O iogurte que uniu Borges e Bioy Casares, por Jota A. Botelho


Fotos: um frasco antigo do ‘Yoghourt La Martona’ e o folheto publicitário escrito por Borges e Bioy Casares. Na sequência, fotos de Borges e Bioy Casares nos anos 30 e na velhice.

A união de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares começou com um livreto publicitário sobre o iogurte, quase como uma brincadeira, em 1935 ou 1936, na sala de jantar da estância da família Casares, a pedido de um tio de Bioy, Miguel Casares, dono da próspera Companhia Leiteira La Martona, que prometera à dupla um vultoso pagamento, cerca de 16 pesos por página. Diante de tentadora oferta, Borges e Bioy se animaram e escreveram um folheto que se tornou antológico, intitulado “A Coalhada La Martona: Estudo dietético sobre os leites ácido”, composto de dez páginas. Inventaram até uma família búlgara em que os onze irmãos chegaram aos 100 anos, com exceção da irmã mais jovem, morta aos 91 anos. Tudo isso para alardear o valor da ‘Coalhada’, dispostos a valorizar as qualidades longevas do produto, onde aprendemos que o iogurte aproxima o homem da imortalidade. Deste anúncio nasceu também uma amizade que durou mais de meio século, até a morte de Borges, e uma sólida parceria literária.  

Trechos do documentário e da entrevista de Borges e Bioy Casares.
https://www.youtube.com/watch?v=0cTCuMh5z4A align:center]


O LIVRETO PUBLICITÁRIO

Se o folheto ‘A Coalhada La Martona’, escrito em conjunto por Borges e Bioy Casares é o que se tornou o mais antológico entre a parceria ‘Bioborges’ e representa o encontro feliz da literatura com a publicidade, ele também reuniu pela primeira vez dois amigos que estavam predestinados a trabalharem juntos em outros projetos de maior substância literária, que se diversificou por crônicas e contos policiais ou fantásticos de intenção satírica, roteiros para cinema e compilação de antologias. Em ‘Borges e Bioy: Ficção de cano duplo’, Emílio Fraia e Vanessa Bárbara (2008) relatam que Borges e Bioy eram amigos próximos e que a parceria literária começou no início da década de 1930. Apesar da diferença da idade (Borges tinha 30 anos e Bioy, apenas 17 anos), eles se deram muito bem. 


A publicação do livreto na revista Sur, de Victoria Ocampo, em 1937 (no alto & abaixo, à esq.)

O livreto foi publicado em 1937 na revista ‘Sur’, de Victoria Ocampo, irmã de Silvina Ocampo, mulher de Bioy Casares, onde Borges também fora um de seus colaboradores. Além de ter sido publicado no livro ‘Museo – Textos Inéditos’ (Emecé, Buenos Aires, 2002), onde Bioy escreveu “a primeira conversa com Borges, quando iniciamos o relacionamento, ocorreu em 1931 ou 1932, na estrada entre San Isidro e Buenos Aires. Três ou quatro anos mais tarde fomos passar uma semana na estância de Pando, com o propósito de escrever em colaboração um folheto comercial aparentemente científico, sobre os méritos de uma comida mais ou menos búlgara”.(…) Passaram então a escrever um texto empolado e divertido sobre as vantagens do produto, com frases do tipo: ‘Quem tem saúde tem esperança, e quem tem esperança tem tudo – dizem os árabes, esses musculosos falcões do deserto, mas eles tem por trás da esperança algo que luta por sua saúde: a Coalhada’.

