A representatividade deve estar também na música diz a violonista Gabriele Leite, por Arnaldo Cardoso

Mulher, negra, filha de um casal de trabalhadores (mãe costureira e pai mecânico industrial), Gabriele se mostra bastante consciente do significado de suas conquistas.

A representatividade deve estar também na música diz a violonista Gabriele Leite

por Arnaldo Cardoso

A satisfação proporcionada pela audição das execuções ao violão da talentosa Gabriele Leite se repete na oportunidade de ouvi-la relatar momentos de sua trajetória pessoal e profissional.

Gabriele Leite, paulista natural de Cerquilho, bacharel em música pela UNESP e atualmente cursando seu mestrado em violão pela prestigiosa Manhattan School of Music, já acumula tantos feitos notáveis que causa surpresa que ela tenha apenas 23 anos.

Na última edição da lista Forbes Under 30 Gabriele figurou entre os 90 brasileiros abaixo dos 30 anos que mais se destacaram em suas áreas de atuação no ano de 2020. A lista reuniu nomes das Artes plásticas e dramáticas; Literatura; Música; Ciência e Educação; Design, Arquitetura e Urbanismo; Esportes; Moda, Gastronomia, entre outras.

Em 2019 Gabriele foi semifinalista e ganhadora do prêmio de “Melhor Participação Brasileira” no concurso internacional de violão de Koblenz, na Alemanha. Antes já tinha excursionado pela Argentina com o quarteto Abayomi onde teve calorosa recepção e numerosos elogios.

A pandemia do coronavírus que colocou o mundo em suspensão e que no Brasil, ainda se encontra em fase crítica, tem imposto a todos o exercício da resiliência, da adaptação e redimensionamento de planos. Gabriele que deveria ter se mudado em 2020 para Nova York para cursar seu mestrado, terminou aderindo ao módulo online e continuou em São Paulo, cumprindo com as regras de distanciamento social, o que para a classe artística tem sido um duplo sofrimento pois se abastecem da relação com o público.

Mulher, negra, filha de um casal de trabalhadores (mãe costureira e pai mecânico industrial), Gabriele se mostra bastante consciente do significado de suas conquistas. Na longa entrevista que me concedeu, cuja primeira parte se encontra abaixo, ela falou sobre a importância de projetos sociais dedicados à educação musical; a íntima relação entre carreira profissional e realização pessoal; sua defesa da importância do respeito e apoio dos pais nas escolhas pessoais dos filhos; do valor da transmissão de conhecimentos técnicos e teóricos por professores dedicados, assim como de seus conselhos e compartilhamento de experiências; o conceito de “performance historicamente informada” e o lugar da arte engajada; falou também sobre racismo e diversidade no Brasil e no mundo e sobre projetos de futuro.

AC – Você já contou em outras entrevistas que sempre teve o incentivo e apoio de seus pais para o estudo do violão, mas quando foi que você e eles perceberam que seu envolvimento com a música já não era apenas uma atividade lúdica, como é para a maioria das crianças que aprendem tocar um instrumento?

GL – Bem, eu acho que essa dimensão lúdica foi bem no início, nos primeiros acordes. O Projeto Guri é bem legal pois rola muitas conversas com professores, ouvimos palestrantes, sempre tratando do significado de ser músico, de seguir uma carreira, assim isso chegou muito cedo para mim. Tudo isso ficou ainda mais claro para mim entre os anos de 2009 e 2010 quando eu ingressei no Conservatório de Tatuí decidida a estudar violão, foi aí que a brincadeira ficou séria, eu precisava me deslocar de uma cidade para outra para estudar.

AC – Foi no Projeto Guri que você teve suas primeiras aulas de violão? Quanto tempo você permaneceu no Guri antes de ir para o Conservatório de Tatuí? Qual foi a principal diferença sentida por você entre os dois ambientes?

