A tradução integral de Ivo Barroso

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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“Faço da tradução um programa de vida, amor fiel, constante e desesperado”, diz o tradutor dos sonetos de Shakespeare.

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A tradução integral de Ivo Barroso

por Gilberto Cruvinel e Emmanuel Santiago

agradecimento à Denise Bottmann pela colaboração imprescindível

Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpora assedia;
Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;
Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.
    Contra a foice do Tempo é vão combate,
    Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

William Shakespeare, Soneto 12 

O mineiro Ivo Barroso é um dos nossos maiores tradutores de prosa e poesia para a língua portuguesa. É o responsável por traduções definitivas para o português de poetas como Arthur Rimbaud, Eugenio Montale, T.S.Eliot, Charles Baudelaire e William Shakespeare.

Em sua longa trajetória, participou de publicações que foram marcos na imprensa brasileira como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e a Revista Senhor de que foi um dos fundadores.  Foi ainda assistente na edição de grandes enciclopédias como a Delta-Larousse, a Mirador e a Enciclopédia do Século XX. Em Portugal, foi redator-chefe da revista Seleções do Reader’s Digest. Trabalhou ao lado de figuras inesquecíveis das letras e do jornalismo como Mario Faustino, Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Carlos Lacerda e Ênio Silveira. Como tradutor, trabalhou e conviveu com figuras fundamentais da atividade como Antônio Houaiss, Manuel Bandeira e Paulo Rónai.  

Sua obra inclui realizações notáveis como a tradução da obra completa do poeta francês Arthur Rimbaud, o teatro completo de T. S. Eliot, a organização da edição da poesia e prosa de Charles Baudelaire (o mais completo repositório da produção baudelairiana em português) e a edição de um volume que analisa todas as inúmeras traduções em português e uma em francês (de Didier Lamaison) do poema “O Corvo” de Edgar Alan Poe. Neste trabalho, Ivo revelou ao público brasileiro o trabalho de um tradutor e jornalista mineiro pouco conhecido, Milton Amado, que fez a melhor tradução para o português do poema clássico de Poe em 1943.

O programa que norteia a atividade de tradução de Ivo é o que se pode chamar de tradução integral, ou seja, aquela que se empenha em manter na outra língua todos os aspectos semânticos do poema: o significado, a métrica, o esquema de rimas, os efeitos sonoros, o estilo e o efeito ou a qualidade poética. E um dos trabalhos de tradução que talvez mais lhe tenha trazido popularidade foi a versão para o português de 50 dos 154 sonetos de Shakespeare, trabalho notável de décadas, que mereceu do consagrado filólogo e tradutor do Ulysses de James Joyce, Antônio Houaiss, o prefácio ao livro William Shakespeare – 50 Sonetos, do qual destacamos:

 

“Mas houve e há traduções: as que, infiéis, são fiéis ao dito traduttore traditore, e as que, fiéis, são obras de amor. Que é, nas condições modernas, vale dizer, com a repetibilidade tipográfica, tradução de amor? A que se paga das penas do ato amoroso, mas não se paga venal, mercantil, monetariamente — em sociedades como as que vivemos, em que tudo tem seu preço, seja caráter, honra, dignidade, saber, pudor, generosidade, amor (pois que há amor comprável e pagável, e continua a havê-lo sem preço, para alguns, impagável). As traduções de amor aqui estão.

Quando se vê a  solução  de  Ivo  Barroso  —  numa  lição  da  dialética  do  senhor  e  do escravo,  que  impõe,  sendo  imposto,  que  subordina,  subordinando-se,  que  escraviza, escravizando-se —, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana

Pois, de fato, foi isso, é isso que nos dá Ivo Barroso com os seus sonetos shakespearianos, aceitando o mais desigual dos desafios, que é o do tradutor por amor — já que ele sabe que a um só original podem corresponder mil soluções e que a sua deve ser, por amor, a mais pertinente.

Quando a vida ameaça ser embrutecida por urgências desumanizadoras, é um bem dedicar algumas horas, ao longo de alguns meses, na comungação de arte-artifício-artesania tão belos como os que nos oferece Ivo Barroso com seus sonetos reinventados sobre a mais

pura matéria-prima da poética universal”

 

Nesta entrevista, concedida por email com exclusividade ao Jornal GGN, Ivo nos conta passagens marcantes de sua trajetória e analisa alguns aspectos curiosos do ofício de traduzir, como por exemplo, é preciso ser poeta para traduzir poesia?