Bioy e Borges redigem capítulos sobre os méritos do iogurte entre os bretões, os franceses, os tártaros e os calmucos (de origem mongois, integrados à Rússia); inventam uma série de receitas para preparar bolos e pães de milho. Ao longo das páginas, vão amontoando dados de forma desconexa, afirmações vazias de conteúdo e tiradas repentinas, sem um contexto que as explique ou justifique. Para simular o discurso científico, incluem nomes e citações de supostas autoridades, além de frases bíblicas. O resultado é um texto pouquíssimo comercial com mostras de erudição e uma linguagem rebuscada, que, entre elogios ao leite balcânico e ponderações sobre os benefícios de bacilos e outros micróbios, revela o estilo inconfundível de H. Bustos Domecq: o pedantismo, a mistura de referências absurdas com citações verdadeiras, o humor irônico. Começava assim, em uma noite de 1936, com uma família búlgara numa sala de jantar, uma das mais intensas e importantes parcerias da história da literatura. (…) Entre os exageros, ele começava com uma biografia de Elias Metchnickoff, criador ‘da coalhada maravilhosa que leva o seu nome’ e seus procedimentos. Em seguida, ele passa a enumerar as virtudes curativas do produto, com muitos detalhes e numa linguagem direta e franca, incomum na publicidade dos anos 30. Além de absurdas e prolíficas citações científicas sobre os benefícios da coalhada e, entre outras coisas, exemplificando os benefícios de sua ingestão com a longevidade da família búlgara. O texto está divido em quatro partes que revelam mais a  inclinação literária dos autores: ‘Vuelta a Matusalén’‘El hombre, país de microbios’, ‘El caso perdido del acidófilo’ e ‘Nuestros aliados invisibles’.

O primeiro parágrafo do folheto de propaganda:

“O leite coalhado limpa o organismo do homem; dentro dele, alarga sua vida. Os maiores arcanos sabem estar a nosso redor; também algumas maravilhas; o costume dispensa a consciência, olhamos sem ver e, o que é pior, acreditando que nada resta por ver e vamos ao que é remoto, menos inalcançável que o imediato, a procura de esfinges e de maravilhas. O elixir da longa vida, de alguns contos e de algumas falhas de nossa desesperança, é por todos conhecido: O LEITE COALHADO, alimento de Matusalém”.

BIOY CASARES E A EXPERIÊNCIA COM BORGES

Para Bioy Casares, esta experiência aparentemente inconsequente foi decisiva em sua carreira literária. “Esse livreto significou para mim um aprendizado valioso (…). Qualquer colaboração com Borges é igual a anos de trabalho” – concluiu Bioy. Em entrevista concedida a Augusto Massi (1995), Bioy fala sobre a escrita em parceria com Borges e relata que quando duas pessoas escrevem juntas e não são vaidosas, escrevem muito mais fácil do que se estivessem separadas. Isso acontece, segundo ele, porque ao se escrever, às vezes se interrompe a escrita porque não se sabe como resolver uma frase ou como começar a frase seguinte, e quando há duas pessoas, uma delas sempre sabe.

A LITERATURA E A PUBLICIDADE


Um panfleto de propaganda da La Martona, 1889. Ao lado, o frasco do iogurte e anúncios dos produtos La Martona.

De qualquer forma, existe uma relação de longa data da literatura e das artes com a publicidade, muito antes de aparecer em cena o marketing. Elaboração e ilustração de campanhas publicitárias permitiram que muitos futuros escritores, poetas, pintores e cineastas sobrevivessem com dignidade trabalhando nesta área, até que tivessem a oportunidade de publicarem o seu primeiro trabalho que os consagrariam. Foi o que aconteceu com Hemingway, e também García Márquez, que teve que aceitar criar um slogan para uma marca de tecidos, em tempos de dificuldade econômica, antes de publicar o seu primeiro sucesso comercial, para anos depois se consagrar com ‘Cem Anos de Solidão’. Picasso, Matisse, Magritte e, acima de tudo, Toulouse Lautrec criaram peças publicitárias memoráveis e também cartazes. Lautrec, por exemplo, com seus cartazes, foi considerado por muitos como um pioneiro importante da publicidade.

