Crítica de Nós! As duas faces da mesma América, por Érico Andrade

Nos túneis subterrâneos dos USA reside a história que não cala. Não se silencia. Aquilo que não se fecha.

Sugestão de Antonio Nelson

Crítica de Nós! As duas faces da mesma América

por Érico Andrade

Portanto assim diz o Senhor:

eis que trarei o mal sobre eles,

de que não poderão escapar;

e clamarão a mim,

mas eu não os ouvirei

11.11 Jeremias

Bíblia

O exercício da metáfora não é trivial. Menos ainda quando se usa de um gênero tanto clássico quanto fortemente explorado como o terror. Com ‘Nós’, Jordan Peele tornou esse exercício ainda mais complexo em relação ao seu último filme: Corra!. A temática do racismo é ampliada em Nós para uma crítica mordaz aos Estados Unidos. Assim, todo aparato estético dos filmes de terror – dominado com maestria pelo diretor – é mobilizado para mostrar o quanto terrificante é a realidade e não a ficção.

Nos túneis subterrâneos dos USA reside a história que não cala. Não se silencia. Aquilo que não se fecha. O que a personagem principal Adelaide (interpretada por Lupita Nyong’o), ainda criança, vê, é aquilo que a sensibilidade de quem não foi completamente colonizado pelo capitalismo permite acessar: a miséria humana que está tanto no subterrâneo como na superfície. Se se pode dizer o capitalismo não produz a miséria humana, podemos dizer que pelo menos ele a alimenta. Mais grave: vive dela.

A cena em que Adelaide se “perde” no parque, que é reproduzida mais próximo do final do filme, longe de ser um simples flashback, é a fusão, no interior do filme, da realidade com a ficção porque as coaduna num mesmo registro de terror. Nem na ficção, nem na realidade existe amparo. Não se pode escapar do desamparo no capitalismo. Essa é fusão que traumatiza a criança. É a consciência da onipresença da atmosfera de terror, assim como onipresente é o capitalismo que está tanto na superfície quanto na base das relações humanas.

Os quinze minutos em que ela permanece desaparecida com a camisa de Thriller marca, por meio da referência ao clipe de M. Jackson, o início do suspense. Ela ganha a camisa do pai, depois que ele se esforça num jogo no parque para ser o vencedor. Numa prova para si mesmo que ele poderia ter sido aquele grande jogador de baseball. Trata-se de uma clara alusão ao desejo por conquista do capitalismo que impregna todas as pessoas mesmo no momento em que elas estão se divertindo num parque feito para vender divertimento. A diversão, o filme ressalta, no capitalismo é a cópia do que ele produz sempre: competição.

O tempo dilatado, que é a passagem de Adelaide para a vida adulta, é apresentado numa continuação em que o roteiro se encarrega de costurar por meio da apresentação da família de Adelaide como uma cópia da sua família nuclear (composta por ela, o seu pai e a sua mãe). A atual família de Adelaide é aparentemente tranquila, mas obviamente marcada pelos valores capitalistas. Basta ver o comentário, no meio de tantos outros, invejoso de Gabe (marido de Adelaide e uma mímesis do seu pai num claro padrão de repetição) quanto à lancha do seu amigo. São as famílias, apenas simples famílias, que formam o terror. Elas formam o sistema que somos nós. É isso que o diretor nos faz perceber quando aparece a cena de uma família no jardim da propriedade da família Wilson – propriedade que é frisada por Gabe. Aliás, o direito à propriedade é evocado por Gabe. Em vão. O terror já está instalado. Ele é o espelho da família. É a própria família, claro. Por isso, é que os membros da família são perseguidos por seus espelhos. Cada um tem que dar conta do seu fantasma.

Essa lógica é também aplicada à família branca que é dizimada pelos seus fantasmas, por sua cópia, por ela mesma; para dizer mais diretamente. Mas, não podemos deixar de sublinhar que a cena em que a cópia fantasmática da personagem Kitty fere o próprio rosto, exatamente no lugar em que Kitty tinha feito a sua plástica, é para fazer do sangue uma forma metafórica de questionar o que realmente deve importar. A morte da personagem Josh e de suas filhas gêmeas, na sua super casa com gerador, segue a mesma toada. A crítica mais radical ao capitalismo é o fantasma de Josh morrer na lancha que era para o Josh real o seu símbolo máximo de ostentação. Mortos no interior do seu luxo. Todos mortos tanto os fantasmas como os “vivos”. Todos mortos porque consumidos pelo sistema que eles acreditam consumir.

Mas Jordan Peele não descuida da temática do racismo. Além da associação precisa da trilha sonora (composta de músicas bem politizadas quanto à temática do racismo) com algumas cenas, como a que se desenrola na casa da família branca Tyler, em que os negros matam os fantasmas brancos, que os perseguem como diz a música, é por meio de uma referência ao movimento Hands Across America (realizado em 1986 com fins de ajudar a combater a fome na África) que o diretor constrói mais uma poderosa metáfora.

O abraço da América é reproduzido, desta feita, com pessoas uniformizadas de laranja (cor usada com frequência nos uniformes das prisões americanas) e, portanto, despessoalizadas e que unem as mãos como zumbis induzidos pelo sistema do qual são prisioneiras. Elas procedem por uma espécie de inércia e tal como os zumbis operam sem saber o que estão fazendo. São instrumentos do Marketing. Estão ao seu serviço como zumbis. O filme Nós mostra que mesmo quando o capitalismo resolve “ajudar” a parte mais explorada por ele é para produzir mais fantasmas. O ponto forte do filme é nos faz ver que esse fantasma somos Nós. Os vivos que atravessam a vida como prisioneiros do sistema. Portanto, em certo sentido; mortos.

Érico Andrade – Filósofo, psicanalista, professor da Universidade Federal de Pernambuco

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