A vida sob o “olho eletrônico de vidro”

Há algum tempo, uma Juíza do TRT/SP condenou o Carrefour e suas terceirizadas por danos morais em razão de revistas abusivas. No Acórdão a relatora confirmou a sentença de primeira instância que sugeria à empresa usar câmeras de vídeo para monitorar os empregados ao invés de fazê-los abaixar as calças e abrir as camisas ao sair do depósito.


 

“O autor e sua testemunha comprovaram que, primeiramente, havia um sorteio, seguido de uma revista por detectos de metais. Caso apresentasse qualquer sinal, o trabalhador era levado a uma sala, por um segurança a mando do Carrefour, onde era obrigado a se despir, permanecendo apenas de roupas íntimas. A vistoria era feita visualmente, no entanto, se o aparelho estivesse com problemas, era manual.

Como bem salientado pelo julgador, em sentença, a qual  acompanho: “Na hipótese dos autos, entende este Juízo que a adoção de sistemas de vigilância e de seguranças na empresa é um direito do  empreendedor.  Essas medidas, contudo, devem ser tomadas de  modo que não ofendam a dignidade do trabalhador, adotando as empresas, por exemplo, de meios mecânicos ou eletrônicos, como a instalação de câmeras”

Mencione-se, ainda mais, que tais revistas, além de  abusivas, eram completamente discriminatórias, já que não realizadas nos empregados (não terceirizados) da reclamada.

Nem se diga que o autor não se sentiu violado, quando afirmara que “não chegou a ter problemas com a revista”, uma vez que tal frase foi dita no sentido de que nunca foi encontrado objeto em seu poder.

Evidente, pois, a afronta ao art. 5º , X, da CF/88, bem como a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º , III).

Nessa medida, restou comprovado, de maneira inequívoca, que houve prejuízo ao patrimônio moral do autor, razão pela qual mantenho a condenação ao pagamento da indenização por danos morais, nos parâmetro s e limites definidos  na origem.” (TRT/SP, processo nº 0199800-39.2009.5.02.0381, Acórdão nº 20111395644, Relatora TANIA BIZARRO QUIRINO DE MORAIS,  publicado em 03/11/2011)

 

 

O uso de câmeras em substituição às revistas pessoais parece ser uma solução justa e plausível. Mas no fundo isto cria outro tipo de problema. Onde as câmeras serão colocadas e o que elas irão vigiar?

 

 

É óbvio que as câmeras não devem ser usadas nos vestiários e banheiros onde os empregados se trocam e fazem necessidades fisiológicas. A privacidade deles também é garantida pela CF/88 e não pode ser devassada sob a alegação de que o empregador tem o direito de proteger seu patrimônio. Até porque o patrimônio que o empregador tem interesse em proteger (máquinas, matéria prima, objetos de valor, etc..) está fora dos vestiários e banheiros e não dentro deles.

 

 

O uso adequado de câmeras, porém, pode acarretar outros problemas para a empresa. Um deles é fornecer provas aos empregados dos abusos cometidos pelo empregador e seus prepostos.

 

 

No próprio Carrefour, por exemplo, anos depois das famigeradas revistas serem abolidas um empregado foi acusado de roubo e cercado por vigias num local do depósito onde há câmeras de vídeo. Através de seu advogado ele relatou a Justiça do Trabalho que foi ameaçado e, depois, obrigado a se despir para provar que não havia roubado nada da empresa. O defensor da vítima requereu tutela antecipada para obter as gravações realizadas no dia e local antes que as mesmas sejam destruídas pela empresa. Dependendo do que os arquivos de vídeo contenham, nenhuma outra prova precisará ser feita do grave assédio moral a que o empregado foi submetido.

 

 

Além de eventualmente beneficiar o empregado é obvio que as câmeras também podem fornecer prova em favor do empregador. Foi o que ocorreu num outro caso envolvendo o Carrefour:
 

 

“Quanto ao ato de indisciplina por consumo dos produtos durante a jornada de trabalho e abanono da caixa, a prova foi favorável à defesa.

Em  seu depoimento pessoal à fl. 64, a autora admitiu que “primeiramente pagou pelos produtos e depois foi surpreendida com os mesmos, afirmando que estava em horário de trabalho.”

