O “Quarteto Fantástico” e a ideologia neoliberal

O G1 fez uma crítica devastadora a este filme http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2015/08/quarteto-fantastico-e-o-pior-filme-de-herois-dos-ultimos-anos-g1-ja-viu.html. Fiquei curioso e fui ver este candidato ao troféu Framboesa de Ouro. 

O filme “Quarteto Fantástico” pode ser descrito em apenas um parágrafo. Quatro cientistas jovens e brilhantes constroem uma máquina que lhe permite fazer viagens para uma outra dimensão. Três deles tem boas inclinações, o quarto já apresentava tendências ao isolamento e à violência. Num planeta que existe em outra dimensão dois deles e um amigo de infância de um dos protagonistas entram acidentalmente em contato com uma substância verde e amarela. Três deles retornam à terra com poderes especiais. A jovem que está no laboratório também é afetada. O garoto problemático fica naquele estranho e se transforma num vilão. Quando uma nova expedição é enviada ao seu novo lar, o vilão retorna a terra para destruir nosso planeta. Ele é derrotado pelo quarteto fantástico. No fim do filme os heróis fazem chantagem para obter do governo norte-americano o que desejam: um novo laboratório e verbas ilimitadas para pesquisas.

A primeira coisa que chama a atenção neste filme é a natureza ambígua da poderosa substância verde e amarela encontrada no outro planeta. Ela tanto produz heróis quanto vilões. A escolha destas cores é uma referência ao Brasil ou a uma das cúpulas do Kremlin? As cores vermelho e azul não foram escolhidas para representar aquela substância porque os EUA é intrinsecamente bom e suas cores não podem ser a fonte do mal? Porque outras combinações de cores (como cinza e laranja, púrpura e marrom, branco e azul) não foram escolhidas? É difícil responder a estas questões. A escolha, contudo, reflete a ideologia dos produtores e do diretor do filme.

“A desconfiança e a suspeita que os homens de todos os países manifestam para com os adversários, em qualquer fase do desenvolvimento histórico, devem ser consideradas como precursoras imediatas da noção de ideologia. Mas é apenas quando a desconfiança de homem para homem, mais ou menos evidente em cada fase da evolução histórica, se torna explícita e metodologicamente reconhecida, que podemos passar a falar propriamente da existência de uma coloração ideológica nas idéias do próximo. Chegamos a esse ponto quanto já não tornamos os indivíduos pessoalmente responsáveis pelas ilusões que lhes descobrimos nas idéias, quando já não atribuímos o mal que fazem à astúcia deliberada. É apenas quando procuramos, mais ou menos conscientemente, descobrir a fonte de sua falsidade num fator social, que começamos a fazer uma interpretação ideológica. Principiamos a tratar as opiniões de nosso adversário como ideologias quando não mais se nos afiguram mentiras calculadas, quando sentimos em sua conduta total uma ausência de fidedignidade que consideramos função da situação social em que se encontra. A concepção particular de ideologia significa, pois, um fenomeno intermediário entre a mentira pura e simples, de um lado, e de outro o erro, resultado de um aparelhamento conceitual viciado e falho. Reporta-se a uma esfera de erros de natureza psicológica que, diferentemente do engano deliberado, não são intencionais, mas decorrem inevitável e inadvertidamente de certas determinantes causais.” (Ideologia e Utopia – Introdução à Sociologia do Conhecimento, Karl Mannheim, editora Globo, Rio de Janeiro, 1956, p. 56/57)

Suspeita e desconfia em relação a um adversário real ou imaginário podem ser manifestadas através da rejeição escancarada ou sutil às suas características físicas, culturais, sociais ou religiosas. Os símbolos e ícones em que o outro se reconhece geralmente também despertam temor e podem ser objeto de agressão. A ideologia condiciona as preferências estéticas e as atitudes concretas das pessoas. Isto pode ser facilmente visto no Brasil neste momento.

