Os meus olhos brilharão como os da fera

Enviado por Felipe A. P. L. Costa

‘Os meus olhos brilharão como os da fera’

Por F. Ponce de León, do blogue Poesia contra a guerra

Em postagem anterior (ver ‘Poetas de abril, mês crudelíssimo’), listei o nome de poetas da língua portuguesa que nasceram em um mês abril.

Pois eis aqui o nome de alguns que nasceram em um mês de maio (entre parêntesis, o dia e o ano de nascimento): Luís [Norton Barreto] Murat (4, 1861); Ascânio Lopes [Quatorzevoltas] (11, 1906); Raimundo [da Mota de Azevedo] Correia (13, 1859); Ronald de Carvalho (16, 1893) e Mário de Sá-Carneiro (19, 1890).

A lista, extraída da coletânea Poesia contra a guerra (2015), é pequena, mas abriga autores expressivos, ainda que nem todos devam ser igualmente familiares ao leitor.

Como escrevi em postagem anterior, algumas preciosidades presentes no livro foram escritas por autores esquecidos ou relativamente pouco conhecidos. Os dois poemas reproduzidos a seguir ilustram o que estou dizendo. (Entre colchetes, ao lado do título, cito o ano de publicação.)

*

Brasil [1926]

Ronald de Carvalho

A Fernando Haroldo

Nesta hora de sol puro

palmas paradas

pedras polidas

claridades

faíscas

cintilações

 

Eu ouço o canto enorme do Brasil!

 

Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu correndo na ponta das rochas nuas, empinando-se no ar molhado, batendo com as patas de água na manhã de bolhas e pingos verdes;

 

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara e grave melodia, Amazonas, melodia da tua onda lenta de óleo espesso, que se avoluma e se avoluma, lambe o barro das barrancas, morde raízes, puxa ilhas e empurra o oceano mole como um touro picado de farpas, varas, galhos e folhagens;

 

Eu ouço a terra que estala no ventre quente do nordeste, a terra que ferve na planta do pé de bronze do cangaceiro, a terra que se esboroa e rola em surdas bolas pelas estradas de Juazeiro, e quebra-se em crostas secas, esturricadas no Crato chato;

 

Eu ouço o chiar das caatingas – trilos, pios, pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos que picam, bordões que ressoam retesos, tímpanos que vibram límpidos, papos que estufam, asas que zinem zinem rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas longas, langues – caatingas debaixo do céu!

Eu ouço os arroios que riem, pulando na garupa dos dourados gulosos, mexendo com os bagres no limo das luras e das locas;

 

Eu ouço as moendas espremendo canas, o glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o tinir da tigelinhas nas seringueiras;

e machados que disparam caminhos,

e serras que toram troncos,

e matilhas de ‘Corta Vento’, ‘Rompe-Ferro’, ‘Faíscas’ e ‘Tubarões’ acuando suçuaranas e maçarocas,

e mangues borbulhando na luz,

e caititus tatalando as queixadas para os jacarés que dormem no tijuco morno dos igapós.

 

Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando, vociferando!

Redes que se balançam,

sereias que apitam,

usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam,

tubos que explodem,

guindastes que giram,

rodas que batem,

trilhos que trepidam,

rumor de coxilhas e planaltos, campainhas, relinchos, aboiados e mugidos,

repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro Preto, Bahia, Congonhas, Sabará,

vaias de Bolsas empinando números como papagaios,

tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,

vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão!

 

Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.

Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar

a conversa dos fazendeiros nos cafezais,

a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,

a conversa dos operários nos fornos de aço,

a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias,

a conversa dos coronéis nas varandas das roças.

 

Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro

palmas paradas

pedras polidas

claridades

brilhos

faíscas

cintilações

 

é o canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços, onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno, confiante,

o homem de amanhã!

*

Sanatório [1929]

Ascânio Lopes

 

Logo, quando os corredores ficarem vazios,

e todo o Sanatório adormecer,

a febre dos tísicos entrará no meu quarto

trazida de manso pela mão da noite.

 

Então minha testa começará a arder,

todo meu corpo magro sofrerá.

E eu rolarei ansiado no leito

com o peito opresso e de garganta seca.

 

Lá fora haverá um vento mau

e as árvores sacudidas darão medo.

Ah! os meus olhos brilharão, procurando

a Morte que quer entrar no meu quarto.

 

Os meus olhos brilharão como os da fera

que defende a entrada de seu fojo.

*

Redação

Redação

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