A sua testemunha Mariana Rodrigues Menezes confirmou a ocorrência dos fatos durante  o  expediente,  e  o  abandono  da  caixa  pela  reclamante  para fazer  o  pagamento em outra caixa (fl. 64)

“…a reclamante comprou tal bala em outro caixa, pois por norma da reclamada não poderia com comprá­-la em seu próprio caixa… pelo que sabe  esse foi o único motivo pelo qual a reclamante foi dispensada… a reclamante passou tal produto no caixa ao lado, não sabendo se a reclamante saiu de seu caixa para fazê-lo, mas acredita que tenha saído, que a compra foi no horário de trabalho…”

A  testemunha da reclamada, Silvano Correia da Silva, fiscal  da loja, presenciou a reclamante consumindo produtos no local de trabalho, e abringo a revista, que pegou no caixa ao lado da que operava (fl. 64/65):

“…   a   reclamante   não   trabalha   mais   na   reclamada   por   quebra   de  procedimento, ou seja por degustação no local de trabalho, afirmando que a reclamante comeu chocolate no  local de trabalho, fato ocorrido no dia 20/07/2010… presenciou a reclamante pegando um chocolate Baton e  uma   revista…  o   depoente   através   das   câmeras   viu   a  reclamante consumindo o  chocolate  e  abrindo  a  revista, tendo passado o caso para a ronda da loja, o qual acionou a gerente da loja… a reclamante foi até o caixa ao lado para pegar o chocolate e a revista…”

As   condutas   descritas   nos   relatos   orais   configuram   atos   de   indisciplina, denotando,  aliás,  certa  incúria  da  empregada  no  ambiente  de trabalho,  seja largando  a   sua  caixa  para  pegar  produtos  para  si,   seja  abrindo  revistas  e  consumindo   produtos   durante   sua   jornada   de   trabalho,   atitudes   essas reprováveis que, em seu conjunto, justificam a sua dispensa sumária, não se vislumbrando excesso de rigor.” (TRT/SP, processo nº 0000234­58.2011.5.02.0052, Acórdão nº   20120811400 relatora KYONG MI LEE, publicado em 25/07/2012)

 

 

Acima vimos dois casos diferentes. Um em que as filmagens podem ser úteis ao empregado e outro em que elas demonstraram a tese do empregador. O “olho eletrônico de vidro”, porém, pode ainda produzir provas ilícitas e de efeito dúplice.

 

 

As provas obtidas por meios ilícitos não podem ser admitidas no processo (art. 5º, inciso LVI, da CF/88). Em razão do desenvolvimento tecnológico não é difícil imaginar a possibilidade de obtenção ilícita de prova em vídeo. A invasão do computador de uma pessoa pode revelar vídeos privados que comprometam sua situação em disputas familiares, trabalhistas e industriais. Em razão do disposto na Lei Carolina Dieckmann (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm) o hacking ou hacktivismo é considerada uma atividade ilícita. A ilicitude da forma empregada para a obtenção da prova em vídeo contamina a mesma. Assim ela não poderia ser utilizada em Juízo (exceto contra a pessoa que a obteve e como prova de sua ação criminosa).

 

 

Há situações, entretanto, em que a prova lícita produzida pela câmera tanto beneficia quando prejudica o empregador. É o que vai ocorrer no caso desta notícia divulgada em 13/12/2013 http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-12-13/em-vez-de-vigiar-cameras-sao-usadas-para-focar-mulheres-no-interior-de-sp.html.  

 

 

É obvio que o relatório de uso da câmera e o conteúdo gravado poderão ser usados para justificar a dispensa do servidor (justa causa se for celetista; dispensa a bem do serviço público se for concursado) que ficou espionando sexualmente os transeuntes ao invés de concentrar-se em situações que colocavam em risco o público. Mas por outro lado, as gravações também podem ser usadas contra a administração pública em ações de indenização promovidas pelas pessoas que foram perseguidas pelo “olho eletrônico de vidro” sem qualquer motivação policial.

 

 

O aumento do uso de câmeras é um fato. Como advogado, não me compete julgar se este fato é bom ou ruim, mas pugnar para que o Judiciário aprecie as provas produzidas pelas câmeras da melhor forma, sempre salvaguardando a igualdade das partes, a licitude da prova e os direitos e garantias individuais garantidos aos cidadãos pela nossa venerável Constituição Federal. 


 

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Google glass e o direito a propria imagem

    Ilustre colega advogado, o fato da imagem ser da pessoa nao lhe da direito a ter sua propria copia, da mesma forma por ex. que as ligacoes para call center podem ser gravadas por quaisquer das partes?

    Mais, em tempos de google glass, com todos gravando tudo, negar-se a fornecer videos assim conseguidos seria licito?

  2. A mim parece que o Google
    A mim parece que o Google pode ser judicialmente compelido a fornecer vídeos que tenham relevância probatória. E pode também sofrer consequências em caso de descumprimento da ordem judicial para fazê-lo.

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