Uma vida em prol da democracia e solidariedade – Sobre a morte de Paul Singer, por Andreas Novy

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: Reprodução/Facebook

Por Andrea Novys¹

Tradução de Peter Neumann, especial para o GGN

“Amo a democracia,
amo a economia solidária,
amo tudo o que é democrático.
A democracia nos possibilita construir a nossa felicidade de modo coletivo. Mas, diga-se, não apenas a nossa felicidade, mas também a nossa infelicidade.”

 

Paul Singer

 

Nascer em Viena, mas abandonar a cidade mais tarde parece permitir a construção de biografias impressionantes: Marie Jahoda, Gerda Lerner, Karl Popper, Karl Polanyi, Friedrich Hayek e Paul Lazarsfeld são apenas alguns representantes proeminentes da pesquisa e do pensamento do séc. XX.

Paul Singer também nasceu em Viena, em 24 de março de 1932. Faleceu em 16 de abril de 2018 em São Paulo. Com sua morte o mundo perde um combatente sensível, mas também incansável em prol da solidariedade e da democracia.

Paul Singer descende de uma família pequeno-burguesa de origem judaica. Nascido em Erlaa no Distrito de Liesing, remanesceu ligado até o fim da vida à sua cidade natal, à pátria, que o expulsou quando ele tinha oito anos de idade e organizou o genocídio. Não obstante, as suas memórias da infância eram positivas. Aproveitava cada visita a Viena para comer Beuschel, uma especialidade vienense feita com miúdos. Conheci Paul em 2005, quando ele proferiu em uma jornada sobre desenvolvimento na Áustria a palestra principal sobre Economia Solidária. Em 2009 a República da Áustria homenageou-o com a Grande Insígnia de Prata.

No entanto, o centro da sua vida passou a ser o Brasil. De exílio, os subtrópicos logo passaram a ser a pátria. Adquiriu a cidadania brasileira em 1954. Seus amigos nunca denominaram-no Paul, com a pronúncia alemã, mas dispensavam-lhe carinhosamente o prenome Paulo, com esse “au” longo, espichado do português do Brasil. A língua diz tudo. Paul Singer foi um cosmopolita, mas um cosmopolita expressamente brasileiro, com a sensibilidade aterrada em um país belíssimo, mas profundamente contraditório.

O exame retrospectivo dos seus 86 anos, ricos em vivências e realizações, revela a existência de dois fios, que perpassam a sua atuação: em primeiro lugar, a paixão por um mundo democrático e solidário, que o acompanhou até os últimos anos de vida e é uma razão suficiente para ver nele um modelo, não perder o otimismo, ainda que isso seja cada vez mais difícil para a inteligência. Em segundo lugar ele sempre foi também um andarilho em regiõesfronteiriças, nunca totalmente integrado, forasteiro em muitos lugares. Foi político, mas não foi aferrado ao poder. Foi professor, mas nunca um mero docente.

Paul Singer foi de 1989 a 1992 Secretário de Planejamento em São Paulo, metrópole de milhões de habitantes. De 2003 a 2016 foi Secretário Nacional de Economia Solidária do governo federal brasileiro. Conflitos de política partidária e jogos de poder lhe eram estranhos: tão estranhos que ocasionalmente a sua avaliação se me afigurava quase ingênua, por demasiado benevolente. Em 1980 ele ajudou a fundar o PT. Sua admiração por Lula sempre foi grande, mas não o impedia de criticar as transformações ocorridas com as participações em governos. Condenou a corrupção no seu partido e criticou a política econômica neoliberal de Dilma Rousseff, com a qual a presidenta não honrou as promessas da sua campanha eleitoral. Mesmo na condição de político, Paul Singer nunca deixou de ser um professor. Conduziu a sua Secretaria em Brasília, cuja direção assumiu aos 71 anos de idade, não como chefe e executivo, mas colocou sua autoridade moral e seu conhecimento a serviço daEconomia Solidária. Conduzia com soft power, com convicção e argumentos.

