Motim da PM do Ceará pode se repetir em outras partes do Brasil?

Bastaram 11 dias de uma greve dos policiais militares do Ceará para os homicídios no estado baterem recordes

da Sputnik Brasil

Motim da PM do Ceará pode se repetir em outras partes do Brasil?

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Bastaram 11 dias de uma greve dos policiais militares do Ceará para os homicídios no estado baterem recordes, chegando 456 apenas em fevereiro, mês escolhido pelos agentes de segurança para se amotinarem e cruzarem os braços. A situação, porém, pode respingar em outros estados, segundo analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.

Entre os dias 19 e 29 de fevereiro, PMs e bombeiros militares ocuparam batalhões, danificaram viaturas e equipamentos, e chegaram a impor um toque de recolher. O motim causou estragos e tropas da Força Nacional e do Exército demoraram a chegar ao estado, a fim de restaurar a ordem e garantir a segurança da população.

Dos 26 estados brasileiros e o Distrito Federal, pelo menos uma dezena deles enfrentam embates salariais e de outros temas com policiais. Temendo um cenário como o do Ceará, os governos de Minas Gerais e Rio Grande do Sul já desafiaram o caos fiscal que enfrentam e concederam benefícios aos seus agentes de segurança.

Em entrevista à Sputnik Brasil, o cientista político Guaracy Mingardi, especialista em segurança pública, avaliou que existe uma ideia errônea de que a polícia deve ser militar para ser mais controlável, e que o mais recente episódio no Ceará mostra isso. Ele ainda afirmou que há um componente político no episódio cearense e em futuras greves de PMs pelo país.

“Olha, tem dois aspectos aí. Primeiro, que tem uma ideia genérica de que a polícia tem que ser militar, que é mais controlável, e isso é uma bobagem como a história tem demonstrado […]. E segundo, e aí é uma questão política importante, é que os órgãos de segurança normalmente apoiaram a candidatura [do presidente Jair] Bolsonaro. A maior parte dos policiais apoiou ele por causa do viés repressivo e tudo mais que eles acreditam que precisa”, afirmou.

O fato do Ceará ser governado pelo petista Camilo Santana não foi ignorado por Mingardi, que vê em uma possível impunidade para a violência policial – a ampliação do excludente de ilicitude é uma demanda defendida por Bolsonaro – como um combustível que conecta o Palácio do Planalto a motins como o visto em solo cearense.

“Tem muito policial que acha que estando mais coberto ainda ele pode entrar atirando em tudo quanto é lugar. E esses são os que mais influenciam a tropa. Então eles apoiaram de início o governo Bolsonaro, a candidatura, o governo e tudo mais e agora muitas dessas greves, essa que teve e as próximas vierem vão ter viés ideológico. Pensa, a PM do Ceará tinha aceitado um acordo muito bom, inclusive eles ganham mais do que a maioria das PMs do Brasil, mas assim mesmo eles quiseram fazer a greve que é uma questão política para eles para tentar se valorizar e desvalorizar o governo estadual que é adversário do governo federal”, analisou.

Policiais militares do Ceará voltam as atividades após o fim do motim
Policiais militares do Ceará voltam as atividades após o fim do motim. | Foto: © FOLHAPRESS/MAURI MELO/O POVO

Quem tem opinião semelhante é o juiz aposentado Walter Maierovitch. À Sputnik Brasil, o jurista relembrou que a demora do envio das tropas da Força Nacional e do Exército para o Ceará se deveu ao fato do presidente Bolsonaro não considerar, em um primeiro momento, que a medida era necessária, embora os números mostrassem o contrário.

Outro equívoco apontado Maierovitch envolveu um discurso proferido pelo diretor da Força Nacional, coronel Antônio Aginaldo de Oliveira, parabenizando os amotinados que, embora tivessem demandas salariais, estavam descumprindo a lei, que impede que militares participem de greves – o Supremo Tribunal Federal (STF) já referendou tal entendimento.

