Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Relógio das flores

Por Maira Vasconcelos

Às vezes, a palavra desaba tritura-se recorta-se e não tenho a próxima linha. Continuarei este escrito feito somente a ti, mundo? Agora que meu festim é esse monte de puro papel picado voando pelo ar. Voando incerto trágico como giros de Chopin. Mas tudo será escrito, escreverei, tão voluptuosa vitoriosa tomada por redemoinhos de violinos ajeitando-se finíssimos e velozes como patas vivas de insetos calçando-se no ambiente. Jamais perdem aprumo. Formando assim a composição de mais uma estrofe. De mais este parágrafo cheio de rasteiras e giratórias palavras.

Com a impressão de que meus sapatos têm furos mofos velharias, qualquer coisa que num atrito junto a terra, tudo entra, até mesmo esta flor que escolhi esmagá-la e esquecer. Vivo atravessada: entre espécies animais e florais. Tanta coisa entra pelos pés e permeia todo corpo assim exposto ao mundo agulhado. Minhas mãos escrevem, não podem perder tanto tempo com a maciez caprichosa de uma flor. Se eu as detenho, e olhando vasos repletos, ah, sou severa e cúmplice.

Qual a hora certa para pisar em flores? Olharei o relógio o momento o instante exatos do próximo esmagar. Agora são meia-noite e sete minutos (00h07), exatamente, e meus pés estão suspensos no ar. Depois pisarei minhas próprias flores e ninguém mais subirá num palco a dizer: segure esta rosa. Desistam, minhas flores estão guardadas e não sei quando saem à vista de cada sol. Se tantas flores se despedaçam, porque as minhas haveriam de brilhar e reviver constantemente, gastando tamanha energia rebelde? Não há resposta, há vivências inquestionavelmente insuportáveis. Ignoro: sim, sou forte. Na antipatia de ser flor flor flor, virarei um bicho que não ousa inalar florações pelos jardins: serei este animal que tem respeito demais pela espessura fina e frágil da vida, olhando de longe o entendimento do segundo da morte. Observadores têm um modo plano achatado de estarem presentes, como se das montanhas olhassem o mundo.

O sol despontou no sapato novo que me dá sustento, passo pelos buracos que em momentos me atropelam mostrando que a vida é frágil. Piso. Uma mulher inconsequentemente desmedida no tempo-espaço fala uma frase solta. Meu tempo é uma chuva de dezembro. Meu relógio é bonito, medirá a hora em que flores serão deixadas pelo caminho. Eu sigo. Em dois minutos, três horas, sendo inevitavelmente vívida e fervorosa. Meu tempo é também a chuva de todo novembro. Yo te quiero. Qual é o seu tempo? Se meu amor morreu, pergunto isso ao vento para que na esquina digam que estou louca, se falando ao ar puro encontram-me feliz. Deixem-me ser livre numa oração falsamente sem sentido.

Tanto e quanto eu poderia angariar, mas necessito apenas calma e sei que nada possuo e me permito ao vazio. Um vazio que é estirado e sem tempo determinado. Não cai. Espaço natural da escrita que por momentos se retira. Numa jogada. Não puxa o tapete, estende, faz de ti um ser importante o suficiente para necessitá-la, como um raio de sol puro na tangente dos trópicos vermelhos. Hoje tenho comigo apenas a noção de sobrevivência para escrever isso que se lê, e não o perfeito entendimento das palavras. Elas se re-conhecem pelo caminho.

Meu espírito muda de tons, sofre variações. Hoje sua tonalidade é introspectiva nublada e não possui fluxo para direcionar bondades. Só sabe ficar imóvel, até conseguir se nutrir no ponto da luz flamante geradora. Mude de tom, mude de tom. É ruim ficar sem chama. Estão escutando? Meu amarelo quando desmorona em aspecto horripilante é como se ele nunca tivesse existido. Sua falta de medida é meu pé na estrada. Ninguém sabe como navego querendo colorir o mundo. Vou colorir uma rua uma estrada uma linha de trem, cores e mais cores apenas para eu pisar passar viver num mundo acolhedor.

A consciência de mim mesma, às vezes, apenas me destroça. Em pedaços, recolho o que sobra das facetas descobertas. Escorrem cores. Quantos quadros! Rígida, resistindo a cada novidade, como se fosse normal nunca terminar de encontrar um espelho. Engatinhando solitária, se talvez ainda pouco farejo e percebo, quando acho que cheguei ao ponto do meu encontro, ah, ledo engano de um ser fundo, por que sempre parece tão pouco e menos? E às vezes acho que já andei tanto.

Quando me perguntarem: tudo bem?, por que você possui uma atenção desorganizada?, a sua vida assim será apenas ruim? A todos aprenderei a dizer: recito longos pensamentos de pássaros e coloridas flores, todos os dias, todos os dias necessito visitá-los matá-los ou ressuscitá-los em seus segredos joias e cristais, e não sei se isso é bom ou ruim, mas sou apenas essa tentativa intransigente de viver tranquilamente com perguntas e afirmações queixosas do que ninguém sabe o que é, se o trabalho não é seu.

Almejo um tempo, um milímetro, um segundo de compreensão que talvez demore anos e nunca chegue. Vou criar no rasgo do céu mais um escrito, até vê-lo cair em chuvas e assim pegar o mês que me corresponde. A porta do meu quarto bate por outras mensagens. Toda reclusão é um fardo. Não sei por que preciso entrar no nodoso, na lama que engole a mão de alguns e não a de todos, a minha!, vivendo da criatividade que é um pêndulo, e sua variação abrupta é a certeza de que a seriedade produtiva é o único mecanismo de tratá-la sem nos derraparmos. Um dia sonhei não ser uma mulher séria, talvez, esse, meu sonho mais desejoso. Mas é preciso insistir, existir com a esperança de que, um dia, todos acreditarão na realidade da criatividade, deixando-a ser no erro e no diferente, deixando-a também quieta sem que dela tudo tenham que extrair. O show acabou a cortina se fechou. Voltem!, voltem!, toda criatividade deve trabalhar obsessivamente para provar que vive entre todos. Estamos aqui. Se apenas a dose estupenda da criatividade altera nossas faces a derramarem-se pela simples sensível arte de uma flor. Todos gostamos muito de flores, afinal.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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