 

Jornal GGN: O senhor nasceu na cidade de Ervália, região da Zona da Mata mineira. O acesso ao livro na sua cidade, por não ser tão fácil na época como é hoje, tornava-o um objeto de desejo na sua infância?

Ivo Barroso: Em Ervália não havia livrarias nem bancas de jornal, mas desde crianças recebíamos pelo correio o Suplemento Juvenil e o Gibi. Depois meu pai nos deu os 15 volumes do Tesouro da Juventude e fiz do Livro da Poesia a minha leitura predileta. O primeiro verso que aprendi de cor foi aquele “Deus”, de Casimiro, que me deslumbrava, não tanto pela lição religiosa explícita, mas pelo verso “Erguendo o dorso altivo sacudia /a branca espuma para o céu sereno”, que até hoje considero um dos mais belos da língua. Vieram depois as coleções Jackson, com Machado e Humberto de Campos, dos quais li algumas obras sem muito entusiasmo. Mas Humberto de Campos me ensinou um macete de que me vali depois para uma série de sonetos: ele começava o verso descrevendo uma personagem histórica ou mitológica e, ao se aproximar da chave de ouro, entrava com um “Assim como fulano, também eu andei etc.” Comparei-me a beduínos, a Ícaros, a judeus errantes por causa de alguns amores não correspondidos que só haviam na minha imaginação…   

 

Jornal GGN: Que influência tiveram no seu gosto pelas letras e pela poesia os livros que marcaram sua infância e os primeiros poetas com os quais teve contato (Machado de Assis, Humberto de Campos)? Augusto dos Anjos foi especialmente importante para o desenvolvimento do seu gosto pela poesia?

IB: Sobre Machado e Humberto de Campos já falei en passant; já a descoberta de Augusto dos Anjos se deu mais tarde, quando já morava no Rio (na década de 50), após encontrar por acaso, na estante de um vizinho, um exemplar do Eu. O dono do livro ficou tão desconcertado com meu entusiasmo pela leitura que acabou me dando de presente o volume. Era fatal que, como no caso de H. de Campos, eu passasse a fazer versos “científicos”, um dos quais começava “A vida é o resultante grau da orgânica / evolução da célula”, para perplexidade de meus professores de ciências no Colégio Vera Cruz.

 

Jornal GGN: O curso de línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia foi determinante na sua formação literária e no seu interesse pela tradução?  Que mestres foram importantes nesse período? Qual foi seu primeiro trabalho profissional como tradutor?

IB: Na Faculdade foi que fiz intimidade com a poesia, graças ao entusiasmo de professores como José Carlos Lisboa, Élcio Martins, Marcella Mortara e Luce Ciancio. Eu já me interessara antes pelo estudo de línguas e, num caderno com data de 1945, recolhi várias traduções de poetas espanhóis, franceses e ingleses. Mas foi na Faculdade que recebi os verdadeiros estímulos para com minhas pendências tradutórias. A professora de italiano distribuía em aula um poema mimeografado e nos pedia para traduzi-lo. Verti, em versos rimados e metrificados, um soneto de Miguelângelo, que foi lido em classe e comentado entre os demais colegas. Luce Ciancio foi quem mais me incentivou a continuar traduzindo e chegou mesmo, ela própria, a passar para o italiano alguns de meus poemas. Do ponto de vista profissional, traduzir por dinheiro, minha primeira experiência foi um livro de economia (o editor a quem fui pedir trabalho soube que eu era funcionário do Banco do Brasil).

 

Jornal GGN: Quais qualidades são necessárias para exercer com sucesso a atividade de tradutor de poesia? Para traduzir poesia é necessário ser poeta?

IB: A tradução de poesia exige um conhecimento fundamental da arte poética (métrica, rima, escolas, estilos, etc.), já que não se trata de reproduzir apenas o que está dito, mas igualmente a maneira, a forma pela qual foi dito. Embora haja casos esporádicos de tradutores de poesia não-poetas, eu diria que é necessário ser poeta, sim, e em tempo integral, ou seja, exercer ou ter exercido a função ao escrever seus próprios versos. Se o tradutor não sabe, por exemplo, o que é uma aliteração1 (ou qualquer outro recurso poético) não irá tentar reproduzi-la no texto traduzido, falseando ou pelo menos empobrecendo o resultado final de seu trabalho. Mas há – ou havia, no passado – casos contrários, ou seja, grandes poetas-tradutores que procederam diante do texto poético original como se ele estivesse em prosa, ignorando todos os recursos formais que o habilitavam como poesia. É o caso típico da tradução de “O Corvo”, de Poe, por Baudelaire e Mallarmé.  

