As relações sinuosas entre a internet e a arte

 

Esta é uma imagem forte. Pode ser considerada como símbolo de uma patologia social ou como o simulacro de uma nova era com consequencias ainda não estudadas para a arte e o mercado artístico. Mais do que criticar o comportamento dos adolescentes, concentrados nos seus Smartphones e alheios ao quadro no fundo é preciso entender a imagem. E para fazer isto é preciso decompor suas partes.

Em primeiro plano temos os jovens com seus Smartphones conectados à internet. No segundo plano o quadro de um autor não referido.

O quadro tem grandes dimensões e enuncia um feito exemplar. No primeiro plano do mesmo estão dois protagonistas cuja grandiosidade é sugerida pelas roupas, pela atitude e pelo fato de estarem cercados de personagens secundários menores. Ao fundo, do lado esquerdo de quem olha o quadro há uma figura feminina que brilha. O brilho dela se reproduz no chão pisado pelos personagens centrais. Mesmo não conhecendo o quadro, seu autor e a cena enunciada, podemos concluir que a obra trata de um grande feito militar e que a figura que ilumina os passos dos protagonistas é uma representação da deusa da vitória.

O gigantismo do quadro e das personagens centrais é um dado importante, pois:

“…as culturas de preponderância ‘diurna’ fazem prevalecer a figura humana e têm tendência para gigantizar os heróis e as suas proezas, enquanto as culturas que se constituem em torno de um misticismo e do sentimento do acordo cósmico têm tendência para privilegiar a iconografia naturalista…” (As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Gilbert Durand, Martins Fontes, São Paulo, 2001, p. 278)

Também é importante o fato dos heróis humanos serem seguidos pela deusa da vitória. Isto sugere que este quadro é contemporâneo ou posterior à Renascença. Antes disto, a predominância do homem à divindade era algo impensável. Também não seria possível representar uma deusa da vitória sem correr o risco de heresia.

A natureza iconoclasta da composição é quase evidente. Ao lado de soldados podemos ver um palhaço. O local em que a cena foi ambientada parece ser um palco de teatro, pois apesar da figura de vermelho – à esquerda dos protagonistas – segurar um mosquete ninguém expressa temer um combate iminente. O homem que toca o bumbo olha para a platéia do quadro ou do teatro onde ele se encontra?

O comportamento dos garotos no banco em frente ao quadro duplica de certa maneira o dos personagens do quadro. Eles também parecem encenar algo importante. Os protagonistas do quadro não estão interessados no seu cortejo. Nem mesmo a representação da vitória atrai a atenção deles. Os garotos e garotas da platéia ignoram o próprio quadro como se o mesmo fosse apenas um elemento decorativo (ou, no mínimo, tão decorativo quanto o palhaço em segundo plano que não nenhum personagem do quadro rir). A cena toda pode ser entendida, portanto, como mimética.

Dito isto, podemos agora passar ao outro aspecto da imagem. O quadro ao fundo parece não desempenhar qualquer importância no imaginário dos garotos em primeiro plano na foto. Não sabemos, contudo, se eles estão ou não usando seus Smartphones para pesquisar detalhes sobre a composição e seu autor. Nada nos garante que, quando a foto foi tirada, os jovens estavam apenas descansando depois de terem visto o que havia para ver.

Há muitas coisas para ver nesta foto. Uma delas é a possibilidade da arte, como nós a conhecemos e valorizamos, estar em crise. Momentos de crise como este não são algo novo na História da Arte. E.H.Gombrich sugere que a arte experimentou grande crise após Michelangelo, Rafael, Ticiano e Leonardo terem conseguido realizar tudo o que as gerações anteriores haviam tentado não podendo ser superados pelos seus sucessores.

“Nos países do Norte – Alemanha, Holanda e Inglaterra -, os artistas enfrentaram uma crise muito mais concreta que seus colegas italianos e espanhóis. Se o único desafio enfrentado por esses últimos era como pintar de forma nova e surpreendente, no Norte a questão que despontou foi se a pintura poderia ou deveria continuar existindo. A causa dessa grande crise foi a Reforma: muitos protestantes eram contrários à presença de quadros e estátuas de santos nas igrejas, considerando-os sinais de idolatria papista. Assim, os pintores das regiões protestantes perderam sua maior fonte de renda, a pintura de retábulos. Os calvinistas mais rígidos objetavam até a outros luxos, como uma decoração alegre nas casas; e, mesmo onde estas eram permitidas em teoria, o clima e o estilo das construções em geral não combinavam com grandes afrescos decorativos como os que os nobres italianos mandavam pintar nos seus palácios. Tudo o que restava, como fonte regular de renda para os artistas, era a ilustração de livros e a pintura de retratos – e era pouco provável que isso bastasse para sobreviver.” (A História da Arte, E.H. Gombrich, gen-LTC, Rio de Janeiro, 2013, p. 283).

A foto sugere uma crise da arte, mas isto não chega a causar estranhamento. Afinal, a arte já passou por crises no passado. A origem do nosso estranhamento é outro. Se alguém remover digitalmente o quadro do fundo substituindo-o por uma parede lisa a atitude dos garotos parecerá absolutamente natural. É normal que nós, os expectadores da foto, sintamos estranhamento porque exigimos dos garotos e garotas que prestem atenção ao quadro e não aos seus Smartphones ou à internet quando nós mesmos só tomamos conhecimento do fenômeno através da rede mundial de compuradores?

