A necessária aliança entre sensibilidade e senso crítico, por Sylvia Debossan Moretzsohn

Sugestão de Odonir Oliveira

do Observatório da Imprensa

A necessária aliança entre sensibilidade e senso crítico

Por Sylvia Debossan Moretzsohn
Apresentação de O nascimento de Joicy – Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem, de Fabiana Moraes, 248 pp., Arquipélago Editorial, 2015; R$ 40

Um famoso discurso de Gabriel García Márquez costuma ser citado sempre que se deseja enaltecer a profissão de jornalista. Diz ele que “o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade”. Que “ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”. Que “todo jornalismo deve ser investigativo por definição” e que “a ética não é uma condição ocasional, mas deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro”.

Eu sempre procurei relativizar esse entusiasmo, tendo em vista as circunstâncias em que o discurso foi proferido – numa assembleia da SIP, a Sociedade Interamericana de Imprensa, cuja filiação ideológica ninguém ignora – mas, principalmente, porque idealiza o que chama de “a melhor profissão do mundo”, sem considerar as condições concretas de trabalho, tantas vezes responsáveis pela frustração de valorosos talentos, que apesar de terem “nascido para isso” abdicam da sua vocação ou se submetem a uma rotina que, lentamente, os conforma à mediocridade.

Mas, ao revisitar o discurso, percebo que, apesar dessas ressalvas, os trechos citados não poderiam ser mais adequados para resumir os princípios e a prática de Fabiana Moraes, expostos neste livro que reproduz a premiada reportagem sobre a dolorosa transformação do lavrador João Batista em Joicy, relata as dificuldades enfrentadas ao longo da realização do trabalho e reflete corajosamente sobre o exercício do jornalismo.

Fabiana, certamente, nasceu para isso e, felizmente, teve forças para perseverar. A ponto de se propor a uma reflexão academicamente qualificada sobre seu ofício, e uma nota de rodapé no terceiro capítulo deste livro sintetiza o nível de esforço que significou aliar o trabalho como repórter ao curso de doutorado em Sociologia na UFPE, concluído em 2011. Sobre as condições de trabalho, fala com conhecimento de causa: aponta os constrangimentos impostos pela engrenagem voltada para o lucro mas reconhece distinções fundamentais no cotidiano da profissão. Menciona, por exemplo, a atitude de editores que “fustigavam continuamente suas equipes para a produção de um material diferenciado, alertavam para olhares anacrônicos e poucos criativos, arriscavam-se a pensar diferente mesmo quando a linha adotada pelo jornal não era exatamente apropriada para o conteúdo das edições que estavam à frente”. Quem conhece jornal sabe que é assim. E é por isso que vale a pena persistir.

O nascimento de Joicy revela a opção pelo caminho mais árduo, mas certamente mais rico, para a abordagem de um tema já por si difícil quando se pretende fugir de estereótipos: o da mudança de sexo. Fabiana conta que, inicialmente, não se tratou propriamente de uma escolha: aconteceu de Joicy ser a próxima da fila a se submeter à cirurgia. Porém, estava longe de corresponder à imagem de mulher que se costuma cultivar. Teria sido possível aguardar e eleger alguém mais enquadrada no cânone da feminilidade. Pelo contrário, insistir com Joicy significava enfrentar o preconceito mais arraigado e mostrar o drama de quem, ademais de viver em situação de extrema pobreza, “tenta se inscrever no mundo a partir de um corpo continuamente questionado – e combatido”. Ao acompanhá-la em sua peregrinação, a repórter vai compondo um quadro complexo das reações díspares diante daquela situação, as pessoas revelando surpresa, constrangimento, vontade de entender, aceitar ou pelo menos não parecerem preconceituosas.

Antes da história que resultou neste livro, porém, as grandes reportagens que Fabiana realizou – com destaque para o premiado caderno especial sobre Os sertões, revelador de uma realidade múltipla, destoante dos estereótipos que marcam a região – já a inseriam na tradição de nosso melhor jornalismo: o empenho, o arrojo, a dedicação, o rigor na apuração aliado à sensibilidade traduzidos numa narrativa literariamente esmerada, atraente, cativante, às vezes comovente, sempre informativa.

O ponto de partida de todas as pautas era uma pergunta simples, “que traz mais incômodos do que respostas prontas” – e por isso desafia as rotinas hoje tão acostumadas aos releases das assessorias de imprensa: por que as coisas são como são?

Abrir-se a essa indagação é realizar o conselho de Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Reparar é espantar-se diante de tamanhas aberrações e injustiças que, de tão incorporadas ao nosso cotidiano, já não surpreendem os que se tornaram incapazes de olhar ao redor.

Fabiana olha, repara, espanta-se, revolta-se. E exibe esse sentimento no que escreve. Por isso, também, defende o que chama de “jornalismo da subjetividade”: não uma rejeição à objetividade, evidentemente, porque sabe – e todos deveríamos saber – que qualquer atividade humana articula, embora em graus distintos, essas duas dimensões; mas, sim, uma contestação à concepção reducionista de objetividade gravada nos manuais de jornalismo, que castra a autonomia do repórter e o condiciona a apenas “relatar fatos”, como se isso fosse possível. Pior: a relatar fatos de acordo com um enquadramento prévio, num processo que acaba tendo a cumplicidade do profissional, de tal modo que “pessoas e grupos são praticamente obrigados a se comportar, a responder e mesmo a sentir aquilo que o jornalista, quase sempre apressado ou ansioso para dar conta de algo que está em sua cabeça, quer”.

Teoricamente bem sustentada, a defesa do “jornalismo de subjetividade” é, a rigor, um apelo à valorização do jornalismo que honra sua tradição iluminista de esclarecer o público, o que exige ir contra o senso comum – isto é, contra os cânones sacralizados de interpretação da realidade, que nos levam a aceitar o que deveria ser combatido. Coerentemente, é também uma convocação a que os jornalistas assumam sua autonomia e sejam capazes de produzir narrativas críticas e sensíveis, que confrontem o público com o que ele talvez não deseje mas certamente precisa saber. [Rio de Janeiro, dezembro de 2014]

***

Sobre a autora

Fabiana Moraes nasceu no Recife, em 1974. Jornalista e socióloga formada na Universidade Federal de Pernambuco, trabalha como repórter especial do Jornal do Commercio. Como eixo de pesquisa na redação e na área acadêmica, investiga a pobreza, a invisibilidade, a hierarquização social e a desconstrução do senso comum.

Seu trabalho, que hoje inclui o audiovisual, foi reconhecido com três prêmios Esso e um Embratel, entre outros. É autora de três livros: Os Sertões (2010), Nabuco em pretos e brancos (2012) e No país do racismo institucional (2013).

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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  • Vejo com alegria que o jornalismo no Brasil

    não acabou.

    Podem fechar as editoras Abril, Globo, FSP e OESP. Nascerão novos rumos.

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