 

Jornal GGN: Entre os grandes tradutores quando o senhor começou na atividade, algum o ajudou especialmente no início? Com quem aprendeu as técnicas do oficio? Que importância teve Manuel Bandeira no início de sua atividade como tradutor?

IB: Desde o início, sempre fui grande leitor de poesia traduzida, em especial a de Guilherme de Almeida e Onestaldo de Pennafort. Porém, meu deus-tradutor, por essa época, era mesmo o Carlos Potocarreiro, com sua genial versão do Cyrano de Bergerac, que me dava lições de inventividade e talento na resolução dos problemas linguísticos e no uso requintado de um vocabulário castiço. Mais tarde, encontrei em Bandeira o mestre exemplar e foi ele quem me incentivou a levar avante as minhas tentativas iniciais de traduzir os sonetos de Shakespeare. Também Mário Faustino e alguns outros escritores muito concorreram para que eu me dedicasse à tradução de poesia.   

 

Jornal GGN: Como era o prestígio da atividade de tradução quando começou e como é hoje?

IB: Quando comecei a traduzir a atividade não passava de um “bico”: traduzia-se para ganhar um dinheirinho a mais. A atividade era mal remunerada (e essa pecha parece ter perdurado por muito tempo…). O nome do tradutor era quase sempre omisso e só raramente aparecia embaixo do título do livro. Considerei-me um vitorioso o dia em que, pela primeira vez, meu nome saiu na capa de um livro.

Atualmente já começa a haver uma distinção entre os leitores, que procuram ver quem traduziu o livro que vai comprar, pois alguns nomes já lhe asseguram um selo de qualidade. Temos hoje uma verdadeira equipe de grandes e consagrados tradutores que são disputados pelas editoras quando insistem na qualidade de seus produtos.

 

Jornal GGN: Qual a grande dificuldade do trabalho de tradução? E o grande segredo? E o que é imprescindível?

IB: Traduzir, em geral, é um ato cansativo: enfrentar dezenas e mesmo centenas de páginas, uma após outra, linha por linha, palavra por palavra… Hoje, mesmo com o computador, que permite a justaposição de um dicionário ao texto que se está traduzindo, a tarefa exige um esforço considerável, e os tradutores mais rápidos conseguem no máximo vencer uma página a cada 20 minutos. Já no caso de traduzir poesia, tal cálculo não pode ser feito e qualquer tipo de avaliação será sempre precária. Não há grandes nem pequenos segredos para traduzir: conhecimento da língua, principalmente da língua pátria, bons vocabulários auxiliares, sendo imprescindível a honestidade em relação ao que se traduz.

 

Jornal GGN: O trabalho de tradução de um poema deve, segundo o senhor já disse, levar em conta o sentido do poema, os efeitos sonoros, a métrica, as rimas, o jogo de palavras, os trocadilhos, os duplos sentidos, as polissemias2 e ainda procurando obter o efeito poético equivalente na outra língua. Podemos comparar isso a uma atividade de malabarista ou de andar na corda bamba, como o senhor já afirmou em artigo. A imagem de um brinquedo de armar ou de encaixe, onde se vai por tentativa e erro até que se obtenha a solução que contemple todos os aspectos montados no verso é adequada para esse desafio?

IB: De um modo geral, o tradutor começa fazendo uma transposição literal do verso, ao mesmo tempo em que procura ajustá-la à métrica adotada (no meu caso, decassílabo). Dessas tentativas vai surgir o primeiro verso traduzido aceitável, isto se a palavra final ensejar a possibilidade de rima e, neste caso, consulta-se imediatamente o 3º verso para ver quais são as chances de acerto. Assim por diante, de modo que vamos tendo uma espécie de colcha de retalhos que precisa ser ajustada (métrica e rimicamente). Depois disso, a “colcha” deve ser reelaborada à procura de versos melhores, mais bem feitos, mais sonoros, mais significativos em português. O resultado final será uma colcha que perece feita sem as emendas dos retalhos, como um painel completo em si mesmo.