Os calvinistas rejeitavam os ícones. O ícone na parede foi rejeitado, mas isto não quer dizer que os garotos odeiem a arte, nem que eles sejam protestantes. Talvez eles se relacionem com aquele quadro de uma maneira diferente de nós. A autoridade que uma obra de arte adquire e tem para os mais velhos – para os que julgam estranho o comportamento dos garotos da foto – parece não ser a mesma que eles atribuem ao quadro. E daí? Nenhuma geração de artistas produziu algo digno de nota sem desafiar a tradição, sem ignorá-la e até pisoteá-la.

As relações entre o artista e sua obra e entre esta e o público não são simples. E a mediação dos críticos quase sempre as torna ainda mais complexas:

“La teoría de Freud nos sirve para comprender la naturaleza del impulso que hace un indivíduo particular se convierta em artista; nos conduce al ámbito de donde proceden los impulsos que dan origen a una determinada obra de arte; nos muestra por qué este impulso tiene que sufrir una elaboración y diferenciación , y por qué tiene que dársele una unidad sintética absolutamente extraña a su naturaleza original, y, finalmente, explica por qué se exige al artista que acomode sus creaciones a las ideologías que constituyen la consciência religiosa, moral y social de su raza. Sin embargo, deja sin explicar el particular tipo de sensibilidad que permite al artista convertir sus fantasias em formas materiales, formas que nos incitan a participar de su modo de creación.” (Arte y Sociedad, Herbert Read, Ediciones Península, Barcelona, 1973, p. 142)

“Do mesmo modo como existe simpatia em toda emoção estética, existe também antipatia nessa impressão de dissonância e de desarmonia que causam a alguns leitores algumas obras de arte, fazendo com que determinados temperamentos sejam impróprios para compreender determinadas obras, mesmo magistrais. Assim, nos espíritos demasiado críticos, existe muitas vezes um certo fundo de insociabilidade que faz com que devamos desconfiar de seus julgamentos, como eles próprios deveriam desconfiar. Por que será que o julgamento da multidão, tão grosseiro nas obras de arte, tem sido, no entanto, muitas vezes mais justo do que as apreciações dos críticos de profissão? Porque a multidão não tem uma personalidade que resista ao artista. Ela se deixa prender ingenuamente. Que seja! Mas é o próprio sentimento de sua irresponsabilidade, de sua impessoalidade que confere um certo valor aos seus entusiasmos: ela ignora as segundas intenções, os recôndidos de mau humor e de egoísmo intelectual, os preconceitos refletidos – ainda mais perigosos que os outros. Para um crítico de profissão, um dos meios de provar sua razão de ser, de afirmar-se diante de um autor é, precisamente, criticar, ver sobretudo os defeitos. Aí está o perigo, a tendência inevitável…” (A Arte de Ponto de Vista Sociológico, Jean-Marie Guyau, Martins Fontes, São Paulo, 2009, p. 146-147)

A foto evidencia que os garotos e garotas não estão interessados no quadro pendurado na parede. Aquele pintor e aquela cena grandiosa nada dizem a eles? É negativa a crítica que eles fazem da obra? A resposta a estas perguntas não são dadas pela foto. Cada expectador desta pode tirar suas próprias conclusões. Apesar disto, não me parece que o museu deixará de ser visitado ou que o quadro perderá seu valor estético, histórico e comercial somente porque um bando de jovens foi fotografado prestando mais atenção aos seus Smartphones do que à obra de arte. Mesmo que isto venha a ocorrer, sempre haverá mercados secundários interessados em obras de arte como a que foi rejeitada por aquele público. Se a rejeição se tornar constante e intensa, o quadro será alugado a outro museu, permutado ou até vendido.

Em países periféricos as obras de arte rejeitadas no primeiro mundo sempre encontrarão grande interesse. Nesse sentido, a desvalorização daquele quadro (e de outros) pode provocar uma intensificação da circulação de obras de arte, permitindo a muitos outros garotos ver pela primeira vez num museu latino-americano, africano ou asiático aquilo que os garotos europeus e norte-americanos rejeitam em razão de se tornarem viciados em internet e Smartphones. Devemos comemorar a novidade, pois no passado apenas a guerra produzia tamanha desorganização no mercado de obras de arte.

A ação dos garotos na foto pode ser julgada como sendo negativa. Mas também pode ser considerada positiva. Afinal, a arte só renasce quando morre. E o autor desta foto pode ter registrado os dois momentos. Uma grande foto, sem dúvida.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. Mas é por causa do quadro que eles estavam lá

    Ninguém vai a um museu de belas-artes só para papear com o celular – para isso, poderiam ir à praça de alimentação de um shopping qualquer. Embora não estivessem olhando para o quadro naquele instante, era por causa do quadro que eles estavam lá, talvez para fazer algum trabalho escolar. De resto, comunicações ligeiras com o celular são um ritual inseparável da vida moderna, esteja-se no museu ou na rua, no primeiro ou no terceiro mundo – qualquer foto de uma praça na América Latina, África ou Ásia mostrará jovens com seus smartphones, utensílio que o capitalismo tornou acessível a todas as classes sociais.

    Você se deixa levar pela imaginação e vê o que quer ver. A foto não prova de modo algum que a garotada dos países ricos esteja se desinteressando de arte, do contrário eles nem estariam ali. Tampouco esse desinteresse é condição necessária para que a garotada dos países periféricos comece a se interessar por arte – recentemente houve a exposição de um pintor holandês aqui, e eu me lembro bem do alvoroço de colegiais da rede pública entrando no museu.

    1. “Você se deixa levar pela
      “Você se deixa levar pela imaginação e vê o que quer ver.”

      Sua interpretação unívoca da foto e do texto é ridícula. Além disto, a frase acima pode muito bem ser usada contra você, que raramente entende o que foi dito e tudo julga com base na sua imaginação (diminuta) e nos seus preconceitos (imensos).

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