Embora professor e durante muitos anos titular na renomada Universidade de São Paulo (USP), sua carreira acadêmica foi atípica. Foi um paraquedista. Começou a vida profissional como eletrotécnico. Nessa profissão politizou-se e participou da “histórica” greve de um mês dos metalúrgicos em 1953, na companhia de outros 300.000 grevistas. Iniciou a sua carreira científica apenas em 1960. Doutorou-se em Sociologia em 1966. Em 1969, depois de uma estadia mais demorada nos EUA em Princeton, tornou-se professor na USP, mas foi expulso no mesmo ano pela ditadura militar em vias de radicalização. Para compreender os acontecimentos atuais – da Turquia até a Hungria e o Brasil –é importante reconhecer a fluidez das fronteiras entre a democracia controlada, regimes autoritários, ditaduras e totalitarismo. Ao passo que numerosos críticos do regime foram assassinados, Paul Singer “só” foi forçado a organizar as suas atividades científicas fora da universidade. Apoiados por patrocinadores estrangeiros – nessetocante também há paralelismos com tendências atuais – alguns cientistas expulsos da universidade fundaram o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) como instituição independente de pesquisa. Num país marcado pela censura, o CEBRAP foi um centro de vida intelectual. Seus princípios reitores eram o diálogo e a seriedade. Em condições difíceis, em meio a prisões arbitrárias e assassinatos políticos seletivos, o CEBRAP providenciou análises fundamentadas do “milagre brasileiro”, que por um lado produzia índices elevados de crescimento, por outro um aumento rasante da desigualdade. A orientação dialógica e nada dogmática do CEBRAP se evidencia também no fato de que ao lado de muitos outros futuros simpatizantes do PT Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil de 1995 a 2002, atuou no CEBRAP. Melanie, a esposa de Paul, defendia posições políticas próximas a FHC, cuja política era fortemente criticada por Paul. O amor do casal não ficou minimamente afetado com isso.

Com a redemocratização incipiente de 1979, Paul Singer retornou à universidade, de início à PUC de São Paulo, mais tarde à USP. Mas ele nunca se limitou a mera transmissão do saber, muito menos do saber da Economia enquanto disciplina. Sempre compreendeu a Economia como um ramo da Sociologia, aberta ao diálogo com outras disciplinas e perspectivas. A sua atitude sempre foi a do diálogo, do intercâmbio e do aprendizado em conjunto. Nesse sentido estava estreitamente ligado a Paulo Freire, o pedagogo da libertação no Brasil. Por isso foi uma grande honra quando Paul Singer aceitou em 2005 ser membroda Presidência Honorária do Centro Paulo Freire da Áustria. Honra a Universidade de Ciências Econômicas de Viena o fato de Paul Singer ainda ter encontrado tempo em 2013 para falar aos estudantes sobre as suas experiências.

A universidade como torre de marfim da ciência nunca lhe bastou. Sentia-se atraído pelo mundo, queria transformar e aprender. Depois da experiência no governo municipal de São Paulo (1989-1992), descobriu na década de 90 a Economia Solidária, à qual se sentiu ligado até a morte.

Desde a sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro em 1953, Paul Singer foi um socialista democrático. Lembro-me de um artigo de jornal, no qual ele comparou no segundo turno das eleições presidenciais de 1989 o modelo econômico defendido pelo PT e por Lula com o da “parceria social”praticada na Áustria. Com efeito, Luiz Inácio Lula da Silva procurou implementar a partir de 2003 um compromisso de classes definido por uma “parceria social”. Bem na tradição da socialdemocracia europeia, ele quis nivelar o fossos profundos entre ricos e pobres, brancos e negros, o andar de cima e o andar de baixo mediante a introdução de padrões mínimos de Estado Social, civilizar a sociedade escravagista e a sociedade das empregadas domésticas. Para muitos esquerdistas isso foi demasiado pouco; para muitos direitistas, foi demais. Fato é que em 2013 6,5 milhões de empregadas domésticas pela primeira vez tiveram acessoaos plenos direitos sociais e o Brasil pôde comunicar à FAO em 2014 que a fome em grande escala fora banida do país. Tomados isoladamente, esses dois fatos assinalam um marco na civilização do Brasil.

