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Vida circense, por Maira Vasconcelos

 

Por Maira Vasconcelos

O caminho da solidez racional intelectual é a maior das mentiras em mim contida. É como querer ensinar, a duras penas, um animal a falar o dialeto humano aplaudido condecorado e fiel ao ambiente. O circo existirá sempre num espaço por si hostil e repugnante. E estar em jaulas sem reação contrária aos ferros seria um vexame aos meus olhos diante do espelho. Esgarço. Minhas mãos são desgarradoras das formas e passam por entre: entre as insistentes ferrosas molduras externas. Meu lado animal berra um sopro por dia. Este animal que são todos os sentidos aglutinados a não-querer um corpo devoto. Se tanto a mente trafega espiritualiza ilumina e aceita as mais fantasiosas possibilidades de produção artística, a quanto queira por onde queira se embrenhar, o corpo nessa sintonia não poderá então ser ereto. Nasci torta. O entortamento das estruturas ósseas de uma mulher que passa desliza mais facilmente pelos ferros pelos moldes. Tenho ditados que nasceram para serem lidos e escritos por mim mesma. Não ressoo voz alheia, se para sair das presas grades e penúrias do ambiente necessito apenas as forças do meu próprio corpo e mente. E ao dar voz à minha natureza animal-florida, diante de pedras descobri-la, talvez isso borre em mim um retrato contraditoriamente fecundo pela racionalidade intelectual. Toda natureza humana, sim, todas as flores, pássaros, voos, a tigresa na sombra, o gato amuado, todos eles que desenham minhas peles, ao expressarem-se passarão pelo crivo da racionalidade, pois pois se não devemos falar sozinhos, como isso seria improdutivo!, se a comunicação é nosso sentido de aglutinamento. Porque a fala a expressão a língua a enunciação provocam pavor de vida. Sendo isso que é a vida em seu estado mais pululante. A expressão de uma fala própria criativa necessária como sobrevivência: no ar. Enquanto o animal a flor, de cada um, necessitam apenas reconhecimento de igualdade de igualdade perante toda manifestação humana. A arte não é expressão superior-inferior porque a arte é o igual. Porque contido em nós está: cada flor cada animal terá reciprocidade em nossos corpos duros ossos. Mas quem as abunda, ah, todo indivíduo que da flora da fauna de toda natura se deixa preencher, como será inevitável ver-se diante do cercado da lona do piso de um circo que define as palmas e o desprezo, o modo, e talvez o modo seja o pior dos chicotes com o qual pensam domar animais. Quando o domínio da atrevida animalidade da flor que seca-molha morre-renasce é de incumbência individual, cada-um-sabe-de-si, a grade não pertence à realidade de nenhum humano de nenhum animal, a grade não pertence à realidade de nenhum humano que dessas fontes naturais-florais deseja beber. Se caída vejo-me em redomas da racionalidade e da intelectualidade é tão somente porque da contradição será sempre impossível fugir. E o caminho da solidez racional intelectual seria também a maior das verdades em mim contida. Senão, eu não falaria. E se falo-escrevo-recito toda natura em mim alojada, ao mesmo tempo as grades por isso crescem, as grades por isso crescem envoltas a um corpo arredio desconjuntado. Sempre pronto a resistir e resistindo. Como se eu pedisse o circo, meu Deus!, como se eu pedisse o circo até mesmo cada vez que repito a esdrúxula divindade das coisas. Mas, não, nenhuma existência justifica ser moldada gradeada. Talvez, o circo seja das manifestações mais genuínas do ser humano que nunca conseguirá naturalizar o convívio com sua animalidade e flora a ponto de fazê-las belamente vulgar comum e distraídas. 

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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