Excedente comportamental, a mina de ouro do Google, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Para entender a elaboração desse conceito é preciso refazer o caminho percorrido pela empresa Google. E foi exatamente isso que Zuboff fez no seu livro

Aqui mesmo no GGN, publiquei algumas considerações sobre a obra de Shoshana Zuboff https://jornalggn.com.br/artigos/o-capitalismo-de-vigilancia-e-o-passado-medieval-a-nossa-frente/. Volto ao tema porque me pareceu essencial fazer justiça à maior descoberta da autora: o excedente comportamental. Esse conceito que está intimamente relacionado com o de “mais valia” cunhado por Karl Marx para explicar a maneira como o capitalista acumula trabalho não pago aos operários.

Para entender a elaboração desse conceito é preciso refazer o caminho percorrido pela empresa Google. E foi exatamente isso que Zuboff fez no seu livro:

“Operationally, this meant Google wold turn its growing cache of behabioral data and its computational power and expertize toward the single task of matching ads with queris. New rethoric took hold to legitimate this unusual move. If there was to be advertising, then it had to be ‘relevant’ to users. Ads would no longer be linked to keywords in a search querry, but rather a particulara ad would be ‘targeted’ to a particular individual. Securing this grail of advertising would ensure relevance to users and value to advertisers.

Absent from the new rhetoric was the fact thar in pursuing of this new aim, Google would cross into virgin territory by exploiting sensitivities that its exclusive and detailed collateral behavioral data about millions and later billions of users coud reveal. To meed the new objetive, the behavioral value reinvestment cycle was rapdly and secretly subordinated to a larger and more complex undertaking. The raw materials that had veen solely used to improve the quality of searchs resultes would now also be put to use in the service of targeting advertising to individual users. Some data would continue be applied to service improvement, but the growing stores of collateral signals would be repurposed to improve the profitability of ads for both Google and its adverisers. The behaviorial data aviable for users beyond service improvement constituted a surplus, and it was on the strength of this behavioral surplus that the young company would find its way to the ‘sustained and exponentional profits’ that would be necessary for survival. Thanks to a perceived emergency, a new mutation began to gather form and quietly slip its moorings in the implicit advocacy-oriented social contract of the firm’s original relationship with users. (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 74/75)

Tradução:

“Operacionalmente, isso significava que o Google aumentaria seu cache crescente de dados comportamentais e seu poder computacional e se especializaria na tarefa única de combinar anúncios com consultas. Uma nova retórica entrou em cena para legitimar esse movimento incomum. Se houvesse publicidade, teria que ser ‘relevante’ para os usuários. Os anúncios não seriam mais vinculados a palavras-chave em uma consulta de pesquisa, mas um anúncio em particular seria ‘segmentado’ para um indivíduo em particular. A segurança desse graal de publicidade garantiria relevância para os usuários e valor para os anunciantes.

Ausente da nova retórica, na busca desse novo objetivo, o Google entraria em território virgem explorando sensibilidades que seus dados comportamentais colaterais exclusivos e detalhados sobre milhões e, depois, bilhões de usuários revelariam. Para abordar o novo objetivo, o ciclo comportamental de reinvestimento de valores estava subordinado rápida e secretamente a um empreendimento maior e mais complexo. As matérias-primas usadas apenas para melhorar a qualidade dos resultados das pesquisas agora também seriam usadas no serviço de segmentação de publicidade para usuários individuais. Alguns dados continuariam sendo aplicados à melhoria do serviço, mas as crescentes reservas de sinais colaterais seriam redirecionadas para melhorar a lucratividade dos anúncios para o Google e seus anunciantes. Os dados comportamentais disponíveis para os usuários além da melhoria de serviço constituíam um excedente e foi com base nesse excedente comportamental que a jovem empresa encontraria seu caminho para ‘lucros crescentes e sustentáveis’ que seriam necessários para a sobrevivência. Graças a uma emergência percebida, uma nova mutação começou a se reunir e silenciosamente deslizou seus ancoradouros no contrato social implícito e orientado para autonomia do relacionamento original da empresa com os usuários.”

