Grilagem é incrementada, por Lúcio Flávio Pinto

da Amazônia Real

Grilagem é incrementada

por Lúcio Flávio Pinto*

Ao conceder benefícios e vantagens aos detentores de imóveis rurais no Brasil, sobretudo na Amazônia, o governo federal está descumprindo as exigências constitucionais, favorecendo a apropriação ilícita não só de terras públicas ou devolutas, mas também das ocupadas por posseiros, colonos, índios e negros, a eterna minoria, excluída dos programas e projetos oficiais. Além de prejudicar a sua própria arrecadação, permitindo a sonegação de tributos.

Essa é a conclusão que decorre da leitura de uma nota técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, divulgada ontem (3). O documento, assinado pelos procuradores Deborah Duprat e Julio Jose Araujo Junior, submete suas considerações ao parlamento brasileiro, “para eventual subsídio” na análise da Medida Provisória 910, enviada em dezembro do ano passado para deliberação.

A proposta do governo ficou conhecida como a MP da grilagem”, a mais recente de uma sequência de iniciativas para aumentar a área de regularização fundiária (com limite passando de 2,5 mil hectares) e tomando por base das suas ações as informações prestadas pelos proprietários rurais com base na autodeclaração, sem vistoria prévia em campo nem checagem posterior.

Partindo da base de dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural do Incra, que informa a existência de 6 milhões de imóveis declarados ocupando em torno de 600 milhões de hectares, os dois representantes do Ministério Público Federal verificam que “a maioria dos imóveis considerados (89%) e aproximadamente metade da área (46%) vêm de registros autodeclarados no CAR (Cadastro Ambiental Rural), que não permite qualquer conclusão a respeito da situação fundiária formal”. Há também lacunas, “uma vez que 17% do território nacional não conta com qualquer registro nas bases fundiárias oficiais”.

Não causa surpresa que, nos registros autodeclarados do CAR, “há quantidade expressiva de sobreposições com áreas indígenas e quilombolas, além de unidades de conservação”.

Lembram que lei anterior já tinha dispensado a realização de vistoria para a liberação de cláusulas resolutivas dos títulos concedidos. “Significa dizer que os imóveis de até 15 módulos fiscais [de até 110 hectares cada], como regra, não terão qualquer vistoria, seja no início, para a concessão do título, seja ao final, para a consolidação da propriedade plena”.

Estudo realizado pelo instituto Imazon para verificar os impactos econômicos e ambientais dessa lei constatou que ela “reforça um mecanismo de aquisição de direitos fundiários historicamente vinculados ao desmatamento, uma vez que os grileiros desmatam a floresta para sinalizar ocupação e reivindicar direitos fundiários”.

Dois dos impactos potenciais mais significativos foram avaliados. Um foi a perda de receitas do governo devido à venda de terras públicas abaixo dos preços de mercado. O outro foi o risco de futuro desmatamento associado a emissões de CO2 em 19,6 milhões de hectares destinados à ampliação da terra privatização.

A perda de receita de curto prazo foi calculada entre 5 a 8 bilhões de dólares para 8,6 milhões de hectares. Já a perda futura de receita variou de 16,7 a 23,8 bilhões de dólares para 19,6 milhões de hectares; entre 1,1 e 1,6 milhão de hectares correria o risco de ser desmatado até 2027, o que poderia emitir 4,5 a 6,5 megatoneladas de gás carbono.

Concluem que a política fundiária instituída por essa lei poderia levar a perdas de receita de US$ 32 bilhões, equivalente a 7% do produto interno bruto brasileiro em 2018.

Os pesquisadores sugerem que o governo deveria revisar a decisão sobre a alocação dessa área; priorizar a alocação de terras para conservação e, se vender parte dessa área, cobrar preços de mercado.

Os procuradores ressaltam que o direito ao meio ambiente equilibrado foi assegurado pela constituição e por diversos compromissos internacionais do Estado brasileiro.

“A região amazônica, dada a diversidade biológica, cultural, etnográfica e geológica, mereceu tutela especial do constituinte, tornando-se imperiosa a observância do desenvolvimento sustentável na região, conjugando a proteção à natureza e a sobrevivência humana nas áreas objeto de regularização fundiária”, assinalam.

Por isso, “revela-se de importância ímpar a promoção de regularização fundiária nas terras ocupadas de domínio da União na Amazônia Legal, de modo a assegurar a inclusão social das comunidades que ali vivem, por meio da concessão de títulos de propriedade ou concessão de direito real de uso às áreas habitadas, redução da pobreza, acesso aos programas sociais de incentivo à produção sustentável, bem como melhorando as condições de fiscalização ambiental e responsabilização pelas lesões causadas à Floresta Amazônica”.

Os procuradores enfatizam ainda que entre os propósitos da constituição se encontram os de assegurar que a destinação de terras públicas e devolutas não se faça em prejuízo da população do campo que aguarda a implementação do direito à moradia.

Exige também que haja democratização do acesso à terra, desconcentrando a estrutura fundiária brasileira. E que a produção agrícola se diversifique, como garantia de alimentação adequada a todos os brasileiros.

No entanto, a MP 910, em exame pelo parlamento, “a exemplo de suas antecessoras, está absolutamente dissociada de quaisquer dessas metas”. Promove exatamente o contrário.

*Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014.

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