Falsetas da política: Camaradagem entre os poderes esgarça as contas públicas e banaliza o senso de governabilidade, por Antônio Machado

A camaradagem entre os chefes dos poderesmais distorce que revela o exato ambiente dos minuetos das cúpulas da República. Em público, tudo é afeto. Entre quatro paredes, é pancadaria

Crédito: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Falsetas da política: Camaradagem entre os poderes esgarça as contas públicas e banaliza o senso de governabilidade

Por Antônio Machado

Os sorrisos largos, os abraços e os tapinhas nas costas entre os novos dirigentes da Câmara e do Senado e o presidente Lula são, a quem atenta aos gestos e simbolismos, o flagrante dos enroscos em que estamos enfiados nas últimas quatro décadas – a estagnação de uma economia movida por lufadas de gasto público e crédito caro e escasso, enquanto a produção, exceto o agro, envelhece e encolhe.

A camaradagem entre os chefes dos poderes, o que inclui ministros das cortes supremas, mais distorce que revela o exato ambiente dos minuetos das cúpulas da República. Em público, tudo é afeto. Entre quatro paredes, é pancadaria, como expõem os perfis notadamente de petistas falando mal dos líderes da maioria parlamentar. Se um dia as diferenças que os separam forem assumidas, o déficit fiscal e o endividamento público poderão perder ímpeto, assim como o papel de vilão da economia dos juros arbitrados pelo Banco Central.

Desde a ditadura, formalmente encerrada com a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney em 1984, nenhum governante dispôs de uma maioria parlamentar eleita com a mesma visão de país. Todos os presidentes foram e são de partidos minoritários no Congresso, tal como a corrente política a que se filiam, estando nessa disjuntiva a obsolescência de um projeto nacional de desenvolvimento.

Os presidentes se elegem, sobretudo, desconstruindo seus rivais e prometendo bem-estar pontual, enquanto os candidatos a deputado e senador fazem campanha como se disputassem um assento de vereador. Os primeiros, depois de eleitos, pagam as promessas com a expansão do gasto, especialmente transferências de renda, além da corrosão da receita, patrocinando subsídios e desonerações tributárias.

O que vem depois explica a gênese do engessamento do gasto, sendo que boa parte se tornou compulsória com a Constituição, e o ritmo de expansão. As medidas propostas pelo Executivo para satisfazer o eleitor e os lobbies que os apoiaram serão aprovadas no Congresso – e, como sabido, o governante não tem maioria – mediante o rateio de emendas à lei orçamentária anual, que é o modo de o parlamentar se reeleger e ampliar seu grupo político nos feudos eleitorais.

É um processo corrompido na origem, tanto na Constituição, que se tornou prolífica para encampar demandas conflitantes e redação às vezes dúbia, quanto na governabilidade, nome de viés tecnocrático para disfarçar o aliciamento da oposição. Essa corda esgarçou.

Flagelo da América Latina

A verdade é que nem estava tão ruim, de 2016 a 2022, com pandemia e Bolsonaro, ao contrário, a economia vinha se reorganizando, nem ela tendia para o descontrole depois da expansão da ordem de R$ 160 bilhões do gasto com a PEC da Transição a partir de 2023 e o pagamento antecipado do beiço dos precatórios do governo passado.

A promoção do gasto é que empurra o crescimento econômico que os economistas do tal mercado não conseguem antecipar, adicionado ao aumento da renda pela combinação de transferências sociais com a prestação de serviços de modo informal, o fenômeno que explica de um lado o baixo desemprego e, de outro, a resiliência do consumo.

Em suma, não havia motivo para o dólar destrambelhar no final do ano passado, afora especulação com a passagem de comando do Banco Central de Roberto Campos Neto para Gabriel Galípolo. Foi mais isso que a eleição de Donald Trump e sua política de destruição do fundamentalismo de mercado, dominante desde os anos 1990, e da ordem econômica multilateral – um projeto de poder dos EUA, diga-se, e que deixou de servi-los com a ascensão do poderio da China.

O grosso dos problemas nacionais se deve a decisões apenas nossas – a maior delas, a ênfase à indução ao consumo e não à oferta, um flagelo dos governos de esquerda na América Latina, além do que, a rigor, é uma contradição chocante: a tentativa de se mostrar fiel ao figurino fiscalista cobrado pelo mercado financeiro.

Nada mais fundamentalista do que supor que superávits fiscais e a omissão do planejamento público bastem para o investimento privado decolar.

Caminhos e descaminhos

A panorâmica da economia parece clara, mas a irracionalidade não cede na política, onde se confunde crescimento de 3,5% do PIB com vitalidade econômica num mundo em transição. A indústria de ontem está condenada a desaparecer, como desapareceram a TV de válvula, a vitrola e as máquinas fotográficas. Irracional é, por exemplo, fazer política industrial para atividades em decadência, em vez de orientá-la para negócios emergentes. Crédito barato nada tem a ver com política industrial. Nem incentivos tributários.

O que alavancará o país para frente é conhecido. A digitalização de todos os processos, nos governos e empresas privadas, é uma das diretrizes, mas há 15 instâncias na área federal encarregadas do assunto. Ou seja: ninguém é responsável.

Faltam data centers mas abunda energia, sobretudo no Nordeste, sendo este um dos maiores custos no processamento de dados. E…? E 60% dos dados nacionais são processados nos EUA, segundo estudo do Ministério da Fazenda.

Infraestrutura é outro caminho. Esta é das poucas áreas em que o planejamento está tendo continuidade e tem tido certo sucesso em especial no campo das concessões rodoviárias. A condicionante é o baixo funding das empresas do ramo, embora haja dinheiro farto no mercado de crédito privado. O PAC, o programa de obras federais, deu a direção. A incerteza sobre a política fiscal, que engravida o custo do dinheiro, é o obstáculo. Removido, o capital deslancha.

Com mais gestão de qualidade e menos ansiedade política, pode-se fazer muito mais. Não-caminho é mais tributação, regulação etc.

Bola fora ou bola dentro?

A dois anos das eleições gerais ainda é possível reorientar o que está aí, seja para se preparar contra os solavancos de Trump, seja para injetar dinamismo na economia. Riscos pelo lado monetário, se vierem, serão pela empáfia do governo diante da gestão fiscal, já que o presidente do BC, Gabriel Galípolo, tem dado mostras de que não vai folgar com a inflação.

A âncora de estabilidade será o BC.

No modo “almoço grátis” para promover a reeleição, nada a ver com desenvolvimento, Lula promete bujão de gás de graça, isenção do IR até R$ 5 mil. Legal. E combinou com o “arcabouço fiscal”? Com a Selic arrasa quarteirão, destinada a encarecer o crédito, baixar a pressão de consumo e distensionar o dólar? E é hora de mexer com o IR, sabendo-se que a tributação corporativa é a maior no Grupo dos 20, afora os países europeus? Tributação não é colcha de retalhos.

A bola está com David Alcolumbre (Senado) e Hugo Motta (Câmara). O que eles farão?

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1 Comentário

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  1. A foto que ilustra o artigo é tão ou mais eloquente que a matéria. Dois jovens filhos apertam efusivamente a mão do papai depois de terem consolidado a sua interdição. Papai sorri alegre com a união dos filhos e sem qualquer noção de realidade. Não importa mais, eles é que vão tocar os negócios da firma.

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