O diabo é tão feio que dá vontade de vomitar, por Sebastião Nunes

O diabo é tão feio que dá vontade de vomitar

por Sebastião Nunes

Sérgio Sant’Anna, Luís Gonzaga Vieira e Manoel Lobato ficaram paralisados de susto, atolados em espanto, abismados em confusão. Pois o São Pedro que apareceu era mais feio do que qualquer representação do demônio já produzida. Na testa, quatro chifres rombudos, grossos e esgalhados. Debaixo das sobrancelhas densas, três olhos malignos, afundados nas órbitas, esguichavam labaredas de fogo tão intenso que parecia provir das profundezas do Inferno ou da superfície solar. Seis narizes. Dezesseis braços. Oito pernas. Cinco bocas. Sete orelhas. Doze umbigos purulentos.

Profundo silêncio acolheu o inesperado São Pedro que, nu em pelo, marchou à maneira dos ditadores (antigos, modernos ou contemporâneos) para o meio da multidão. Ninguém abriu o bico.

O guardião da porta do Paraíso devia atingir sete ou oito metros de altura. Era gordíssimo, com as dobras da barriga amarelada e do peito cabeludo caindo umas sobre as outras. Pernas e braços excessivamente finos. Quatro das bocas eram completamente desdentadas e os narizes tinham tamanho, grossura e cor diferentes uns dos outros. Das orelhas pendiam víboras se contorcendo que lhe mordiam as bochechas inchadas.

Na frente de São Pedro viam-se os sete arcanjos, as longas asas pontudas caídas, portando submetralhadoras poderosas, que mantinham engatilhadas e apontadas para a multidão que, até então, apenas urrava, blasfemava e ameaçava.

O descomunal caralho do Santo Guardião tinha a aparência e a configuração de poderoso aríete, lembrando aqueles que, na Idade Média, arrombavam portões e muros de castelos, por mais fortificados que estivessem, deixando os viventes desamparados ao saque, ao estupro coletivo e aos incêndios.

Mas sua função era outra: apontando-o para a multidão que, agora muda, não sabia o que fazer, começou a esguichar óleo fervente sobre as almas próximas, que murchavam até afundarem no estranho material que constituía o piso do vastíssimo hall de entrada. Junto com ele, e ao mesmo tempo, disparavam os arcanjos suas potentes submetralhadoras, fazendo murchar e desaparecer as almas rebeldes.

A ESPERANÇA DOS DESESPERADOS

Apanhados de surpresa, os rebeldes trataram de fugir, mas não sabiam para onde nem como, pois o hall não tinha entrada ou saída.

Ouviu-se então a voz poderosa de São Pedro:

– Estão vocês muito enganados se pensam que podem entrar, sair ou voltar para trás. O lugar de vocês é aqui. Morreram e se transformaram em almas imortais-mortais-imortais, condenadas a esperar eternamente diante da porta do Paraíso. Vocês não têm passado ou futuro, apenas este presente atemporal no qual mergulharam. E se não há tempo, não há também o que fazer, pois não existem ontem, hoje ou amanhã, como não existem dia ou noite, frio ou calor. Vocês chegaram ao único lugar em que merecem estar.

Lobato, Sérgio e Vieira se entreolharam. Estariam condenados a ficar ali para sempre, exatamente como aquela infinita multidão de almas imortais-mortais-imortais?

Parece que foram ouvidos pelo Santo Guardião:

– Vocês estão aqui como testemunhas. E será como testemunhas que vocês, embora não possam sair ou escrever, farão surgir em outros escritores ainda vivos uma vontade incontrolável de descrever estes acontecimentos, que vocês transmitirão a eles. E eles escreverão sobre este Paraíso-Purgatório-Inferno, que é tudo o que existe.

Sérgio criou coragem:

– Até aqui tudo bem – e olhou para os amigos. – Mas de onde vieram essas almas imortais-mortais-imortais, e porque estamos juntos e misturados?

O FIM DA TERRA E DOS SONHOS

– Parece que vocês não entenderam, nem isso me surpreende – disse São Pedro, sorrindo com uma das bocas desdentadas. – A Terra está morrendo. Ou melhor: Os humanos estão morrendo. Duvido que durem até o final desse século XXI de vocês. O que temos aqui em cima é uma cópia grotesca da vida de vocês lá embaixo. Eu sou São Pedro, mas sou também o Deus e o Demônio que vocês criaram. Sou real e irreal, sou o caos, a mentira e a verdade em que vocês vivem. Vocês foram com tanta sede ao pote que, em apenas alguns milhares desses anos ridículos de vocês, transformaram um planeta simpático, bonitinho e generoso como era a Terra em um tremendo deserto.

– Mas existem muitos de nós trabalhando contra a destruição – disse Vieira quase gaguejando, enquanto Lobato concordava, abanando a cabeça.

– Sim, mas são tão poucos que mais parecem, pelo interesse que despertam, um rato pulando no convés de um navio.

– Gostei do símile – disse Lobato. Mas, se me permite discordar…

Nisso, ouviu-se nítido som de delirante guitarra, enquanto surgia lentamente a figura magra, alta e desengonçada do maior guitarrista vivo ou morto.

– Ei, eu conheço esse cara! – gritou Sérgio. – Eu adoro esse cara!

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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