 

Jornal GGN: Se o tradutor não tem pleno domínio fonético na língua da qual traduz, não tem fluência oral, mesmo assim ele consegue imaginar como o verso todo, em conjunto, deveria soar, consegue perceber detalhes como, por exemplo, as aliterações em um verso?

IB: O ideal seria o tradutor conhecer o trabalho também do ponto de vista fonético, para avaliar sua fluência, seu andante ou seus tropeços. Não tendo esse domínio, resta-lhe a imaginação e a perícia para encontrar as equivalências requeridas.

 

Jornal GGN: A atividade de tradução muda sua perspectiva como leitor? E como escritor?

IB: No meu caso pessoal, a tradução de grandes poetas (Shakespeare, Rimbaud, Montale, etc) aguçou minha capacidade crítica, impondo-me uma rigorosa fiscalização da qualidade de meus próprios trabalhos. Ao mesmo tempo que me serviu de escola e incentivo.

 

Jornal GGN: Quem deu estímulo e apoio decisivos para sua primeira edição dos sonetos de Shakespeare traduzidos? Nas pesquisas que fiz, vi que pelos menos dois nomes aparecem ligados à edição das suas traduções dos sonetos: Antônio Houaiss e Carlos Lacerda. Pode nos contar qual foi a participação de cada um para a edição do livro?

IB: Devo inicialmente a Mário Faustino o incentivo para que eu me dedicasse à tradução de poesia. A Antônio Houaiss por analisar a qualidade literária dessas traduções e finalmente a Carlos Lacerda por tê-las editado.

 

Jornal GGN: Se, como o senhor já afirmou em relação ao professor e crítico francês Henri Meschonnic, nem sempre o conhecimento teórico assegura a realização poética, o que é preciso para poder enfrentar uma tradução como essa dos sonetos do Shakespeare?

IB: Dedicação integral. Fazer disso um programa de vida. Convívio permanente com a obra. Muito trabalho manual, dezenas e dezenas de tentativas para acertar um verso. Leituras infinitas de comentários, de outras traduções (até mesmo as péssimas), na sua e em outras línguas. Enfim, amor fiel, constante, desesperado, não correspondido pois que o resultado final será sempre aquém do que se espera.

 

Jornal GGN: Como foi a repercussão da sua tradução dos sonetos do Shakespeare? Gostaria de traduzi-los todos ou, ao menos publicar mais alguns (como os sonetos CXXIX e LXXXVII) quando alcançarem o padrão esperado, como o senhor afirma, ou já considera encerrado esse trabalho?

IB: A edição original saiu num coffee-table book (30X40 cm), encadernado, profusamente ilustrado, em edição fora do comércio destinada a bibliófilos. Pouco tempo depois, a Nova Fronteira lançou uma edição comercial com os 24 sonetos, recebendo críticas favoráveis. Edições sucessivas englobaram 30 sonetos e depois 42, finalizando com a dos 50 sonetos, que considero definitiva. Essas edições sequenciais e seus respectivos acréscimos atestam a ampla aceitação do público. Desde o princípio havia definido 50 sonetos (ou cerca de 1/3 do total) como sendo a minha meta, pois não estava disposto a passar boa parte de meu resto de vida envolvido com o Vate. Com essas duas últimas edições diferentes dos 50 sonetos considero encerrada a minha lida.   

 

Jornal GGN: Em relação à tradução de poesia, o senhor considera, no geral, mais difícil o verso metrificado ou o verso livre? Embora no verso metrificado haja mais limitações, como o número de sílabas, os ictos3 e as rimas (quando as há), parece que existem, também, critérios mais “objetivos” quanto ao sucesso da tradução, ao passo que, no verso livre, o ritmo e a musicalidade tendem a ser mais intangíveis e mais plásticos. O que o senhor pensa a respeito?

IB: Acho que a tradução de versos livres permite uma participação maior do tradutor ao transladar o sentido do poema pois deve manter principalmente o “clima” em que ele é expresso mediante uma escolha e posicionamento especial dos termos. Já traduzi uns dois ou três poemas em versos livres que me deram mais trabalho (indecisões, alternância de escolhas, etc.) do que os de forma fixa. O importante é manter a plasticidade do original, verso livre está mais próximo do pictórico do que do lírico.

 

Jornal GGN: Na tradução do poema “Mémoire”, de Rimbaud, o senhor optou por substituir os alexandrinos e as rimas do original pelo verso livre e branco. Em quais condições o senhor considera justificável a adaptação do esquema formal do texto fonte às especificidades de nossa língua?

