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RACISMO: O BRANQUEAMENTO DA SOCIEDADE

 

 

Especialista em temas como racismo, antropologia, questão racial e cultura e religiosidade afro-brasileira, Andreas Hofbauer é PhD pela Universidade de Viena, Doutor em Antropologia Social pela USP e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Unesp, campus Marília. 

Autor do livro Uma História de Branqueamento ou o Negro em Questão, nesta entrevista Andreas discute o racismo no Brasil, conta como o movimento negro reagiu à ideologia do branqueamento e se mostra pessimista quanto à harmonização cultural.

Confira a íntegra da entrevista:


Conexão Professor (CP) – O racismo no Brasil é diferente do resto do mundo? 

Andreas Hofbauer – Quando falamos sobre o racismo, é bom lembrarmos que este conceito surgiu num contexto específico: num momento em que a noção de “raça”, como fator determinante para todas as formas de diferenças humanas, começava a ser posta em xeque pela ascensão de um novo paradigma – “as culturas humanas” – e em que, ao mesmo tempo, regimes políticos (em primeiro lugar, a Alemanha nazista) aplicavam as “velhas” “teses raciais biologistas e deterministas” para promover políticas de discriminação, segregação e até de extermínio de grupos humanos indesejados. O fato de que a palavra “racismo” foi lançada por alguns intelectuais europeus, em primeiro lugar, como um conceito de luta contra práticas específicas de discriminação implementadas por lei, pode, inclusive, explicar em parte por que o Brasil conseguiu, durante tanto tempo, representar-se, com sucesso, como um “paraíso racial” ou ainda como uma “democracia racial”. Afinal, aqui nunca existiu algo como um segregacionismo baseado em “leis raciais”.

Mas existiram, evidentemente, muitas outras formas de discriminação e exclusão e diversas construções ideológicas que justificaram tais práticas. Vamos lembrar apenas alguns dados marcantes: fazem parte da História do Brasil mais de 350 anos de escravidão. Faz parte também da história de discriminação contra negros o fato de que a elite brasileira decidiu, num momento de transição da produção econômica e do regime político, atrair mão-de-obra européia em vez de buscar inserir os ex-escravos num novo projeto de sociedade. Outro fator que contribuiu para a dificuldade de se encarar de frente a trajetória discriminatória do Brasil foi a maneira como o discurso do enaltecimento da miscigenação, que na obra de Gilberto Freyre ganharia ares de mito fundador de uma nova nação nos trópicos, apresentava-se como um posicionamento contra o determinismo racial ortodoxo, ao mesmo tempo em que não rompia, de forma definitiva, com o ideário do branqueamento.

Diante da grande divergência em torno da definição do conceito de racismo, vários especialistas no assunto questionam hoje a utilidade de delimitá-lo, de forma abstrata, de outros fenômenos parecidos (xenofobia, etnocentrismo) ou de fixar uma data de origem deste fenômeno. Concordo com aqueles que preferem usar o termo no plural e reivindicam que o fenômeno do racismo deva ser analisado caso a caso, numa perspectiva histórica. Se compararmos os dados socioeconômicos das populações registradas como “pardas” e “pretas” pelo IBGE com aquelas dos brasileiros “brancos”, constataremos ainda grandes diferenças entre os grupos que aparentemente são maiores do que aquelas registradas em estudos comparáveis de “negros” e “brancos” nos EUA. Podemos dizer que lá a classe média negra é relativamente maior do que no Brasil (veja, p.ex., as posições de destaque em áreas de política, economia, ciência que vários negros alcançaram nos EUA). Não me parece, porém, que faça sentido tentar medir “graus” de racismo, uma vez que “racismo”, se entendido não somente como um instrumento de denúncia, mas também como um fenômeno sociocultural, envolve dimensões simbólicas (valorizações e desvalorizações de corpos, tradições, linguagens; diferentes formas de comunicação intergrupal, diferentes formas de viver e resolver conflitos, etc.) que não são facilmente transportáveis de uma sociedade para outra.

