O que acontece quando uma cidade inteira é vacinada contra Covid-19?
por Dalson Figueiredo (UFPE),
Lucas Silva (UNCISAL) e
Juliano Domingues (UNICAP)
A excelência da ciência brasileira foi capaz de transformar uma cidade inteira em um imenso laboratório salva-vidas. O Projeto S, estudo inédito idealizado pelo Instituto Butantan, foi lançado em Serrana (SP) para avaliar o que acontece quando uma população é imunizada em massa contra COVID-19. E, em 11 de abril de 2021, 60% da população já havia tomado a segunda dose da vacina.
Nosso objetivo neste artigo é dar um spoiler dos resultados que serão brevemente apresentados pelo Butantan. A partir de dados oficiais do Ministério da Saúde e com um pouco de estatística, demonstramos que a mortalidade em Serrana é, pelo menos, a metade daquela registrada em cidades com o mesmo porte populacional. Todos os nossos dados e rotinas computacionais estão publicamente disponíveis aqui <https://osf.io/4kvg9/>.
O estudo realizado em Serrana seguiu todos os protocolos científicos: foi autorizado pela Anvisa, aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Plataforma Brasil) e registrado no tradicional sítio ClinicalTrials.gov (no NCT04747821). Mais informações sobre a iniciativa podem ser encontradas em https://projeto-s.butantan.gov.br/ ou no Instagram (@projetoserrana). Nas palavras de Dimas Covas, atual diretor do Butantan, “o que nós vamos obter de respostas aqui em Serrana vai servir para o mundo inteiro. Serrana vai dar a resposta se a vacinação de fato vai ter um efeito imediato e duradouro sobre a pandemia. Nos próximos meses, o trabalho que vamos realizar aqui é de fundamental importância para a humanidade”. E ele tem razão.
A vacina, diferente do que diz o presidente Bolsonaro, não transforma ninguém em jacaré. Na verdade, enquanto política pública de saúde, a imunização em massa é a medida mais efetiva para proteger a população dos efeitos adversos provocados pelo Sars-Cov-2. A Tabela 1 apresenta as informações de interesse para as quatro cidades-controle selecionadas para realizar essa comparação.
Tabela 1 – Incidência de COVID-19 em perspectiva comparada (01/01/2021-09/06/2021)
Cidade | População | Média de casos | Total de casos | Taxa de incidência (casos/população) * 10 mil |
Garça | 44.390 | 16,22 | 2.579 | 580,99 |
Jardinópolis | 44.380 | 14,05 | 2.234 | 503,38 |
Paraguaçu Paulista | 45.703 | 16,91 | 2.689 | 588,36 |
Salto de Pirapora | 45.422 | 12,18 | 1.936 | 426,23 |
Serrana | 45.107 | 16,47 | 2.618 | 580,40 |
Os dados mostram que Garça (580,99), Paraguaçu Paulista (588,36) e Serrana (580,40) têm níveis bastante semelhantes de incidência de COVID-19, proporcional às suas respectivas populações. Os três estão na casa de 580 casos por 10 mil habitantes, são do mesmo tamanho e apresentam situação socioeconômica semelhante: o Índice de Desenvolvimento Humano em Garça é de 0,769, em Paraguaçu Paulista é de 0,762 e, em Serrana, de 0,729. Assim, tudo mais mantido constante, é de se esperar níveis similares de mortalidade.
Vejamos o que dizem os dados.
Tabela 2 – Mortalidade por COVID-19 em perspectiva comparada (01/01/2021-09/06/2021)
Cidade | População | Média de óbitos | Total de óbitos | Taxa de mortalidade (óbitos/população) * 10 mil |
Garça | 44.390 | 0,46 | 73 | 16,45 |
Jardinópolis | 44.380 | 0,40 | 63 | 14,20 |
Paraguaçu Paulista | 45.703 | 0,50 | 80 | 17,50 |
Salto de Pirapora | 45.422 | 0,69 | 109 | 24,00 |
Serrana | 45.107 | 0,23 | 37 | 8,20 |
A mortalidade em Garça (16,45) e em Paraguaçu Paulista (17,50) é o dobro da observada em Serrana (8,20). Em particular, a cidade escolhida para sediar o Projeto S é a única com taxa abaixo de 10 óbitos por 10 mil habitantes. Nas palavras do infectologista Fernando Bellissimo Rodrigues, o efeito esperado da vacinação com a Coronavac é a diminuição da mortalidade, sem grandes impactos sobre a incidência.
A vacina evita o agravamento da doença, mas não a infecção pelo novo vírus. Foi exatamente o que encontramos: Serrana exibe níveis semelhantes de propagação de COVID-19, mas conserva uma mortalidade significativamente menor. Vejamos a evolução da mortalidade por mês em perspectiva comparada.
A linha sólida preta indica a média diária de mortes por mês considerando todas as cidades (0,46), o que dá cerca de um óbito a cada dois dias. As bolinhas vermelhas representam a média de óbitos por mês. Garça e, principalmente, Paraguaçu Paulista exibem tendências de crescimento na quantidade de mortes, enquanto Serrana reflete o que a vacina garante: proteção contra casos graves da doença e, obviamente, menor chance de vir a óbito.
Ninguém gosta de spoilers, mas em um país com quase 500 mil vidas perdidas, que teve quatro diferentes ministros da Saúde durante a pandemia, em que o chefe do Executivo defende remédio de verme sem eficácia como tratamento precoce e que ainda utiliza relatórios fakes para reduzir a dimensão do problema, acreditamos que temos boas razões para antecipar os efeitos do Projeto S. Para Carl Sagan, “a ciência é muito mais do que o corpo de conhecimento. É uma maneira de pensar”. Assim, a utilização do mesmo método aplicado ao mesmo conjunto de dados vai dar o mesmo resultado.
A ciência não tem partido nem ideologia. É questão de dias para que os resultados do Butantan, com muito mais detalhes e evidências, sejam oficialmente disponibilizados para a população brasileira. E, quando isso ocorrer, teremos uma importante pá para enterrar o negacionismo que tomou conta de parte do debate público. Com sorte, os resultados do Projeto S servirão para escancarar a posição equivocada do presidente que, desde o início da pandemia, apostou na morte da população.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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