Abuso de poder na condução coercitiva de Lula, por Caio Paiva

Por Caio Paiva, Defensor Público Federal e professor de processo penal (https://m.facebook.com/professorcaiopaiva/)

Impossibilidade de condução coercitiva para interrogatório (na investigação e em juízo) sem prévio descumprimento de intimação para comparecer

[Advertência infelizmente necessária: esses comentários não têm NENHUM fundamento político-partidário, destinando-se apenas a discutir a questão jurídica]

Como todos sabem, a partir de requerimento do MPF, o juiz federal Sérgio Moro determinou a condução coercitiva do ex-Presidente Lula para que fosse tomado o seu depoimento pela Polícia Federal. Analisarei aqui, brevemente, três questões: (I) a autoridade policial pode determinar o comparecimento do investigado para colher o seu depoimento ou necessariamente deve representar ao juiz para obter o comparecimento do investigado?; (II) o comparecimento do investigado para depor pode ser forçado mediante condução coercitiva?; (III) em caso positivo, a condução coercitiva necessariamente requer o descumprimento de uma intimação anterior para prestar depoimento? Sobre o curioso fundamento “cautelar” invocado pelo MPF e acolhido por Moro; (IV) a decisão do juiz federal Moro viola garantias processuais? Se sim, quais?; (V) Como a defesa técnica pode inibir o autoritarismo na prática penal diante destes casos?

Vamos lá. Inicialmente, devo dizer que o meu olhar sobre a Lava Jato é ao mesmo tempo de admiração e de espanto. Admiro o trabalho independente da PF, do MPF e do Sistema de Justiça como um todo, que, em bom momento, dão o recado para a sociedade brasileira de que não há cidadão imune à persecução penal. A corrupção degrada a democracia e realmente deve ser combatida. Me espanta, porém, como a Operação e o entusiasmo corporativista dos seus idealizadores substituem o debate jurídico pelo que há e sempre houve de mais baixo no cenário político, trabalhando para criar um ambiente polarizado em que vale tudo para estourar o champagne da vitória. Resultado disso é a criação de círculos argumentativos “autofágicos”: alimentam-se de si mesmos, aplaudem-se reciprocamente…

(I) A autoridade policial pode determinar o comparecimento do investigado para colher o seu depoimento ou necessariamente deve representar ao juiz para obter o comparecimento do investigado?

Há divergência sobre a matéria. Entendo que a autoridade policial pode, sim, determinar o comparecimento do investigado para obter o seu depoimento. Extraio esta conclusão a partir do art. 6º, V, do CPP (dever de ouvir o indiciado). Assim, nada impede que o delegado (ou o MP, quando na presidência de investigação – sem adentar no mérito, aqui, dos problemas do acusador-investigador com a paridade de armas) intime o investigado para tomar o seu depoimento, sendo desnecessária, a meu ver, ordem judicial neste sentido.

(II) O comparecimento do investigado para depor pode ser forçado mediante condução coercitiva?

Temos aqui duas questões. Argumentando, primeiro, no plano da opinião pessoal, que não encontra total correspondência no entendimento majoritário e na prática investigativa, entendo que – em regra – o investigado não pode ser conduzido coercitivamente para depor, conclusão que alcanço mediante a defesa de não recepção do art. 260 do CPP em razão de sua incompatibilidade com o direito ao silêncio. Considero possível encontrar algumas exceções aqui, mas isso fugiria do assunto principal. Por outro lado, argumentando, agora, exclusivamente a partir do texto legal, sem cotejá-lo com a CF/Tratados, me parece que, para quem considera o art. 260 do CPP compatível com a CF, seria possível, sim, que a autoridade investigativa procedesse com a condução coercitiva do investigado para colher o seu depoimento – este entendimento, em regra, se coaduna com uma visão autoritária do processo penal, já que consiste em pura manifestação de poder obrigar o comparecimento de quem já demonstrou não ter interesse em falar.