IB: Aconteceu aqui precisamente o que procurei dizer na resposta anterior: as tentativas de manter métrica e rima desfiguravam totalmente o fluxo não cadenciado dos versos. Acabei me convencendo de que se tratava de um poema “plástico” e que era necessário manter suas – digamos – circunvoluções. A solução foi uma sequência musical de equivalências, se é que isto faz sentido.  Tal técnica não funcionaria no “Bateau Ivre”, que requer um equilíbrio especial entre ritmo e rimas, obtido pelo emprego virtuoso dos enjambements4 de alexandrinos5, e a sua não-manutenção desequilibraria totalmente o andamento do poema.

 

Jornal GGN: Nos anos 50, o senhor trabalhou na Revista Senhor desde o primeiro número, onde teve contato com grandes nomes do jornalismo como Nahum Sirotsky, Ivan Lessa, Luiz Lobo e Paulo Francis. Pode nos contar o quanto essa experiência foi desafiadora no que se refere aos trabalhos de tradução?

IB: Entre outros colaboradores de peso, havia o Paulo Francis, que já me conhecia do Suplemento Dominical [Jornal do Brasil]. Foi ele quem me entregou a tradução das novelas que saíam em cada número, todas de grandes qualidades literárias (Hemingway, Mary McCarthy, Mark Twain, etc.), além dos contos. A qualidade dos trabalhos permitiu-me a condição de colaborador e escrevi várias matérias além de publicar poemas meus e traduzidos. O espírito de equipe da Senhor me permitia manter a qualidade dos trabalhos traduzidos sem que a urgência de entrega nela interferisse.

 

Jornal GGN: A tradução da obra completa de Rimbaud foi um trabalho de toda uma vida. Além disso, a correspondência do escritor foi publicada de forma bastante original. Pode nos contar um pouco quais aspectos considera mais importantes nesse trabalho? Qual foi a importância de Ênio Silveira e Alceu Amoroso Lima nesse trabalho?

IB: A obra completa foi publicada em três volumes: Poesia, Prosa Poética e Correspondência. Para as cartas que Rimbaud trocou com a família durante sua permanência na África adotei o expediente de não só de traduzi-las mas comentar as circunstâncias em que foram escritas. Disso resultou uma biografia completa de Rimbaud lastreada em documentos. Dr. Alceu me elevou às alturas ao considerar extraordinária a minha tradução da “Saison”, conforme grifou na dedicatória do livro que me ofereceu já em nossa primeira leitura em conjunto. Ênio foi o editor corajoso que enfrentou a ditadura para manter o prefácio de Alceu na tradução.

 

Jornal GGN: O senhor escreveu uma série de artigos sobre o período que trabalhou com Antônio Houaiss nas Enciclopédias Delta-Larousse, em 1972, e Mirador, em 1976, e sobre o que aprendeu com o grande filólogo e consagrado tradutor. Conte-nos um pouco sobre sua grande amizade com Houaiss.

IB: Com Houaiss aprendi tudo, desde editoração até arte culinária. Fui seu assistente, seu colaborador, seu amigo e dele recebi vários prefácios e apreciações por escrito. Dediquei-lhe o primeiro volume da obra completa de Rimbaud e escrevi sobre sua obra tradutória (Ulysses) no livro congratulatório de seus 80 anos, que seus amigos patrocinaram. Em meu blog Gaveta do Ivo falo longamente sobre esse convívio e esse aprendizado.

 

Jornal GGN: O senhor publicou o livro O Corvo e suas traduções, onde resgata o trabalho do mineiro Milton Amado, um tradutor praticamente desconhecido, e demonstra de forma exemplar que a tradução dele para o poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe é genial e superior até às traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Conte-nos um pouco sobre essa história.

IB: Eu via com tristeza, na época em eu me iniciei no jornalismo, que o nome dos tradutores era quase sempre escamoteado das folhas de rosto das traduções, geralmente assinadas por figuras de destaque de nossas letras que apenas lhes haviam emprestado o nome. O caso mais gritante era o de Milton Amado, modesto escriba da província, que fizera uma tradução genial de “O Corvo”, de Allan Poe, e cujo nome nem sequer aparecia no livro. Tive oportunidade de escrever um artigo para a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, de que eu era um dos conselheiros, demonstrando criticamente que a tradução de Milton era superior às de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Creio haver contribuído um pouco para que o nome dos tradutores hoje apareça sempre nas folhas de rosto dos livros e, em alguns casos, até mesmo na própria capa.