O “La Martona’s Yogurt” também teve uma tradução bilíngue inglês-espanhol, realizada por Brandon Wilner, a partir do texto de 1935/36.


clique para ampliar
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A PARCERIA LITERÁRIA DE BORGES E BIOY CASARES


Os principais livros de Borges e Bioy Casares.

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires em 1899 e morreu em Genebra, em 1986. Borges foi um dos principais autores da literatura do século XX. Ele publicou ensaios curtos, histórias e poemas. Sua obra é fundamental para a literatura e o pensamento universal. Enquanto que Adolfo Bioy Casares nasceu em Buenos Aires em 1914 e morreu em 1999, aos 84 anos, na sua cidade natal. Descendente de avó inglesa, ele aprendeu as primeiras letras tanto no idioma espanhol quanto no inglês, por imposição dela. Casares pertencia a uma família abastada, que sempre o apoiou e possibilitou o desenvolvimento de sua carreira literária. Este suporte também lhe permitiu permanecer na Argentina mesmo nos momentos mais difíceis da história desse país, quando os escritores de sua época eram obrigados a buscar o exílio em outros países.

Depois que tudo começou com o panfleto para a fábrica de iogurte. Para atender a encomenda, os amigos se reuniram em uma casa de campo para escrever e começaram uma parceria que deu origem não apenas a livros, mas a dois autores. A Biblioteca Azul publicou novas edições em três volumes escritos por Borges e Bioy em uma colaboração tão íntima que criou um terceiro homem, o escritor H. Bustos Domecq e seu discípulo B. Suárez Lynch. O primeiro livro atribuído a Bustos Domecq nos apresenta Don Isidro Parodi, um astuto investigador encarcerado em Seis problemas para Dom Isidro Parodi, e neste volume também consta Duas fantasias memoráveis

O segundo livro reúne em um volume duas obras que resultaram da parceria dos escritores argentinos: Crônicas de Bustos Domecq e Novos Contos de Bustos Domecq. Bustos Domecq é um autor inventado por Borges e Bioy para satirizar a vida cultural e política argentina. Bustos era o sobrenome de um bisavô de Borges; Domecq, de um bisavô de Bioy. A parceria entre ambos rendeu frutos como traduções, organização de antologias, escrita de artigos, prefácios e roteiros de cinema.

No terceiro volume temos Um modelo para a morte, único livro publicado sob o pseudônimo de B. Suárez Lynch, que poderia ser considerado um conto policial enxadrístico (desde que se lembre do antigo aforismo segundo o qual o xadrez é muita ciência para ser um mero jogo, e muito jogo para ser somente ciência), e também os principais personagens, como o barbeiro-prisioneiro-detetive-por-dedução Don Isidro Parodi. Ainda em dupla, mas agora assinando com seus próprios nomes, Borges e Bioy escrevem os dois roteiros cinematográficos presentes neste livro: Os suburbanos e O paraíso dos crentes, ambos de 1951.

Segundo Júlio Pimentel Pinto (1998), Borges e Bioy iniciavam uma colaboração que duraria mais de quatro décadas e as aventuras literárias em conjunto se diversificaram entre antologias de poesia argentina, de contos fantásticos e de histórias policiais, prefácios, 26 traduções e comentários sobre outros autores e também roteiros de cinema. O que caracterizou a parceria entre Borges e Bioy foi a profunda afinidade de leituras, de preocupações intelectuais e literárias e, também, o grande senso de humor que, segundo eles próprios, marcaram seus encontros para escrever. Ainda segundo Pimentel, uma das maiores contribuições dessa parceria foi a ajuda de Bioy para Borges deixar a prosa barroca e detalhista em favor de um estilo mais clássico e fluente e o incentivo de Borges, por sua vez, para Bioy se afastar do surrealismo e do fluxo de consciência. Dessa singular mescla, Borges e Bioy, surgiu uma nova síntese literária baseada em uma relação dialética entre o gênero policial clássico e a crítica que ambos os escritores realizam em relação a diversos aspectos da sociedade argentina dos anos 40. Dessa forma, esses escritores conseguiram criar um subgênero do relato de enigma a partir da sua capacidade de ironizar o contexto sociocultural e, dessa forma, fazer uma paródia da construção clássica do tradicional gênero policial.