“Foi uma postura dele, Bolsonaro, que mostrou que ele foi muito ameno e veja que está lá o sujeito ainda, o diretor da Força Nacional, depois daquele discurso que ele fez. Ele estava falando em nome de quem? Da Força Nacional do governo Bolsonaro. E não houve nenhuma atitude, nenhuma reação com relação a isso, quando o mínimo que deveria ser feito era tirar o sujeito de lá […]. Se você reunir tudo isso, você vai ver que o Bolsonaro não se expôs ao ponto de se chegar a um impeachment como prevê a lei, mas ele fez tudo para dizer que o fato não era grave quando era muito grave, basta ver o número de mortos”, ponderou.

Perda de liderança

Nem todos os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil acreditam que parte da culpa repousa no governo Bolsonaro, tampouco que exista um risco iminente de outras paralisações policiais no país em breve. Para o ex-secretário nacional de Segurança Pública e ex-comandante da PM de São Paulo, José Vicente da Silva, a crise vista do Ceará – e no Espírito Santo, em 2017 – passa pela perda de liderança dos comandos.

“Há algumas polícias que não vêm conduzindo bem e exercendo uma posição de liderança sobre os policiais. Esse ponto é importante porque, quando percebemos essas crises, que nelas vão se formando uma série de ressentimentos. O problema salarial é apenas um dos ingredientes. Eu já pesquisei até detalhadamente algumas polícias de perto, Pernambuco, Minas Gerais e Bahia, e é comum a gente observar isso. Quando os oficiais, no caso as PMs, eles perdem essa liderança, muitas vezes eles até exageram na disciplina militar, um pouco mais ríspida, de forma até desrespeitosa, isso incrementa muito o mal-estar que os policiais buscam outras lideranças, quando não há um coronel com uma liderança efetiva, um cabo, um líder entre algum deles. Isso vem acontecendo”, comentou à Sputnik Brasil.

Citando um dado de um estudo do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), José Vicente Tavares dos Santos, Silva relembra que, entre 1997 e 2017 ocorreram 715 greves de policiais, com tempos variados de paralisação. E que 92% delas foram de policiais civis ou federais, com a PM tendo feito greves em apenas 7% dos casos.

“Um outro aspecto comum é como a gestão das polícias se relacionam com as entidades que estão no entorno dos policiais. Não é raro como em São Paulo você ter mais de 20 entidades ligadas à PM, e outras tantas ligadas à Polícia Civil […]. Então esse é um problema que pode acontecer, dependendo muito como se desenvolve a gestão de pessoas, o RH das polícias. São Paulo, por exemplo, tem um salário muito inferior a Sergipe, ou o salário acertado no Ceará, no Rio Grande do Sul e muito menos que o do Distrito Federal, e não existe a menor mobilização reivindicatória neste sentido”, acrescentou.

O ex-secretário de Segurança Pública chamou ainda de “bobagem” a ideia de que a ideologia bolsonarista possa estar ligada às reivindicações de policiais militares de todo o país.

“Não há nenhuma contaminação de caráter político, de bolsonarismo na polícia, isso é uma tremenda bobagem. Os policiais estão preocupados em pagar aluguel e não se o Bolsonaro é simpático [ao movimento] ou não. Isso não é um fator que pesa nessas articulações que estão acontecendo ou que possam ocorrer”, opinou.

Entretanto, Guaracy Mingardi insistiu que novas paralisações, se ocorrerem, provavelmente devem ocorrer por questões ideológicas, ainda mais em um ano de eleições municipais. Além da greve em si, o especialista disse que um dos grandes desafios é impedir que as tropas de policiais sejam instrumentalizadas para fins sindicais.

“Pode acontecer por questões ideológicas. Não digo que vá acontecer. Mas primeiro tem aqueles que vão aderir por causa do salário, acham que vão ganhar o mundo com a greve, as vezes eles têm que ganhar mais mesmo, não estou diminuindo isso, os salários das polícias não são bons no Brasil inteiro, a não ser em lugares específicos, a polícia do Distrito Federal, um ou outro lugar tem um salário bom para a polícia. Agora, a maioria não tem, então você tem essa questão salarial de verdade. Muitas vezes as lideranças são mais ideologizadas do que preocupada com a questão sindical”, avaliou.

