Três recortes da STA, minha fictícia agência de publicidade, por Sebastião Nunes

Três recortes da STA, minha fictícia agência de publicidade

por Sebastião Nunes

Entre 1980 e 2000 publiquei quatro edições de um livro que me dá saudade. Por conta dessa lembrança boa, e porque “Somos todos assassinos”, satírico e corrosivo, me parece bastante atual, estou preparando uma quinta edição. Cada “capítulo” é estruturado como um anúncio impresso, ocupando uma ou duas páginas no máximo, com título, ilustração e texto, seguindo o padrão da época em jornais e revistas. Reproduzo aqui três dos textos avulsos, ilustrados com um outdoor “patrocinado” pela STA.

 

O PROGRESSO VOCÊ É QUEM FAZ

Vim de Pernambuco sem emprego e sem coragem, mas meu pai era rico e estudei administração de empresas na PUC e doutorei-me nos Estados Unidos.

Voltei dos Estados Unidos magro e desanimado, mas ganhei apartamento no Leblon, cartões de crédito e pequeno carro esporte italiano.

Instalei-me na profissão como um estrangeiro, mas a carta de recomendação de meu pai encaminhou-me ao ministro que por sua vez me encaminhou ao Presidente do Conselho da poderosa multi de refrigerantes.

Produto por produto todos são iguais e finalmente, aos 26 anos de idade, iniciei minha carreira profissional, como assessor da Diretoria de Marketing.

Fodi e fui fodido, sacaneei e fui sacaneado, humilhei e fui humilhado, puxei mil sacos e fiquei com o saco doente de tanto ser puxado. Mas afinal, aos 28 anos, pedi demissão da poderosa multi de refrigerantes a convite da poderosa multi de computadores.

Aos 30 anos, chego ao ponto mais alto da carreira, como Diretor de Marketing para a América Latina, e estou pressionando meu Presidente para que pressione o governador de maneira que eu seja pressionado para aceitar a Secretaria da Indústria e Comércio no próximo governo.

Eles sabem que podem contar comigo da mesma maneira como eu sei que posso contar com eles, porque uma mão lava a outra e o progresso exige sacrifícios e desprendimento pessoal, como se diz gaiatamente por aí.

E agora, neste exato momento, quando me preocupo com este informe reservado à Presidência sobre o perigoso comportamento da fabriqueta brasileira que vem infringindo as regras do jogo, tenho de interromper trabalho tão importante para receber esse bando de idiotas da STA, tentando me vender mais uma campanha, que eles nunca conseguem fazer direito.

A voz seca, dura, impessoal (ao interfone):

– Manda entrar. Manda servir café e água. Favor me interromper dentro de l5 minutos com um chamado urgente da Presidência.

 

PARA QUEM SABE O QUE QUER

Um homem gordo, tenso, desajustado. Seu avô era fascista, rico e poderoso, e escrevia longos e duros artigos contra os movimentos populares em revistas populares.

O pai, ao contrário, envolvido pelo rude turbilhão de seu tempo, apagou-se com seu fascismo, embora o exibisse como uma condecoração nos alegres saraus familiares e nos longos papos de bar com os amigos.

Trancados em cofre-forte, guardava como joias os muitos volumes luxuosos que reuniam os brilhantes discursos do velho pai na Academia Brasileira de Letras, o mais fascista de todos os 40 imortais. Morreu cinzento e não deixou saudades.

O neto, que você não está vendo, é gordo e tenso e desajustado. Trabalha em publicidade e odeia a profissão. Vive numa dessas democracias de fantasia e teme se tornar tão fascista quanto o pai e o avô. Se fosse menos tenso e desajustado, teria um belo futuro como Supervisor de Atendimento na STA. Mas gordo, tenso, desajustado, desconfia de si mesmo e procura descobrir, nas próprias palavras e gestos, o sinal que o levará, afinal, a assumir o destino legado pelo pai e pelo avô.

 

ANATOMIA DE UM ANÚNCIO

Para fazer um bom anúncio você deve, em primeiro lugar, despir-se de preconceitos ou preocupações sociais. Esta é a condição sinequaquá.

Se você exibe, porém, tais aberrações psicológicas, poderá enganar a alguns durante algum tempo, mas não conseguirá enganar a todos todo o tempo. Estou falando de seus patrões, colegas e até de você mesmo.

Quanto ao público, você sempre conseguirá enganá-lo, mas seus textos (ou leiautes ou roteiros) sofrerão cortes, mutilações, acréscimos e adendos, que o ocuparão muito mais tempo que o necessário.

Para falar a verdade, em muitas ocupações civis você correrá os mesmos riscos, mas raramente sofrerá muito.

Já em publicidade, meu filho, estômago fraco é sinônimo de úlcera gastroduodenal, uma doença psicossomática decorrente quase sempre de inquietações intelectuais e de desajustamentos. Excluo, naturalmente, os colegas de São Paulo, um país civilizado.

Por mais profissional (leia-se neutro) que você seja, sempre haverá um anúncio que atingirá o limite de sua capacidade de engolir sem vomitar. E você não pode vomitar.

Haverá sempre (e com abusiva frequência) o anúncio em que você venderá seu pai, sua mãe, sua alma, seu país, seus ideais, suas convicções mais caras, a cultura de seu povo, o sonho de libertação de seus amigos.

Isto é piegas. Decerto que é. Mas é então que a úlcera atacará e os pesadelos o acordarão, suando frio, em plena madrugada.

Mas você pode estar na outra metade: a dos animais ruminantes, que assimilam tudo. Neste caso, passemos à segunda condição para fazer um bom anúncio.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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