Casares e Borges iniciam, então, uma jornada onde se formaliza o universo duplo no contexto cultural argentino, com o propósito de escrever sobre tramas policiais, criando um autor fictício para suas obras, Honorio Bustos Domecq. Outro pseudônimo utilizado pela dupla foi B. Suárez Lynch, autor de “Um modelo para a morte”. No que se refere à escolha dos pseudônimos, Borges declarou que Suárez provinha de seu avô e que Lynch representava o lado irlandês da família de Bioy. Também foi utilizado pelos dois o pseudônimo B. Lynch Davis, que assinou a coluna “Museo” de Los anales de Buenos Aires. Borges e Bioy formaram uma dupla simbiótica que foi além da colaboração, já que Bustos Domecq tinha um estilo diferente de cada um dos dois escritores reais. Honorio Bustos Domecq surgiu primeiro como F. Bustos, nome com o qual Borges publicou a primeira história de ficção de sua carreira, “El hombre de la esquina rosada”. Quando apareceu a parceria entre Borges e Bioy Casares, o nome do escritor fantasma foi trocado para Honorio Bustos Domecq. O pseudônimo Honorio Bustos Domecq era uma composição que vinha de sobrenomes de antepassados, pois era uma homenagem a um bisavô de Borges (Bustos) e o tataravô de Bioy (Domecq), e essa dupla identidade só foi revelada muito tempo depois, após assinarem outros três livros. H. Bustos Domecq começou sua carreira com “Seis problemas para Dom Isidro Parodi”, em 1942, e em 1946 lançou “Duas fantasias memoráveis”. Bustos Domecq tornou-se um ‘autor’ de sucesso e uns 27 críticos literários acreditavam que esse escritor era real, chegando a lhe oferecer prêmios literários. Mas H. Bustos Domecq nunca aparecia para receber as honras. Conta-se que Borges e Bioy Casares davam gargalhadas e se divertiam com a brincadeira de utilizar nomes fictícios para escrever e só depois revelar a verdadeira autoria.  

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LA BIELA CAFE
Esculturas em homenagem a Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares no La Biela Cafe, localizado no bairro da Recoleta, em Buenos Aires/Argentina. 

https://www.youtube.com/watch?v=qtUflVYDSDc align:center]
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ESTÂNCIA SAN MARTÍN E LA MARTONA
A estância dos Casares, declarada Monumento Histórico Nacional. Entrevista com  Vicente Diego Casares, pertencente à sexta geração da família fundadora da indústria La Martona. Fotos dos pontos de venda da La Martona dos sécs. XIX e XX, as instalações abandonadas e a busca da preservação do local atualmente (clique para ampliar). Saiba mais Aqui.

https://www.youtube.com/watch?v=u08olsb5PQE align:center
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DOCUMENTÁRIO E ENTREVISTA COMPLETOS de Borges e Bioy Casares


Caricaturas de Borges e Bioy Casares.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=ah2ppZzO8lM align:center
[video:https://www.youtube.com/watch?v=dNUXro0wcdk align:center
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Dicas para os mais interessados:
# Sobre Borges & Bioy Casares: Aqui, Aqui, Aqui, Aqui, Aqui & Aqui de Ana Laura Veríssimo Vargas – Dissertação de Mestrado (especialmente o Capítulo 1- A Parceria Bustos Domecq: Escrita a “Quatro Mãos” – Item 1.2, pág. 24 – Borges e Bioy: uma singular parceria literária) 
# Sobre os Livros de Borges & Bioy Casares: Aqui, Aqui, Aqui, Aqui, Aqui & Aqui
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Jota Botelho

Jota Botelho

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