Antes de começar a segmentar propaganda, o Google utilizava as informações colaterais produzidas a cada busca pelos usuários para melhorar o serviço que era prestado. A partir do momento em que foi obrigada a enfrentar a crise das empresas .com, o Google passou a utilizar essas informações para extrair valor econômico do comportamento dos usuários revelado pelas informações colaterais que eles produzem. Assim, o Google passou a atingi-los com anúncios personalizados de bens e serviços que eles provavelmente necessitariam, aumentando a eficiência da propaganda. Essa operação foi patenteada.

“The techniques described in the patent meant thar each time a user queries Google’s search engine, the system simultaneously presents a specifc configuration of a particular ad, all in the fraction of a moment that it takes to fufill the search query. The data used to perform this instant translation from query to ad, a predictive analysis thar was dobbed ‘matching’ wen far beyond the mere denotation of search terms. New data sets werw compiled that would dramatically enhance the accuracy of these predictions. These data sets were referred to as ‘user profile information’ or “UPI”. These new data meant that there would be no more guesswork and far less waste in the advertising budget. Mathematical certainty would replace all of that.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 78)

Tradução:

“As técnicas descritas na patente significam que cada vez que um usuário consulta o mecanismo de pesquisa do Google, o sistema apresenta simultaneamente uma configuração específica de um anúncio específico, tudo na fração de momento necessário para preencher a consulta de pesquisa. Os dados usados para executar essa tradução instantânea de consulta para anúncio, uma análise preditiva que foi adulterada como ‘correspondência’ foram muito além da mera designação de termos de pesquisa. Novos conjuntos de dados foram compilados para melhorar drasticamente a precisão dessas previsões. Esses conjuntos de dados foram referidos como ‘informações de perfil do usuário’ ou ‘UPI’. Esses novos dados significavam que não haveria mais adivinhações e muito menos desperdício no orçamento de publicidade. A certeza matemática substituiria tudo isso.”

No momento que o usuário faz uma pesquisa o perfil existente dele é formulado ou consultado. Quando fornece a resposta à consulta o Google adiciona anúncios de produtos que podem interessar especificamente àquele internauta. Cada vez que utilizar o Google para pesquisar qualquer assunto, o usuário fornecerá gratuitamente informações pessoais que serão acrescentadas ao acervo estocado utilizado para a formular o perfil individual que possibilitará à empresa obter lucro anexando propaganda segmentada ao resultado da consulta. Casa usuário do Google é um operário à serviço da segmentação da propaganda explorada economicamente pela empresa.

“Google would no longer be a passive recipient of accidental data that it could recycle for the benefit of its users. The targeted advertising patent sheds light on the path discovery that Google traveled from its advocay-oriented founding toward the elaboration of behavioral surveillance as a full-blown logic of accumulation, The invent itself exposes the reasonig through which the behavioral value reinvestd cycle was subjugated to the service of a new commercial calculation. Behavioral data, whose value had previously been ‘use up’ on improving the quality of Search for users, now became the pivotal – and exclusive to Google – raw material for the construction of a dynamuc online advertising marketplace. Google would now secure more bahavioral data than it needed to serve its users. That surplus, behavioral surplus, was the game-changing, zero-cost asset that was divert from service improvement toward a genuine and highly lucrative market exchange.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 81)

Tradução:

“O Google não seria mais um destinatário passivo de dados acidentais que poderiam ser reciclados para o benefício de seus usuários. A patente de publicidade direcionada lança luz sobre a descoberta de caminhos que o Google percorreu desde sua fundação orientada à autonomia em direção à elaboração da vigilância comportamental como uma lógica de acumulação completa. O próprio invento expõe o raciocínio pelo qual o ciclo de reinvestimento do valor comportamental foi subjugado a serviço de um novo cálculo comercial. Os dados comportamentais, cujo valor já havia sido ‘usado’ para melhorar a qualidade da Pesquisa para usuários, agora se tornaram a matéria-prima essencial e exclusiva do Google para a construção de um mercado dinâmico de publicidade on-line. O Google agora protegeria mais dados comportamentais do que o necessário para atender seus usuários. Esse excedente, excedente comportamental, foi o ativo de custo zero que mudou o jogo e foi desviado da melhoria de serviços para uma troca de mercado genuína e altamente lucrativa.”