GL – As primeiras aulas que tive de violão foram no Projeto Guri onde permaneci por cinco anos, entre 2006 e 2011. Mesmo após o ingresso no Conservatório eu permaneci no Projeto Guri por um ano e meio. A carga de energia demandada no Conservatório é maior, inclusive em função dos vários conteúdos ensinados em aulas de coral, música de câmara, teoria. No Conservatório o contato com diversos professores e diferentes instrumentos, o pessoal da orquestra, tudo isso representou um salto em minha trajetória.

AC – Como era para você – ainda uma criança/adolescente – conciliar as obrigações da escola (ensinos fundamental e médio) com o estudo do violão? Sobrava tempo para outras atividades?

GL – Foi tudo tranquilo, eu não tive dificuldade de conciliar as atividades do Conservatório com os outros estudos. Sempre tive em mente a necessidade de organizar bem as coisas e definir algumas prioridades, mas ainda conseguia fazer sobrar algum tempo para o lazer. Aos poucos foi ficando mais puxado, havia semanas de provas em que exigiam mais foco, mas tudo sempre correu bem.

AC – Comumente para os jovens a conclusão do Ensino Médio é um momento de ansiedade em relação ao vestibular, para a escolha de um curso/profissão. Como foi esse momento para você?

GL – O momento do vestibular para mim foi só a confirmação do que eu já vinha fazendo, portanto, não tive dúvidas sobre para qual área eu iria prestar vestibular. Já em 2014 quando eu venci um concurso de música eu tive uma conversa com membros da banca, falamos sobre instituições que ofereciam curso de música, assim foi tudo bem tranquilo. Enquanto muitos amigos da escola estavam surtando sobre qual vestibular prestar eu já estava totalmente segura de minha escolha. Foi só estudar para as provas. A experiência que eu já tinha de exames, provas no Conservatório, como é comum na rotina de músicos, já me prepararam para esses momentos.

AC – Para a maioria dos jovens a questão da empregabilidade e perspectivas de renda são fatores decisivos na escolha de uma área para formação universitária. Mesmo sendo de uma família humilde de trabalhadores, esses fatores não pesaram na sua decisão?

GL – Com certeza a questão dos ganhos futuros pesa bastante na escolha de muitas pessoas, mas para mim, mesmo sabendo das dificuldades que minha família teve para me dar apoio e suporte eu queria fazer algo de que eu gostasse e não pela preocupação de ganhar dinheiro. Muitos pensam que o dinheiro é a resposta para tudo – não estou negando que o dinheiro é uma necessidade – mas acredito que é muito melhor dedicar-se para algo que realmente se quer fazer e conseguir disso um retorno financeiro, que no caso da música só vem no longo prazo. A carreira de músico demanda um investimento que não é só de dinheiro, mas de energia, de vida. Meus pais sempre foram muito tranquilos quanto a isso e sempre me estimularam. Vendo o exemplo de vida de meus pais eu sempre apostei na humildade e em fazer as coisas aos poucos, as pequenas primeiro e nunca desistir. O caminho é sempre muito tortuoso, a gente não sabe como vai ser, mas meus pais sempre ensinaram para mim e minha irmã mais velha que deveríamos fazer aquilo em que acreditávamos. Se na música eu me encontrava, era isso que eu deveria fazer.

AC – Ainda que você tenha feito seu bacharelado em música em uma ótima universidade pública brasileira (UNESP) você identifica lacunas em sua formação acadêmica? Tem buscado fortalecer alguma área específica, além daquelas diretamente relacionadas à prática e teoria musicais? 

GL – Eu acredito que não exista um curso perfeito e lacunas sempre existirão em nossa formação. A vivência, a prática passam a preencher algumas dessas lacunas. As parcerias com outros músicos, o lance colaborativo, a elaboração de projetos, a busca por patrocínios, toda a produção não tem como ser praticado na universidade. Quando eu estava na UNESP e, como bolsista do Cultura Artística tendo aulas excelentes de violão com o professor Paulo Martelli, além do avanço que obtive no aspecto de tocabilidade do violão, as vivências compartilhadas pelo Martelli foram decisivas para que eu traçasse novos caminhos para minha carreira. Esses professores fazem a diferença.  