CP – O que seria o branqueamento da sociedade?  É possível dizer qual a origem deste fenômeno?
Andreas Hofbauer – Se entendermos o branqueamento numa perspectiva antropológica, ou seja, como uma construção simbólica, a idéia de transformar corpos negros em corpos brancos é apenas um aspecto de um ideário muito mais profundo e abrangente. A ideologia do branqueamento costuma ser associada, no Brasil, aos projetos imigracionistas que, na virada do século XIX para o século XX, trariam milhares de europeus brancos ao país. A idéia da imigração européia, que já fazia parte dos primeiros projetos abolicionistas (no início do século XIX), visava não apenas  modernizar a produção. Assim, em 1821, o médico e filósofo Francisco Soares Franco apresentou um projeto no qual propôs que o lento processo de emancipação deveria ser acompanhado por uma política imigracionista, a qual deveria ter como objetivo a homogeneização da nação, isto é, a transformação da “raça negra” em “raça branca”. Um processo que – segundo ele – poderia ser efetuado num prazo de três gerações. Noventa anos depois, quando o fluxo imigratório estava em pleno andamento, o antropólogo João Baptista Lacerda repetiria este prognóstico, num discurso muito citado, no Congresso Universal das Raças em Londres (1911), afirmando que a imigração européia e a seleção sexual (preferência por casamentos com brancos) fariam com que a “raça negra” fosse extinta dentro de um prazo de cem anos.

Desde os primórdios do cristianismo (e, aliás, também do islã e do judaísmo), a cor negra vinha sendo associada ao inferno, ao diabólico, e, devido a uma reinterpretação de um trecho do Velho Testamento(Gênesis, cap. IX), também à culpa, à imoralidade e à escravidão, enquanto o “branco” expressava o divino e a pureza da verdadeira fé. Transformar “negro” em “branco” era, portanto, um ideal e uma atitude moral-religiosa que seria associada também aos processos que envolvem a conversão. No contexto colonial brasileiro, os jesuítas incentivariam durante muito tempo o tráfico negreiro como uma empresa de “resgate” de “almas pagãs perdidas”. Estabelecer-se-ia no Brasil um ideário – que se tornaria hegemônico – que fundia, de um lado, “negro” com a condição de escravo, e, de outro lado, associava “branco” aos ideais morais-religiosos, ao status de livre e – sobretudo – a partir da segunda metade do séc. XIX, à idéia do progresso. Esta visão, propagada pelas elites, teve também sua repercussão entre aqueles que, em princípio, eram “vítimas” deste discurso, sobretudo entre aqueles que ansiavam ascender dentro da ordem estabelecida (p.ex., conquistar a alforria).

A idéia de transformar uma raça, definida como negra, em outra, definida como branca, é expressão de um processo de secularização da concepção do mundo e representa mais uma etapa da história de ressignificação do ideário do branqueamento que, como já comentamos, ganharia grande importância no discurso daqueles que ansiavam pela modernização do país. Este ideário seria rearticulado uma última vez por meio de uma adaptação local de teses culturalistas (cf. a obra de Freyre), que buscava transpor, de certo modo, o discurso sobre a “mistura feliz” entre raças inferiores e raças superiores para o plano das culturas. Na análise de G. Freire, a “mestiçagem” aparece como uma espécie de “ponte” que aplaina e supera os “desajustes” raciais e culturais entre negros, brancos e índios e, dessa forma, teria viabilizado a formação da “nação/cultura brasileira”. Mas, por baixo do enaltecimento da miscigenação, o autor reproduziu recorrentemente o velho ideal branqueador, por exemplo, quando escreve em Sobrados e Mucambos: “Talvez em nenhum outro país seja possível ascensão social mais rápida de uma classe a outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a ‘branco’ ou a ‘moreno’ ou ‘caboclo’”. Ou quando comenta com satisfação e orgulho que, no Brasil, uma mestiça clara bem-vestida e comportando-se como gente fina pode “torna[r]-se branca para todos os efeitos”.

CP – Como o movimento negro reagiu a este branqueamento?
Andreas Hofbauer – Se entendermos como movimentos negros aquelas entidades criadas por negros nos espaços urbanos, sobretudo a partir do século XX, que seguiram grosso modo moldes de organização política ocidentais com o objetivo de reivindicar o cumprimento de direitos civis e de protestar contra discriminações e preconceitos, podemos detectar diferentes fases de atitudes estratégicas por parte dos movimentos negros. Vivendo em situações precárias (cortiços e porões) e enfrentando no mercado de trabalho a concorrência não apenas de brasileiros não-negros, mas também de milhares de imigrantes europeus que geralmente eram preferidos pelos empregadores, os líderes das primeiras entidades reproduziram a idéia, difundida por abolicionistas e cientistas, sobre a singularidade do Brasil, no que diz respeito às relações entre negros e brancos e aderiram, inclusive, ao ideal do branqueamento cultural. Os editores do jornal negro Getulino (Campinas, 1923-1926) chegaram até a propagar a idéia da “fusão das raças” nos termos proclamados por Lacerda: apoiaram, portanto, a imigração européia e opuseram-se à vinda de negros norte-americanos por acharem que o seu feitio orgulhoso e rebelde podia constituir uma ameaça à suposta “harmonia social” do país.

