O paraíso não é mais o mesmo e São Pedro vai à luta, por Sebastião Nunes

O paraíso não é mais o mesmo e São Pedro vai à luta

por Sebastião Nunes

Seguia firme a gandaia.

São Pedro assuntou em volta e depois, sob os olhares agoniados dos arcanjos, relanceou para baixo, vendo seu enorme penduricalho cabisbaixo. Mais que depressa meteu-o dentro das ceroulas, baixando em seguida o camisolão de porteiro celestial.

Sentindo que o efeito do coquetel de drogas começava a se esvair, convocou o de-pernas-tortas para que lhe fornecesse novo suprimento. Cheirou, mastigou, bebeu, se aplicou e o mais necessário. Refeito, verificou a multidão extraordinária que, em frente e lateralmente, sapateava, trepidava e parecia mergulhada em delírio e devaneio. Voltou-se então para o arcanjo Gabriel, filosofando:

– Veja você, meu caro, no que deu o século XXI dos humanos. Toda a gente se dividiu em dois grupos, que se odeiam de morte: os que seguem o comando Trump-Johnson-Bolsonaro-et-al, e aqueles que, coitados, imaginam que a Terra tem solução e, de um jeito ou de outro, discursam infinitamente para ouvidos de mercador. Só aqui, tornados imortais-mortais-imortais, deixam de lado as desavenças e se envolvem nas mais descabeladas folganças, graças aos frutos do recém-subido Jimi Hendrix, com o adjutório do de-pernas-tortas.

– De fato, querido guardião – aventurou o bom Gabriel, que abria e fechava as longas e enormes asas brancas, de modo a afugentar o calor emanado da multidão. – Me parece que se existem duas palavras que definem esse tal de século XXI, em especial de 2015 para cá, são mentira e cinismo, que como irmãos siameses se comportam.

 

           CONTANDO MENTIRAS

Sérgio Sant’Anna, que acompanhava atento o diálogo, intrometeu-se:

– Concordo, e me permitam somar alguns dados. Segundo o Washington Post, o presidente Trump fez seis declarações falsas por dia em 2017, beirou as 16 por dia em 2018 e, não satisfeito, alcançou a marca de 22 por dia em 2019. Até janeiro de 2020, contabilizou 16.241 mentiras, número que vai num crescendo atroz.

– Será que ele não tem vergonha de mentir tanto? – espantou-se o guardião.

– Não tem – confirmou Vieira, que acompanhava o rico diálogo. – Vergonha é palavra que não existe no vocabulário trumpiano.

Concordo – apoiou o polivalente Manoel Lobato. – E seu discípulo Bolsonaro não fica atrás. Li outro dia uma matéria de Philippe Lichterbeck, em que ele afirma: “Em nenhum outro lugar essa tática de destruição [pela mentira] é tão bem-sucedida quanto no Brasil. Em nenhum outro lugar as mentiras da direita encontram terreno mais fértil. Em 2019, a Universidade Northwestern constatou que 62% dos brasileiros se deixam enganar por mentiras que circulam na internet”. E acrescenta: “Algumas semanas atrás um dos apoiadores de Bolsonaro expressou no Twitter a relação entre o bolsonarismo e a verdade: Pelo meu direito de falar o que quiser, de ofender quem eu quiser, de mentir se eu quiser, de falar coisas idiotas ou absurdas”.

– Esse tipo de comportamento é antigo – disse São Pedro, que parecia muito lúcido, apesar das drogas. – Mas parece que só atualmente mentir se tornou regra geral como técnica e tática política. Mentir descaradamente, com plena consciência das mentiras, sem nenhum escrúpulo. É a marca registrada de Trump e Bolsonaro.

 

            E ENTÃO, O QUE FAZER?

A gandaia continuava firme entre os mui infinitos quaquilhões de imortais-mortais-imortais. Mas São Pedro, os arcanjos e nossos amigos escritores recém-mortos já não prestavam atenção na balbúrdia. Estavam pensando no que fazer, e se era possível fazer alguma coisa.

Sentado numa nuvem e, com a mão direita apoiando o queixo, o guardião do portão do Paraíso resmungava:

– É proibido interferir na história humana. Desde a criação, o homem faz o que lhe dá na cabeça. Só vejo uma solução, e isso eu posso fazer: me transformar num homem como vocês e, juntos, voltarmos à Terra.

– Desconfio que não vai adiantar nada – disse Sérgio, sempre céptico. – As mentiras estão entranhadas no comportamento dos poderosos, e eles são egoístas demais para mudarem de atitude ou escutarem conselhos. Conquistaram o poder e não pensam em outra coisa senão manter o poder.

– Mas podemos tentar, não podemos? – argumentou o velho Guardião. – Ei, Jimmy, esse seu suprimento ainda aguenta uma viagem à Terra?

Jimi riu:

– A palavra certa é inesgotável. De onde tiro um baseado brota outro.

– Beleza – aprovou São Pedro. – Então chama aí o de-pernas-tortas e vamos, na companhia de nossos amigos, fazer uma viagem famosa. Pode nem dar resultado, mas com certeza nos divertiremos muito.

E num vapt-vupt desceram do portão do Paraíso à Terra. Só não tinham certeza se iam baixar em 2020 ou em 2084: a máquina do tempo do Paraíso era um dos modelos mais primitivos e baratos, que foi o que a grana celestial deu para comprar.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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