Bilhões de espectros humanos esperavam, sonolentos e entediados, a abertura da porta do Paraíso para que, finalmente, pudessem depositar, nos pratos da balança do Bem e do Mal, seus haveres, malfazeres e deveres mundanos, como é do conhecimento geral.
Por isso se viam tantas valises, malas, baús, sacolas, embornais e mochilas ao lado dos espectros. Na maioria dos casos, esses pertences estavam presos por correntes e cadeados às pernas espectrais, já que a maioria vinha de países onde a lei deixava a desejar, não se podendo confiar quer nos tribunais inferiores, quer nos superiores. Aliás, era voz corrente nos referidos países, bem como em todos os demais, que a ocasião faz o ladrão, de modo que desconfiar e confiar eram apenas as duas faces da mesma moeda, lançada ao acaso no par ou ímpar da contenda terrena por merecimento e mais-valia, o mais das vezes imerecidos.
Como os demais, Sérgio esperava, entediado e sonolento. O tamanho de suas malas variava, sendo que a maior delas continha-lhe as obras completas, tanto em português quanto nas línguas para as quais foram vertidas. Uma maleta de mão das mais pequetitas abrigava seus malfeitos. Mas, a se aferir pelos demais espectros, a maioria dos quais trazia uma só mala, enorme, de benfeitorias, Sérgio podia ser considerado um dos mais honestos ex-viventes que ali, sonolentos e entediados, esperavam.
Dos amigos que no capítulo anterior lhe fizeram fugaz companhia, ou seja, os agora desaparecidos Luís Gonzaga Vieira e Manoel Lobato, os quais nas vindouras semanas serão por mim aqui homenageados, como parceiros diletos na luta literária que lutei, nem sinal, espectral ou fantasmal ou mesmo anímico.
Vislumbramos, no entanto, a cerca de (pelos parâmetros humanos, repito) 500 metros, a sombra manquitolante, calva e rotunda, do já quase esquecido cineasta Milton Gontijo, o qual, em certa noite-madrugada cariocal, em nossa dupla companhia bebeu e entornou tantos copos , sem perder o rumo, que na memória o retive, e à bebedeira.
PAUSA LAMENTATIVA
Sérgio e Miltão que me perdoem, se aqui me intrometo, mas devo confessar o mal que nestes dias me acomete, qual seja uma brutal tendinite, que me deixa em brasas o ombro, e pendente como se morta a mão direita, fenômeno que me obriga a digitar este texto com o indicador da mão esquerda, cujo adjutório agradeço.
Confesso ademais que, como se a tendinite ao cérebro me envolvesse e tornasse inúteis minhas antigamente espertíssimas sinapses, sou incapaz de ir muito mais longe do que este ponto, deixando, portanto, as invenções literárias para, de maneira a ocupar o espaço que aqui me resta, enumerar as hipóteses de malefícios que me podem vir a suceder, pela ingestão do remédio que deverá me curar da moléstia, deixando-me como novo e novamente apto a retomar esta paradisíaca crônica. Ei-los em ordem de possível ocorrência, meu amigo Sérgio que me perdoe (de novo):
“Reações muito comuns (>1/100 e <1/10): cefaleia, tontura, insônia, tremor, dor, hemorragia gastrointestinal, perfuração gastrointestinal, úlceras gastrointestinais, diarreia, indigestão, náusea, vômitos, constipação, flatulência, dor abdominal, pirose, retenção de fluidos corpóreos, inchaço, rash, prurido, edema facial, anemia, distúrbios de coagulação, broncoespasmo, rinite, zumbido, febre, doença viral” – e mais onze itens de menor ocorrência e em semelhante cantilena. E então me pergunto: mas isso é remédio ou veneno?
E então vos pergunto, leitor: pode-se ser escritor, soterrado por tais ameaças?
EXPLICAÇÃO AOS NOVATOS
Durante alguns anos, no início de nossa carreira literária, eu e Sérgio Sant’Anna nos divertimos para caralho inventando, em parceria, autores, livros, editoras, peças de teatro e mil outras fantasias delirantes, que nunca se tornaram realidade. Espero que este texto, ao retratar meu amigo às portas do Paraíso, possa estar à altura daquele tempo, e daquelas aventuras.
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