 

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina, 
Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia 
E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais.”

 

Edgar Alan Poe, “O Corvo”, tradução de Milton Amado

 

Jornal GGN: Há algum autor fundamental da literatura universal que, na opinião do senhor, ainda não foi devidamente traduzido ao português?

IB: Certamente que há, mas tudo depende de critérios e gostos. Tenho insistido com os editores para que lancem no Brasil os livros do escritor sueco Stig Dagerman, até agora sem êxito. É pena, os editores portugueses já publicaram todos os seus livros. Em matéria de poesia, acho que até hoje não tivemos uma edição condigna do importantíssimo César Vallejo, que revolucionou a poesia hispano-americana. Eu gostaria de ter traduzido Pedro Salinas, que tanto encantou meus dias de faculdade…  

 

Jornal GGN: No momento, passamos por um intenso debate sobre a reforma do Ensino Médio, no qual o papel da literatura na formação intelectual e afetiva dos alunos praticamente não tem sido discutido. Na opinião do senhor, qual é a importância do ensino de literatura nas escolas? Considera que a poesia dos grandes poetas ainda é capaz de atingir o leitor jovem, de ainda o emocionar?

IB: Acho o ensino de literatura imprescindível, mormente agora que o livro está ameaçado de desaparecer. Os jovens são susceptíveis à boa poesia, o problema é que os meios de que ora dispõem (celular, TV e Internet) só lhes servem o que há de pior. A escola tem a obrigação de ensinar os valores perenes, pois só eles têm a capacidade de emocionar.

 

Por que meu verso é nu de novas galas,

Alheio a variações, bruscas mudanças;

Por que com o tempo não pude enxergá-las,

Novas modas, e métodos, e nuanças?

Porque eu escrevo sempre igual, e dou-me

De expressar sempre o velho galanteio,

Que cada verso quase diz meu nome,

Revelando seu berço e donde veio?

Ó doce amor, é sobre ti que escrevo,

Tu e o amor meu repertório vasto;

A velhas frases dou novo relevo

Para gastar de novo o que foi gasto:

   Pois como o sol é sempre novo e antigo

   Meu amor te rediz o que eu te digo.

 

William Shakespeare, Soneto 76

 

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Blog de Ivo Barroso: Gaveta do Ivo

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Notas

 

  1. Aliteração:  repetição de fonemas (unidade sonora) idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico ou sonoro na prosa poética e na poesia.

 

Veja, por exemplo, o verso de Caetano Veloso: 

 

“Acho que a chuva ajuda a gente se ver”.

 

Observe estes versos que compõe a coletânea “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles:

 

“Olha a bolha d’água

no galho!

Olha o orvalho!”

 

  1. Polissemia: os muitos significados que uma mesma palavra é capaz de assumir. No dia a dia, restringimos o uso da polissemia para evitar a ambiguidade, mas na literatura, e principalmente na poesia, ela é utilizada de maneira mais livre.

  2. Icto: em versificação, sílaba tônica que, de um verso a outro, deve aparecer sempre na mesma posição. Por exemplo, nos famosos versos de Camões “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida descontente,/ Repousa lá no Céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste”:

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

 

Al/

ma/

mi/

nha/

gen/

til/

que/

te/

par/

tis/

te

Tão/

ce/

do/

des/

ta/

vi/

da/

des/

con/

ten/

te

Re/

pou/

sa/

lá/

no/

Céu/

e/

ter/

na/

men/

te

E/

vi/

v’eu/

cá/

na/

ter/

ra/

sem/

pre/

tris/

te

                     
 

Verifica-se que, obrigatoriamente, as sextas e as décimas sílabas poéticas são tônicas (ictos).

  1. Enjambement: também conhecido como “cavalgamento” ou “encadeamento”, é a interrupção de uma unidade sintática ao final de um verso e sua continuidade no verso seguinte. Exemplo de Olavo Bilac:

 

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

 

Temos três casos de enjambements nesta estrofe: “(…) na estrada/ Da vida (…)”, “(…) presa à minha/ A tua mão (…)”, “(…) a vista deslumbrada/ Tive (…)”.

 

  1. Alexandrino: Verso de doze sílabas poéticas, como uma cesura (pausa) na sexta sílaba poética, dividindo o verso em dois hemistíquios.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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