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A vida que há III, por Maíra Vasconcelos

A vida que há III, por Maíra Vasconcelos

Irão dizer que minha vizinha gritava sem qualquer razão. Mas nos dias de sangue pisado as intempéries passam mais facilmente pelo corpo. Como se sangue falasse. Às vezes, até fala. Seria o caso de declarar que o sangue pisado em toda mulher possui uma voz à parte. Portanto, declaro que, mas sem assinar embaixo para não parecer coisa da sociedade burocrata. Apenas declaro: nos dias de sangue pisado há duas vozes no corpo da mulher. Igual a voz irreconhecível que escutei da minha vizinha: gritadinha e fininha, saía pela janela em plena hora da tarde: a mulher pre-e-e-e-e-e-eta.

Não sei quem entendeu aquilo parecido a bicho doido que se contorcia pelo o que nem era dela mesma. Isso que é bem típico dos dias de sangue pisado: morre uma mulher lá do outro lado da cidade e minha vizinha berra, aqui, no ouvido do prédio inteiro. Uma mulher preta a menos na cidade, e daí? Vão dizer. Foi porque a polícia quis e os vizinhos também. Tudo junto e mancomunado.

Todos fingiram normalidade. A mulher pre-e-e-e-e-e-eta: nunca escutei coisa mais arrastada. Prolongado igual ao sangue pisado durante sete dias morrendo no corpo com cheiro de espécie animal gerando gritos e falas outras. Nem parece a gente mesmo, mas é. E é tudo mulher. Mas pode também ser uma parte mas-cu-li-na, aquela que usa calça e vestido desviado e é muito livre. Como se para ser mais livre tivesse que usar a parte máscula. Ah. Mas aí também não pode, fica feinho demais, vão dizer coisas a seu respeito… pode rezar para não morrer fritadinha. E morre, ontem morreu outra, umazinha lá naquele bairro meio longe.

A minha vizinha, cheinha de sangue pisado, gritou durante dezessete minutos e vinte e um segundos. Depois veio aquele silêncio sepulcral, aquela outra parte dela que é muda. No prédio, ninguém se mexia, como se fosse normal escutar alguém gritar como se de dor de parto, mas é dor de coração. Gritou gritou gritou. Era apenas a vida do sangue pisado contando a morte.

Final da história, ninguém quis saber o porquê do berro: a mulher preta foi invadida de cima a baixo, ficou amassada igual bagaço de laranja na boca. Estiradinha no meio da rua, nem parecia gente. Todo mundo sabe quem foi porque são sempre os mesmos. E sempre tem uma mulher amassadinha-amassadinha de tanto ser mulher.  

Minha vizinha, eu rezo: tomara não saiba de mais nada, nem de fogo nos cabelos, nem de arremesso de corpo peitudo dos andares. Ah, coitada, ela não sabe mais como se desviar da realidade nos dias do sangue-espantado segurado entre as pernas, mas que sai pela boca da mulher durante sete dias denunciante da vida mais miserável que nem Deusinho resolve. Mas o sangue pisado não é de Deus, se fosse, seria menos traidor.

 

 

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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