A Economia Solidária é uma nova forma de movimento cooperativista, de organização autônoma dos trabalhadores e da população sem-terra em reação à crise econômica. O engajamento de Paul Singer em prol dessas iniciativas da sociedade civil reflete a sua desilusão diante de estratégias de transformação por parte do Estado e dos partidos políticos. Ele tinha a convicção meditada de que a superação do capitalismo não pode ser decretada “de cima para baixo”, mas deve ser realizada “de baixo para cima”. Os 21 anos da ditadura militar lhe ensinaram a ver a democracia como valor, como princípio central de organização. Por isso a democracia na economia, tal como praticada no movimento cooperativista, seria o único caminho viável para o desenvolvimento de um novo modelo econômico.

Assim ele delimitou no seu livro Uma utopia militante a concepção de uma revolução social em oposição à da revolução política. Ao passo que a segunda direciona toda a energia política para a conquista do poder governamental e estatal, a revolução social é um processo lento de transformação da sociedade, que dura décadas e talvez séculos. Singer achava que de acordo com ela o abandono do capitalismo como revolução social duraria provavelmente um tempo comparável à da lenta imposição do capitalismo contra as estruturas feudais.

A vida de Paul Singer é uma biografia política, de início escrita involuntariamente, mais tarde construída de modo consciente. Em 1940, ele escapou por um triz ao terror nazista na Áustria. Mas mesmo na sua pátria nova ele se viu obrigado a sobreviver a 21 anos de ditadura. O aspecto mais trágico da sua vida provavelmente está no fato dele ter de assistir antes da sua morte que nem a democracia nem o progresso social são irrevogáveis. 52 anos depois do início da ditadura militar no Brasil em 1964, a presidenta democraticamente eleita foi destituída do cargo por um golpe parlamentar. Em 2016 uma das primeiras ações do governo ilegítimo de Michel Temer foi a extinção da Secretaria Nacional de Economia Solidária, dirigida por Paul Singer durante 13 anos. A “senzala” e a “casa grande” retornaram; os descendentes dos senhores coloniais definem novamente a política brasileira.

Hoje o Brasil está prestes a cair na ditadura. Aumentam os assassinatos com motivação política.Uma mídia de discurso único obriga a oposição ao silêncio e representantes importantes do Judiciário cometem violações continuadas de princípios fundamentais do Estado de Direito. Provavelmente não é um acaso que Paul Singer faleceu uma semana depois da prisão de Lula, o mais popular ex-presidente do Brasil.

Perdemos um amigo e um modelo, mas conservamos na memória a imagem de quemao longo da vida manteve a convicção de que outro mundo é possível.

¹ Andreas Novy é professor na Universidade de Ciências Econômicas de Viena e foi Coordenador Científico do Centro Paulo Freire. Publicou em 2013 com Paul Singer e Ana C. Fernandes The Linkagesbetween popular educationandsolidarityeconomy in Brazil. A historicalperspective,in: Moulaert F. et al (eds.). The International Handbook of Social Innovation. Collective Action, Social Learning and Transdisciplinary Research. Cheltenham, Edward Elgar, pp. 384-396. Em 2002 a Editora Vozes encerrou a prestigiada Coleção Zero à Esquerda com a publicação da sua tese de livre-docência, A des-ordem da periferia. 500 anos de espaço e poder no Brasil. Tradução de Peter Naumann. Prefácio de Paul Singer. Petrópolis, Vozes, 2002.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. 1979

         O que recordo do Prof. Paulo era a capacidade com a qual ele se comunicava em aula, e a humildade de um grande professor com tanta história e titulos chegar na PUCSP e ministrar aula de Economia 1 e 2, nunca nos tratando como moleques que eramos, sempre nos ensinando, com muito respeito pelas nossas deficiências.

          Quando começamos a realizar no CA “cursos de férias”, em julho de 79, o Prof. Paulo e Prof. Pedro Calil ( infelizmente morto em 1980 ), nos auxiliaram a trazer a nossos cursos – nas “mesas” do Tuquinha – pessoas como : Eduardo Suplicy, Graziano,  um Zé Serra ( que não existe mais ) e até , já que vinha todo pessoal do CEBRAP, o “enfant terrible da Maria Antonia “, o a época simpatico Fernando Henrique Cardoso ( tenho certificados – 3 – assinados por ele  ).

           Professor Paulo, sempre foi um democrata na acepção da palavra e da pratica.

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