Karl Marx definiu a “mais valia” como uma parcela de trabalho não é paga ao operário. Essa parcela pode ser aumentada de duas maneiras: aumento da jornada de trabalho sem aumento correspondente de salário; aumento da produtividade durante a mesma jornada de trabalho. O empregador administra a empresa e não tem obrigação de prestar contas ao empregado. Portanto, em qualquer das hipóteses, o trabalhador nunca está em condições de saber qual foi a diferença exata entre o trabalho dele que foi pago e a parcela acumulada pelo empregador. Essa ignorância é essencial. Ela preserva a racionalidade do capitalismo, bem como a hierarquia entre o empresário e o trabalhador.

Segundo Shoshana Zuboff algo semelhante ocorre na dinâmica do capitalismo de vigilância. O Google se apropria das informações colaterais produzidas pelos usuários e obtem lucro sem pagar por elas O que o Google fornece ao retornar cada pesquisa, é apenas uma parcela do que foi requisitado pelo usuário (as informações que ele solicitou). O excedente que foi produzido pelo próprio usuário (informações colaterais das pesquisas dele) é transformado em propaganda segmentada direcionada à ele com lucro para o Google.

“Key to our conversation is this fact: surveillance capitalism was invented by a specific group of human beings in a specifc time and place. It is not an inherent result of digital technology, nor is it a necessary expression of information capitalism. It was intentionally construtcted at a moment in history, in much the same wat that the engenieers and tinkeres at the Ford Motor Company invented mass prodoction in the Detroit of 1913.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 85)

Tradução:

“A chave da nossa conversa é esse fato: o capitalismo de vigilância foi inventado por um grupo específico de seres humanos em um tempo e local específicos. Não é um resultado inerente à tecnologia digital, nem é uma expressão necessária do capitalismo da informação. Foi intencionalmente construído em um momento da história, da mesma maneira que os engenheiros e pensadores da Ford Motor Company inventaram a produção em massa em Detroit em 1913.”

Esse é um detalhe importante. A Google inventou uma maneira de explorar seus usuários sem dar eles qualquer opção de não fornecer informações colaterais, de impedir o uso delas ou de receber uma quantia em razão do lucro que a empresa obter explorando-as. Isso não era e não é inevitável. Todavia, o caminho aberto pelo Google em pouco tempo passaria a ser explorado pelo Facebook.

“… Once Google’s leadership undertood the commercial power of behavioral surplus, Schmidt instituted what he called the ‘hiding strategy’. Google employees were told not to speak about what the patent had referred to as its ‘novel methods, appararus, message formats and/or data strutures’ or confirm any rumors about flowing cash. Hiding was not a post hot strategy; it was baked into the cake that would became surveillence capitalism.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 88/89)

Tradução:

“… Depois que a liderança do Google compreendeu o poder comercial do excedente comportamental, Schmidt instituiu o que chamou de ‘estratégia de ocultação’. Os funcionários do Google foram instruídos a não falar sobre o que a patente chamava de ‘novos métodos, aparelhos, formatos de mensagem e/ou estruturas de dados’ ou confirmar rumores sobre fluxo de caixa. Esconder não era uma estratégia de correlação coincidente; foi assado no bolo que se tornaria o capitalismo de vigilância.”

O círculo virtuoso se fecha mediante uma artimanha: ocultação e ignorância. Assim como o capitalista acumula uma parcela de trabalho não paga que é ignorada pelo trabalhador (Karl Marx), o usuário do Google deve ignorar como ele mesmo acrescentou valor à empresa sem receber em troca uma parcela significativa das informações que produziu e foram utilizadas para segmentar a propaganda que ele recebe junto com o resultado da pesquisa (Shoshana Zuboff).

O conceito de “excedente comportamental” mantém assim uma relação com o de “mais valia”, com uma diferença: o trabalhador é pago por uma parcela do trabalho; o usuário não recebe absolutamente nada em troca além da propaganda que ajudou a segmentar fornecendo gratuitamente informações colaterais ao usar o Google.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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