(III) Em caso positivo, a condução coercitiva necessariamente requer o descumprimento de uma intimação anterior para prestar depoimento? Sobre o curioso fundamento “cautelar” invocado pelo MPF e acolhido por Moro

Entendo que sim. O art. 260, caput, do CPP, não deixa margem para interpretação diversa. A condução coercitiva somente tem cabimento quando o acusado/investigado não tenha atendido à uma intimação anterior para interrogatório. O precedente do STF sobre a possibilidade de a autoridade policial conduzir coercitivamente o investigado sem prévio descumprimento de intimação (HC 107644) foi proferido em caso muito específico, em que a polícia acompanhava provável confissão extrajudicial de um homicídio, tratando-se, ainda, de precedente considerado perigoso inclusive por um estudioso membro do MPF (ver André de Carvalho Ramos, Curso de DHs, 2ª ed., p. 57-571). Argumentar que haveria, aqui, algum espaço para o poder geral de cautela do juiz de “criar” uma cautelar autônoma, com todo o respeito, não procede. O legislador poderia ter encerrado a redação do art. 319, caput, do CPP, dizendo, após “São medidas cautelares diversas da prisão”, “além de outras que o juiz considerar adequadas”. Dizer que a condução coercitiva é “benéfica” para o investigado porque afasta a prisão tampouco convence, já que geralmente se está (como no “Caso Lula” parece ser este o cenário) diante de um caso que não oferece o ensejo para a prisão temporária/cautelar. Cria-se, portanto, uma medida restritiva de liberdade sem qualquer previsão legal.

Consta da decisão proferida pelo juiz Moro (http://jota.uol.com.br/leia-o-despacho-de-sergio-moro-determinando-a-conducao-coercitiva-de-lula) que o fundamento invocado pelo MPF (e acolhido pelo juiz) para justificar a condução coercitiva foi o de evitar tumultos e manifestações de militantes políticos no local da oitiva do ex-Presidente, nada tendo sido mencionado (na decisão) sobre proteger a regularidade da investigação. Não há nenhuma natureza cautelar neste fundamento.

(IV) A decisão do juiz federal Moro viola garantias processuais? Se sim, quais?

Sim. A decisão do juiz federal Moro, além de violar a literalidade do CPP, consistindo, portanto, em manifesto abuso de poder, viola tanto a Constituição Federal no que diz respeito ao direito ao silêncio, mas, sobretudo, a meu ver, a Convenção Americana de Direitos Humanos, quando esta assegura como garantia mínima do acusado/investigado a concessão “do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa” (art. 8.2.c). O investigado deve ter o direito de “preparar” adequadamente a sua defesa, o que não existe quando se é conduzido coercitivamente para depor, sem qualquer intimação prévia. A Lei 9784/99 (processo administrativo federal) prevê a antecedência mínima de três dias úteis para comparecimento (art. 26, § 2º). Quero acreditar que exista um consenso quanto ao fato de ser ouvido numa investigação criminal é substancialmente mais grave do que ser ouvido num processo administrativo, o que reclama, portanto, no mínimo a exigência de prazo de antecedência igual ao da Lei 9784.

(V) Como a defesa técnica pode inibir o autoritarismo na prática penal diante destes casos?

Simples. Iniciado o ato com o investigado conduzido coercitivamente sem prévio descumprimento de intimação, o advogado ou defensor público deve orientar o seu cliente/assistido a ficar em absoluto silêncio, requerendo a defesa técnica para que o investigador (delegado/MP) conste em ata que o investigado não falará no ato em razão de não lhe ter sido garantido o “tempo necessário” para a preparação da sua defesa.

A colaboração premiada parece ter estimulado na mente da acusação que o processo penal é um mero procedimento de jurisdição voluntária, sem litígio, sem possibilidade de resistência. Não é. O acusado/investigado – ainda – tem direito a se defender.

Redação

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