – ela sempre decidia contra os trabalhadores. Se chegar algum caso de interpretação da carta maior que interesse aos sindicatos, o empresariado pode contar com ela para ajudar a enterrar.

– Clarence Thomas, coitado, foi obrigado a passar por idiota para não se enrolar com a justiça. Teve de dizer que não entendera a papelada quando se descobriu que sua esposa recebera contribuições financeiras de um grupo de ação política, suscitando risinhos de que um ministro da Suprema Corte não entende um simples regimento interno. Porém, essa não foi a primeira vez que se suspeitou que o ministro fosse um indigente mental: o próprio já admitira em entrevista que decidia as questões legais pelo “feeling”. É considerado notoriamente despreparado, uma espécie de Dias Toffoli com purpurina e confete.

E todos os atuais ministros se formaram em Yale ou Harvard. O último ministro que não era,  e um dos únicos que prestavam, John Paul Stevens, tinha a origem acadêmica mais humilde dos nove.

Caiam na real, gente. Se o processo de seleção para a Suprema Corte dos EUA realmente garantisse que os mais competentes a ela ascendem, a corte não teria revertido noventa anos de jurisprudência na decisão Citizens United que liberou as corporações para fazerem a farra nas doações de campanha eleitoral. Foi uma decisão cinco a quatro e a ministra Ruth Bader Ginsburg, da minoria e uma das poucas que presta naquele hospício, denotou visível constrangimento ao pronunciar seu voto.

O STF é um colegiado sinistro que muito desgosto nos dá, mas achar que a sabatina bizantina do Senado dos EUA seria a solução só pode ser barato ruim de psicodélico adulterado.

Luis Nassif

Luis Nassif

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