Carne farta para usos quaisquer [Diálogos com o Teatro]

Como assinalou a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia de Teatro, trezentas apresentações de uma peça como Carne – patriarcado e capitalismo, em um país como o Brasil, não é nada desprezível. Esse Brasil a que me refiro não é o Brasil de Margaridas, Marielles e Renatas Peróns, forjado na luta e na inclusão, mas o Brasil que ruma para o fascismo, na senda aberta por Serra, PSDB, Globo e grande mídia, em 2010, aprofundada com o golpe de Estado de 2016; Brasil em que uma tevê pública apresenta como legítima a falácia de “não há cultura do estupro” (antes dois ou três homens poucos controlados tentados por mulheres que pediram para ser estupradas, se forem bonitas, claro), como ficou claro no Roda Viva com Manuela D’Ávila, ao dar voz (e direito de interrupção da entrevistada por não concordar com ele) a alguém como o coordenador de campanha de Bolsonaro, o latifundiário Frederico D’Avila, ali presente para apresentar as propostas de seu candidato (que com indiscutível hombridade foge de toda sabatinada e situação em que ele não possa se apresentar como poderoso dono da verdade); Brasil em que a própria Kiwi já teve uma peça interrompida (em Curitiba, coincidentemente) aos gritos de uma espectadora que havia pagado para “ver teatro e não ouvir sobre política” [http://bit.ly/2KpCcS7] (episódio que as atrizes – Fernanda divide o palco com Maria Dressler – fazem menção durante Carne); Brasil de uma sociedade rota, de uma sociabilidade esgarçada, levada ao limite por uma elite e seus patos, inconformados em verem diminuir seus privilégios.

O mérito das trezentas apresentações, para além da insistência do grupo, está, sem dúvida, na qualidade do texto e da montagem. É uma peça que mantem do início ao fim um crítico discurso feminista radical, sem cair em simplismos de certos ativismos feministas (que costumo chamar de “acadêmico” [http://bit.ly/cG180114], ironizado na peça), de essencializar um pretenso feminino (ideal?), de fazer uma identificação entre machismo e homem, homem e machismo; e apresentar a mulher como vítima exclusiva e em uma condição que beira a minoridade. Mais que isso, Carne tem um recorte consideravelmente bem delimitado: mulheres em uma sociedade de classes de forte herança escravocrata, e um legado milenar de machismo e patriarcado – se os homens também são vítimas do machismo, não é essa a questão que o texto aborda, nem deslegitima; e ainda  que pincelem violências contra mulheres alhures, é só para mostrar que o Brasil não é o cu do mundo nessa questão, só mais um triste exemplo no globo. Inclusive é com a foto do gabinete de Benjamin Netanyahu, manipulada por jornais religiosos, que Carne vocaliza sem meias palavras e sem qualquer complemento o que a estrutura social baseada no patriarcado identifica como problema: as mulheres. “O problema é as mulheres”. O dado é apresentado como uma faticidade que não precisa de análise ou crítica, tal qual vemos em diversos discursos – o deslocamento do contexto dessa frase é o suficiente para fazer emergir seu ridículo, sem necessidade de comentários. Veio à minha memória Flora Tristan, que no século XIX questionava como certos homens lidavam com essa humilhação indelével, de terem nascido de um ser que julgavam tão inferior, a mulher.

Ao trazer juntos o recorte identitário (identitários, melhor dizer, uma vez que fala também do racismo no Brasil) e o de classe é que, ao meu ver, dá ao texto de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas toda sua força problematizadora. Contextualizar as divisões de classe é impedir qualquer grande identidade feminina, feminista, que supere todas as divisões em nome de um ente abstrato idealizado. A cena que trata das patroas na sua relação com suas domésticas – paraguaias ou terroristas que exigem direitos [http://bit.ly/2tG7gWw] – é cristalina ao mostrar que a exploração da mulher não é privilégio de homens, e mais que isso, que essa exploração (como muitas das que homens impingem às mulheres) é apresentada como relação de trabalho – a mesma que a patroa terá com seus clientes em seu escritório em área nobre -, edulcorada com o discurso de uma parceria entre trabalhadoras (tipo motorista-parceiro), uma que sabe e comanda, outra que é pouco mais que um burro de carga, uma criança meio idiota, e que precisa ser conduzida – e que crescerá com isso, para seu próprio bem! Crescerá imersa em desejos de bens como os da patroa, se tornando presa fácil para produtos populares de baixa qualidade e longas prestações a juros elevados – que enriquecerão, ao fim, a patroa e seu grupo. Me fez lembrar história de uma amiga, que tretou em um grupo de e-mail de feministas, no qual feministas brancas, ricas e descoladas da zona oeste pediam (exigiam?) faxina a valores pornográficos a feministas negras, pobres, da zona sul – tudo em nome da “sororidade”, sem exploração, porque mulher nunca vai explorar outra mulher…