AC – Você já comentou em outras entrevistas que nos primeiros anos de seu bacharelado as aulas com os professores Luciano Moraes e Gisela Nogueira foram marcantes. O que cada um deles deixou de maior contribuição em sua formação?

GL – Eu estudei com Luciano Moraes, ele foi o professor que me ensinou a estudar de maneira mais eficiente, usando a técnica pomodoro (baseada na ideia de que fluxos de trabalho divididos em blocos podem melhorar a agilidade do cérebro e estimular o foco). Isso me ajudou bastante naquele momento.

A professora Gisela Nogueira é uma pessoa incrível. Ela despertou minha consciência para a importância de compreender o que o compositor estava pensando na época de sua criação e quais movimentos estavam acontecendo ao seu redor. É o conceito de “performance historicamente informada”. A importância da contextualização. Uma marca das aulas da Gisela é que ela não impunha aos alunos sua maneira de tocar. Ela estimulava que cada um tocasse do seu jeito e pensasse a respeito dos por quês daquele jeito de tocar, que pensasse também no público e no repertório a ser tocado.

Eu sou muito grata a todos meus professores e, particularmente ao Luciano Moraes e a Gisela Nogueira pois eles tiveram uma importância muito significativa em minha formação.

AC – Com relação à semana que você passou se apresentando na Argentina, como você sentiu a recepção de sua música?

GL – Tocar na Argentina foi uma experiência extraordinária pois foi a primeira vez que me apesentei fora do país, levando para um público estrangeiro a música brasileira. Tocar com o quarteto Abayomi foi incrível e a recepção do público na Argentina foi maravilhosa. Como o Abayomi se dedica à música regional, pudemos mostrar para o público que o Brasil é musicalmente muito diverso, que não se restringe ao samba e ao choro. A reação do público foi muito bacana pois ouvimos comentários sobre a surpresa diante dessa diversidade.

AC – Em 2019 você participou do concurso internacional de música em Koblenz, na Alemanha, e recebeu muitos elogios por sua performance. Conte-nos como foi a master class com o músico David Husserl e qual foi o maior aprendizado nessa experiência?

GL – Participar do festival na Alemanha, em 2019, foi incrível. A master class com o David Husserl foi uma grande experiência e me faltam palavras para descrever. Uma lição que extraí do contato com Husserl foi que mesmo com sua grandiosidade, mundialmente reconhecida, ele é um cara de conversa fácil, acessível, disposto a contribuir com todos. Ele é empático, é humano para além de sua genialidade. Ele me incentivou a continuar tocando violão, a buscar sempre mais conhecimento.

AC – Sobre o conceito de “performance historicamente informada” a sua prática exige um trabalho de pesquisa e contextualização, não é mesmo? Você adota esse conceito em suas interpretações musicais? O posicionamento ideológico de um compositor é algo que influi sobre a formação do seu repertório como violonista?

GL – Sim, o conceito de “performance historicamente informada”, que eu conheci na faculdade, nos faz refletir sobre o que estamos tocando, para além das notas.

Eu sempre tento trazer isso para minhas execuções, mas não é algo fácil. Demanda do músico ouvir outros músicos, orquestras, óperas, para começar a perceber ao que remete cada obra.

O que o compositor pensa, suas ideias, fazem enorme diferença. Vale registrar que hoje em dia há uma maior proximidade entre o intérprete e o compositor, há mais trocas. Sabendo o que o compositor pensa você busca trazer isso para o seu fazer, o que, por fim, gera uma coisa nova. Eu acredito que isso é importante para a História da Música.

Em nossos dias isso tem vindo com mais força. É muito bom tocar sabendo o que o compositor pensa.

(A segunda parte da entrevista será publicada neste mesmo Jornal GGN.)

Arnaldo Cardoso é sociólogo e cientista político.

Redação

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