Lei e ordem

Dois dias após o governo do Ceará anunciar um acordo com os policiais amotinados, no início do mês, a Assembleia Legislativa do estado aprovou uma medida impedindo qualquer tipo de anistia aos envolvidos na crise da segurança estadual. Para os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, o Estado brasileiro não pode retroceder e ser refém das corporações.

“Reagir sempre de acordo com a lei. E como se faz isso? Nesses casos, realizando prisões administrativas, expulsando da corporação, vigiando a Força Nacional, vigiando o Exército, é assim que se faz dentro da lei e da ordem”, sentenciou Walter Maierovitch.

Senador licenciado Cid Gomes (PDT) (de camiseta laranja) dirige retroescavadeira durante protesto de policiais na cidade de Sobral, no interior do Ceará, na tarde de quarta-feira (19). | Foto: © FOLHAPRESS/WELLINGTON MACEDO

Da mesma forma, Guaracy Mingardi criticou o fato dos policiais cearenses terem realizado a sua paralisação armados, o que levou a episódios como o disparo contra o senador Cid Gomes (PDT-CE) em Sobral, no interior do Ceará. O fato fez com que os amotinados fossem comparados a milicianos.

“Isso aí não é só questão de milícia, é rebelião. Fazer greve é uma coisa, uma greve armada de pessoas encapuzadas é outra. Tem que pensar nisso […]. Se os governos estaduais se mantiverem firmes, punirem e expulsarem algumas das pessoas responsáveis pelo que aconteceu, aí você tem que mostrar que não vai ceder. Se você mostrar que vai ceder, a coisa vai complicar”, completou o cientista político.

Neste aspecto o ex-comandante da PM paulista José Vicente da Silva concorda com os demais analistas, destacando que “ações de banditismo que são intoleráveis” e que os agentes de segurança envolvidos nisso devem ser demitidos, evitando-se anistiar quem participa de tais paralisações. De acordo com ele, a anistia só estimula novos episódios problemáticos.

“Quando anistia… nós tivemos anistias por leis federais, que em grande parte anistiam policiais civis e federais, e isso serve como estímulo não só para a impunidade, mas para novas paralisações, com a certeza que poderão abusar do uso da sua arma, da sua paralisação, tudo com a sociedade de joelho diante de uma explosão de violência que com certeza vão ser anistiados e perdoados depois. Isso não pode acontecer. As cenas que vimos no Ceará foram de alguma maneira plantadas lá na paralisação, não só lá como em outros estados” afirmou.

Segundo Silva, apenas uma reorganização das atribuições das polícias no Brasil, como prevê a Constituição Federal de 1988, poderia dar mais clareza aos direitos e deveres dos policiais e, assim, impedir novos motins.

“Maus policiais miram a política. O problema da ação disciplinar nas polícias é permanentemente e não é apenas de corregedoria das polícias. A corregedoria é um órgão central que é um âmbito de coordenação dos estados. O problema da disciplina tem que ser feito por cada comandante, que em cada estado devem ficar de olho em seus policiais, sendo intolerantes a qualquer desvio. Se tem alguma vinculação com as milícias, colhem-se as evidências, leva-se a um processo prévio e manda embora. Ah, mas ele aí vai englobar a milícia. A gente vai tratá-lo como bandido”, opinou.

“Seria uma oportunidade muito boa, já que está sendo colocada a questão do Ceará. O problema nosso não é de greve, é de reorganização as polícias, tem um artigo que estabeleceu isso há 32 anos e até agora não foi feito. Não é o caso de fazer uma lei orgânica para cada polícia, isso não é suficiente. Tem que ser uma lei só, regulamentando o parágrafo 7º com direitos, deveres e normais inclusive sobre a participação em movimentos grevistas”, concluiu.

Redação

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