Um dos objetivos mais importantes da Frente Negra Brasileira (1931-1937), que tornar-se-ia o maior movimento negro de sua época, foi também denunciar o preconceito de cor no mercado de trabalho. Além disso, os frente-negrinos apostavam, em primeiro lugar, na formação e na educação dos negros. A dedicação ao trabalho era considerada o “meio” pelo qual o negro deveria conseguir ascender socialmente e também a estratégia apropriada para enfrentar e quiçá superar o preconceito. Assumindo uma ideologia direitista e nacionalista, os líderes entendiam que a “raça negra”, como elemento constitutivo da jovem nação, deveria dar a sua contribuição para o desenvolvimento do Brasil, que concebiam como parte da civilização ocidental. Referências à África eram, portanto, raras no jornal editado pela Frente Negra Brasileira. Entendia-se que não havia motivo para “olhar para trás”. Se, de um lado, as publicações da Frente Negra Brasileira incentivavam os filiados a se orientar nos comportamentos, na vestimenta e, inclusive, no corte do cabelo da classe média branca, faziam, por outro lado, campanhas não apenas contra o alcoolismo e a vadiagem, mas buscavam também afastar os negros dos batuques, dos sambas e das formas religiosas de matriz africana.

As decepções e sofrimentos pessoais demonstrariam, porém, que o preconceito racial não pode ser vencido com atitudes assimilacionistas e/ou “servis”. Mudaram os tempos, e aos poucos começaram a articular-se novos movimentos sociais, reivindicando a abertura política e o fim da ditadura. Quando os grupos negros conseguiram se reorganizar com força renovada no final da década de 1970, o discurso político-ideológico já tinha mudado. E a avaliação das razões da discriminação e o ideal do sujeito negro também. Muitos dos jovens líderes, que buscavam, num primeiro momento, inspirações em teorias marxistas, atribuíram a miséria em que grande parte da população negra continuava vivendo diretamente ao capitalismo e/ou à civilização branca. Entendiam agora também que as diferentes formas de branqueamento (moral-religioso, racial-biológico, cultural) são fruto de ideologias discriminatórias que devem ser combatidas e cujos efeitos precisariam ser revertidos. Não é de estranhar que dentro desta perspectiva a cultura negra e a África se tornariam referências simbólicas fundamentais para reorganizar a luta. Sobretudo a partir dos anos 1990, a militância negra entraria em sintonia com outros movimentos diaspóricos mundo afora. A palavra de ordem tornar-se-ia agora “afirmar as diferenças”. Diante das forças do capitalismo avançado – que tende a desestabilizar velhas estruturas socioculturais e tem contribuído para enfraquecer as funções e os históricos compromissos do Estado-Nação –, vários grupos minoritários no mundo inteiro têm optado por “resgatar suas tradições” e por articular-se como “grupos de pressão” – muitas vezes, uns competindo com os outros – para obter certos “benefícios” que até pouco tempo eram tidos como garantias sociais do cidadão. No entanto, a reivindicação de implementar ações afirmativas visa não apenas  combater e reparar discriminações históricas de ordem socioeconômica, mas também a reparar e inverter discriminações e danos de ordem simbólico-moral.

CP – O senhor acredita que no futuro possa haver uma convivência harmônica, onde cada cultura coexista, interaja e até se misture, ou que vão prevalecer os guetos culturais?
Andreas Hofbauer – A maioria dos antropólogos já não entende hoje as culturas como “ilhas isoladas”, como “entidades coesas”. Alguns colegas “vanguardistas” preferiram abandonar de vez o conceito por acharem que ele evoca holismos e homogeneidades que não condizem e nunca condisseram com as vivências concretas dos seres humanos em nenhum lugar. Ao menos para mim, parece ainda válido falar em tradições simbólico-valorativas por meio das quais as pessoas interpretam e organizam as suas vidas de forma dinâmica. Ao mesmo tempo, constata-se hoje que tais processos culturais são envolvidos cada vez mais por entrecruzamentos e fusões, por processos de homogeneização, como também por contra-reações a velhas tradições assimilacionistas inspiradas tanto em projetos políticos multiculturalistas como em convicções de ordem fundamentalista. Ou seja, além de novas formas e experiências de trocas e de solidariedades, surgem também novas formas de conflito – e todas elas são articuladas por meio de signos e símbolos que parecem ser cada vez mais polissêmicos (veja, p.ex., a controvérsia em torno do véu islâmico na Europa). Não vejo, no entanto, nenhum sinal de que este mundo cheio de tensões e contradições se harmonize num futuro breve.

Redação

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