Por ser uma peça que se propõe provocativa e problematizadora, é óbvio que ela não pretende adesão irrestrita do público a tudo ali apresentado. Vários pontos me fizeram pensar, não sei se concordo, se não seria talvez um pouco diferente, me fizeram repensar alguns conceitos que tenho – sem a obrigação de mudá-los, porém com a necessidade de revisá-los à luz desses novos argumentos. São pontos que vários ângulos são válidos, e eu seria no mínimo contraproducente se ficasse de picuinha. Contudo, contesto dois momentos da peça.

O primeiro destaque é antes uma questão minha, visto que se trata de uma frase que aparece no fim da peça, sem destaque. Talvez a ideia fosse só ser uma frase provocativa; ela me parece, porém, perigosa – para o próprio movimento feminista e para todos os que têm interesse em uma sociedade igualitária e fraterna. Tal frase é um clichê que já ouvi de várias feministas acadêmicas: “O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias”.

São duas sentenças incongruentes, tratam de questões muito diferentes – a não ser que se queira dizer que o feminismo seja uma espécie de machismo ao contrário, e não um questionamento radical das estruturas que garantem dominação de certo tipo de pessoas sobre outros. Que o machismo mata todos os dias, mata mulheres, homens, crianças, trans, isso não há o que questionar. Já a frase sobre o feminismo pode (e deve) ser contestada – Valerie Solanas só não pode ser usada como contraexemplo porque era ruim de mira. Certos grupos mais radicais tem um aberto discurso transfóbico e misândrico, legitimador de muitas violências. Assim, a frase acaba por expressar, ao meu ver, um ideal moderno-iluminista-cristão de pureza e unidade que não encontra respaldo na realidade. São diversos os feminismos – nas suas pautas e nas suas estratégias – e há em meio a esses feminismos alguns com posturas indefensáveis dentro da ótica dos direitos humanos e de um mundo sem discriminações de qualquer espécie – afinal, são movimentos feito por pessoas e não por santos da santa igreja. Negar essa realidade é abrir um caminho para a instrumentalização de bandeiras legítimas por grupos com interesses bastante suspeitos perante tais bandeiras.

O outro destaque é quando as atrizes narram uma série de notícias de jornal com violências de homens contra mulheres – via de regra, parceiros ou ex-parceiros. Aqui, me parece uma falta de calibragem no discurso. Os agressores expostos puderam responder em liberdade às acusações, estão foragidos há décadas, tiveram morosos julgamentos – aparentemente sem fim. Neste Brasil de ditadura judiciária, onde o arbítrio prevalece sobre os direitos das pessoas, é preciso ter cuidado para que a denúncia da impunidade não se confunda com a defesa de medidas de exceção – responder em liberdade é uma garantia individual que merece ser respeitada, a questão está no fato de todo o trâmite do julgamento levar uma década, e ainda deixar oportunidade para o criminoso fugir. Há necessidade de uma justiça célere e justa, para inibir outras violências do tipo – mas isso não pode ser feito ao atropelo do próprio direito, ou logo teremos Dallagnol e Moro nos aplaudindo.

Enfim, são dois pontos menores, que em nada diminuem o espetáculo, o qual, para além do conhecido humor da Kiwi para abordar de um modo divertido questões delicadas e espinhosas, antes centrando em problematizá-las que a defini-las precisamente, consegue trazer o público para dentro dos diálogos – é preciso muitas vezes se controlar para não querer conversar com alguma das atrizes em certas cenas, “verdade, já tive experiência parecida!” -, que, junto com ótima apresentação multimídia e musical, faz com que não percebamos o tempo passar.

Como crítica radical da nossa sociedade e da nossa sociabilidade, como desvelamento de comportamentos naturalizados, como denúncia de situações inaceitáveis que aceitamos por comodismo, como problematização desse próprio desvelamento e denúncias – e da própria peça -, Carne não pretende produzir um discurso de verdade, e sim anseia destruir pretensas verdades, por em xeque preconceitos (mesmo os “do bem”), deixando a cada um que veja o mundo que o rodeia por conta própria e compare com o discurso ali apresentado – não vai dar pra seguir enxergando ele tal qual antes, e ainda que ache que “não é bem assim”, vai ser obritado a dar alguma razão a Carne. Uma peça necessária – e talvez de difícil compreensão, dado o grau de indigência intelectual que vivenciamos hoje. Ainda assim, necessária. Merece outras trezentas e mais trezentas apresentações.

 

28 de junho de 2018.

 

Redação

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