Aqueles que querem derrubar Dilma Rousseff e destruir o partido de Lula nutrem e expressam um ódio irracional à bandeira do PT. Eles vão às ruas usando verde amarelo como se fossem os únicos “brasileiros verdadeiros”. A ideologia quase sempre produz contradições. Os tucanos rejeitam o vermelho na bandeira do PT, mas aceitam esta cor quando a mesma está na bandeira dos EUA. Ao queimar a bandeira norte-americana os inimigos dos EUA dizem algo sobre si e sobre seu ódio. Os petistas gostam da sua bandeira e odeiam o partido de George Bush Jr. que também é representado pela cor vermelha. Como anti-petistas e russos (os primeiros obsedados pela bandeira do Brasil e os últimos sempre tão apegados às cúpulas do Kremlin) encararam a escolha do verde e amarelo para representar a substância poderosa e ambígua que produz os heróis e o vilão do filme Quarteto Fantástico?

Um dos corolários do “American way of life”, em sua atual versão neoliberal, é a avassaladora predominancia política das mega-empresas de energia, entretenimento, finanças e armamentos. Grupos  populares de pressão organizados por cidadãos (como o Occupy Wall Street Movement, por exemplo) são desqualificados pela imprensa e perseguidos pela polícia. A democracia dos EUA está tão corrompida que as empresas passaram a ter personalidade política. Corporações norte-americanas poderosas sustentam lobistas no Congresso, financiam campanhas eleitorais e, em alguns casos, conseguem distorcer a política interna e externa do país, etc… Os cidadãos norte-americanos podem votar, mas sua interferencia após as eleições é diminuta, indesejada e até vigiada pelo FBI.

“Se a ideologia não pode ser divorciada do signo, então o signo também não pode ser isolado das formas concretas de intercambio social. É apenas dentro destas que o signo ‘vive’, e, por sua vez, essas formas de intercambio devem estar relacionadas com a base material da vida social. O signo e sua situação social estão inextricavelmente fundidos, e essa situação determina a partir de dentro a forma e a estrutura de uma elocução. Temos aqui, então, o delineamento de uma teoria materialista de ideologia que não a reduz simplesmente a um ‘reflexo’ da ‘base’ economica, mas concede à materialidade da palavra e aos contextos discursivos a que se prende, o que lhe é devido.” (Ideologia, Terry Eagleton, Boitempo editorial, São Paulo, 2009, p. 172)

Foi por esta razão que considerei o desfecho do filme muito adequado à ideologia em voga nos EUA. Como as mega-empresas, os heróis também são livres porque tornaram poderosos para chantagear o governo norte-americano. Sem opor qualquer resistência, os agentes governamentais cedem à chantagem quer porque se sentem impotentes, quer porque devem retribuir os feitos heróicos. Seria impossível conceber outra solução mais inadequada para o filme do que o governo ceder a pressão da população prejudicada pelos cientistas para que eles não fossem premiados e sim punidos em razão dos danos que causaram. Afinal, se quarteto fantástico não tivesse inventado o equipamento que permite a viagem para outra dimensão o mundo não teria quase sido destruído e centenas de vidas teriam sido poupadas.  

A exploração cinematográfica das relações público/privadas mediadas pela chantagem dos poderosos, contudo, pode ser interpretada de outra maneira. Afinal, como disse Leandro Konder:

“Mesmo os grandes artistas que cultivaram pontos de vista explicitamente conservadores, como Balzac, assumiram em suas obras postura agudamente crítica em relação à organização das sociedades hegemonizadas pela burguesia e contribuíram para o questionamento de algumas distorções trazidas pela ideologia dominante à compreensão da realidade.

Isso quer dizer que nas obras de arte bem-sucedidas há sempre uma superação da ideologia? Os grandes artistas realizam uma eliminação da distorção ideológica?

As respostas a essas duas perguntas poderiam ser, sumariamente: sim, para a primeira: não, para a segunda.” (A questão da ideologia, Leandro Konder, Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 218)

Ao mostrar a forma como os poderosos se relacionam com o Estado e como os agentes estatais se submetem docilmente às ameaças veladas ou reais, os idealizadores do filme Quarteto Fantástico questionam uma distorção da ideologia dominante nos EUA. O desfecho do filme é adequado ao “American way of life” e de certa maneira o critica de uma forma aguda e bem humorada. Esta talvez seja a única virtude deste filme, que no mais é uma HQ que, em alguns momentos, provoca muita sonolência.

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador