Série Mudanças no Futebol: “Dirigentes precisam voltar para a escola”

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – Das heranças da Copa do Mundo no Brasil, a que se espera manter sob os holofotes, mesmo após um mês do fim do Mundial, é a necessidade de mudança. Essa foi a conclusão de uma série de entrevistas que o GGN realizou, após o desastre no placar, que se tornou o alerta para buracos ainda maiores. Entretanto, para cada especialista, uma resposta.

A fim de questionar os principais pontos – onde está o problema do futebol brasileiro? Por que perdeu a sua competitividade? Qual é o cenário da base, dos clubes, da Confederação, dos empresários, e como isso tudo reflete na competição e na lucratividade? Como melhorar? – conversamos com Heraldo Panhoca, advogado especializado em Direito do Trabalho e Direito Desportivo e um dos autores da redação da Lei Pelé.

Acompanhe a entrevista:

GGN: Qual é, de fato, o problema do futebol?

Heraldo Panhoca: O problema do futebol do Brasil é que não existe gestão com responsabilidade. Estamos só falando de futebol, mas o exemplo serve para todas as práticas, porque o atleta é atleta em qualquer modalidade. A Lei Pelé alcança a todos, não só o futebol.

Nós temos, hoje, o balizamento de 14 a 20 anos que é a formação regular do atleta, ainda como não profissional. Formação, primeiro, é parte educacional. Você não pode dar a atuação de formação profissionalizante ao menor, entre 14 e 15, que não tem o curso fundamental completo. Há a imposição constitucional, a imposição da Lei do Trabalho, o Estatuto da Criança.

O clube para fazer dinheiro, para fazer lucro, profissionaliza o atleta aos 16. E esse atleta passa a ter salário, porque ele é profissional, e deixa de ter sentido a formação, por incapacidade do clube de ter um centro de formação.

O que o legislador, já no governo Dilma, fez. Transferiu para a CBF certificar quem é clube formador no Brasil. Quer dizer, a CBF não tem a capacidade nem para administrar a prática do futebol, agora como é que nós vamos dizer que é capaz, por força de uma lei, de certificar se alguém cumpre as normas de capacitação do indivíduo para a vida e para a profissionalização?

Realmente, nós brincamos de fazer legislação esportiva no Brasil porque, primeiro, só se pensa em futebol e, segundo, só no resultado imediato. Tudo isso que se pede hoje já foi exaustivamente construído ao longo do tempo. Só que não é posto em prática. Nem pelo clube, muito menos pela CBF.

A competência legislativa não é executada porque nossos dirigentes não têm capacidade para gerir. Ele é imediatista, ele é resultado financeiro. Não está preocupado com a formação dos nossos jovens ou até com o desenvolvimento da nossa atividade.

GGN: Já existe regulação para, por exemplo, modificações nas próprias federações, na questão da rotatividade de dirigentes?

Heraldo Panhoca: Eu entendo, hoje, que desporto brasileiro tem lei até demais. Nós temos a Lei Pelé, que já não é mais Pelé, é a Lei 9.615, porque os legisladores pós 2003, principalmente a bancada da bola, tiveram o condão de vim descaracterizando tudo aquilo que na Lei Pelé foi conquista do desportista e do clube formador de atletas.

A legislação colocou no devido lugar as entidades de administração, ou seja, as confederações e federações, e dotando o clube, que é a grande célula de formação do atleta, e o próprio atleta de garantias.

O maior e grande exemplo disso é que a Lei Pelé, lá em 1998, ou seja, 16 anos atrás, determinou em seus artigos que, quando a seleção brasileira convoca o atleta de um clube, é responsável por indenizar o clube pela ausência desse atleta no seu plantel. A Lei obriga que ela indenize os custos que o clube tem para manter o atleta, e só devolva depois de apto a continuar jogando. Porque, invariavelmente, principalmente em algumas modalidades, futebol é uma delas, mas vôlei, basquete, futebol de salão são mais gritantes ainda, a seleção convoca, o atleta sofre lesões nas competições oficiais, e ela devolve ao clube sem nenhuma indenização ou tratamento.

Você percebe que o grande problema do cumprimento da norma está na Confederação. Porque ela é predadora da própria matéria prima que ela precisa: que é o clube para manter o atleta e o atleta para manter o espetáculo.

Dentro dessa linha, há três anos, os clubes, não do futebol, aprovaram uma norma de que 5% da verba do Ministério do Esporte viria para os clubes sociais e desportivos formarem atletas, especificamente na faixa de 14 a 20 anos. O dinheiro foi colocado na Confederação Brasileira de Clubes, que é de todas as modalidades, hoje, aproximadamente R$ 200 milhões, e a primeira regra que essa entidade fez: coibir que se dê bolsa escola, bolsa alimento para o atleta em formação e pagamento do treinador.

Nosso dirigente está absolutamente despreparado, ou até mal intencionado, porque como eu posso formar uma criança sem escola, sem alimento, sem professor? Essa é a realidade.

Está tudo regulamentado. Nós não temos fiscalização de agente correto e, muito menos, cumprimento por quem de direito. O nosso problema no Brasil não é lei, é gestão e execução da gestão, fiscalização do gestor. E a gestão começa pela Confederação e pelas Federações, em todas as modalidades, não vamos só falar no futebol.

GGN: Como é possível solucionar esse problema de gestão?

Heraldo Panhoca: O problema de gestão é muito tranquilo. Basta que o ente fiscalizador obrigue essa entidade a cumprir a lei brasileira.

Outro dia, eu ouvi o pessoal do Bom Senso F.C., esse grupo de atletas, dizer: nós vamos mudar a Constituição para poder mudar a eleição da CBF. Só mudando a Constituição mesmo. Agora, não vai resolver o problema.

Não adianta mudar a direção. Não dar a eles recursos públicos já é a primeira maneira de inibir. E segundo, obrigá-los a cumprir o que a legislação já determina, ou seja, cada vez que a seleção precisar de um atleta, ela deve indenizar o clube. Então, você começa a criar responsabilidade no gestor na hora de convocar, na hora de usar esse atleta, na hora de paralisar um campeonato.

GGN: Mas para colocar esses mecanismos de punição, é preciso uma regulamentação.

Heraldo Panhoca: Já está regulamentado. Absolutamente. Basta que o próprio poder judiciário, ao receber uma ação do clube dizendo: a CBF convocou meus atletas A, B, C e não pagou, eu quero que o poder Judiciário seja célere nesse procedimento e condene a CBF a indenizar. Já existe a regra, a lei.

O único clube que acionou a CBF e não recebeu até hoje foi o São Paulo. Cada atleta que o São Paulo manda para a seleção, ele manda a conta junto. E eu lhe pergunto: nessa Copa de 2014, quantos atletas o São Paulo tinha? Nenhum. Por quê? Porque o São Paulo iria cobrar que a CBF cumprisse com a obrigação dela.

Entretanto, essa norma é tão válida, e o Brasil fez essa norma em 1998, que a Fifa, em 2003, entrando em vigor em 2005, copiou por exigência dos mecanismos internacionais.

No campeonato internacional, na Copa do Mundo, e já está em vigor desde 2005, a Fifa usa a lei brasileira, embora tenha feito a sua própria norma porque a brasileira não alcança a Fifa, mas ela copiou e indeniza os clubes que cedem o jogador para as seleções.

Aqui no Brasil, tivemos vários clubes que vão receber R$ 200 para 300 mil por atleta que participou da Copa de 2014. O Barcelona vai ter a indenização por vários atletas e mais no tempo todo em que o Neymar ficou parado. Porque o artigo da lei brasileira, que a Fifa copiou, determina que, enquanto ele não puder voltar a atividade, como se machucou na Copa, o problema é da seleção.

A lei brasileira é tão boa que os 14 anos se fixou no mundo; quem convoca paga e conserta se quebrar, a Fifa copiou e está lá no mundo, a lei brasileira é maravilhosa. O que nós não temos é quem reivindica o seu direito pela lei, como São Paulo fez, e, também, quem cumpre.

GGN: Como avalia a interpretação da Justiça com relação ao rompimento de contratos, se interfere na relação dos clubes com os atletas?

Heraldo Panhoca: Felizmente, na relação atleta-clube, o poder judiciário do trabalho foi muito tranquilo, equânime e justo. Todos tentam descarregar em cima do atleta (e, principalmente, do aprisionamento do atleta) a desobrigação de tratá-lo como um cidadão para tirar o proveito ou para justificar as mazelas do clube.

Hoje, sorte do atleta é que o poder judiciário do trabalho entendeu e conseguiu dar um equilíbrio para que as partes ficassem iguais. O atleta e o clube, nos seus direitos e obrigações. Eu tiro o chapéu para a justiça do trabalho. A Lei Pelé, somada a atuação do magistrado do trabalho, foi célere e trouxe grandes benefícios para uma pacificação. Pelo menos a relação clube-atleta.

Infelizmente, a justiça do trabalho não alcança a Federação e a Confederação, porque elas não são parte na relação trabalhista.

Agora, do outro lado está a justiça comum, a parte do direito de arena, do contrato de televisão, direito de imagem, e principalmente a ação pela presunção de fraude, em que alguns órgãos públicos, como o INSS, estão promovendo até o repio da lei para, de certa forma, penalizar os clubes que praticam o que a Lei manda. Nós temos inúmeros processos de execução fiscal, que é o Estado exigindo do clube algo que o clube não deve, até por força da Constituição.

O Estado, às vezes, peca, esquecendo-se de que ele tem obrigação de fomentar, quer através da lei de incentivo, em alguns casos, quer na redução e isenção de tributos, para que o clube possa formar esse atleta ou esse cidadão para o futuro.

GGN: Até que ponto essa organização do futebol deve ficar nas mãos dos clubes, empresários ou na mão do Estado? Qual o limite de um e outro?

Heraldo Panhoca: Eu entendo que na mão do Estado nenhuma prática esportiva deve estar, até porque a prática desportiva está dentro do direito internacional, que o legislador brasileiro não pode alterá-la. Entretanto, as normas, as relações entre as pessoas, ou seja, a pessoa jurídica do clube e a pessoa física do atleta, com a pessoa jurídica da Confederação e Federação, estas sim, o Estado pode legislar. E já o fez.

O nosso problema não é a existência ou qualidade da lei, e sim o cumprimento e a execução. E aí, por força de que o futebol é a paixão do povo, autoriza-se que o clube leve o fisco, em detrimento de todos os brasileiros trabalhadores que são obrigados a cumprir.

O Brasil foi pródigo na produção de atletas. Entretanto, deteriorou-se muito, a partir de que o Estado começou a tutelar os clubes, principalmente nas suas dívidas, e as entidades de administração.

Maior do que o fracasso da Copa do Mundo não foi estrutural, em termos de mobilização de torcedor, deu um show, botou trens, metrôs, e tudo funcionou. O que não foi possível fazer foi a soma atletas, comissão técnica e direção da CBF. Incompetentes para mostrar aquilo que mostramos anteriormente, com a prática desportiva campeã.

Os atletas são e continuarão competentes. Os dirigentes precisam voltar para a escola.

GGN: Como avalia o atual calendário de jogos, sobre alguns clubes jogarem mais que outros, de competições coincidirem em períodos? É falta de gestão também?

Heraldo Panhoca: Sem dúvida, eu vou lhe mostrar um dado. Em 1998, quando a Lei Pelé começava a ser redigida, o site da CBF colocava que nós tínhamos aproximadamente 800 clubes de futebol profissional no Brasil.

É a grande falácia do Brasil, nós não temos hoje 20 ou 30 clubes profissionais, escrito com P maiúsculo. O resto, eu costumo dizer, são os boias frias do futebol, que jogam três meses do ano. Normalmente, por ser campeonato mata-mata, tem atividade em dois meses, pagam o primeiro salário e ficam devendo o resto.

O Brasil não tem como sustentar 800 clubes de futebol. Nós devemos ter capacidade de fazer o que já foi feito no mundo todo, inclusive a Fifa, no caso específico de futebol. Nós temos que ter quatro divisões, perfeitamente delineadas. No Brasil, temos série A, B, C e D. Pelo menos a terminologia eles copiaram, mas não a responsabilidade.

O nosso calendário obriga o atleta a jogar todas as semanas, duas vezes, e quando tem copas internacionais, pode jogar até três vezes na semana. Onde é que fica a reposição do estado físico desse atleta? Onde é que fica o treinamento? Então, nós precisamos imaginar que futebol profissional não pode ir além de 50, 60 clubes.

Os demais devem estar nessa faixa albergada pela lei: formação. Disputando grandes campeonatos, até internacionais. Agora, eu não posso admitir a profissionalização de 800 clubes de futebol no Brasil. Nós não temos dinheiro, nem interesse suficiente para que isso possa se manter como atividade profissional. Porque criar o time de futebol, assumir o compromisso com os atletas, e do segundo mês em diante, não mais pagar nada, realmente é picaretagem, não é profissional.

GGN: Como evitar o êxodo dos craques e talentos?

Heraldo Panhoca: Por força constitucional, eu como indivíduo tenho direito de ir e vir, posso trabalhar onde eu quiser. Então, a primeira coisa não é impedir. Eu jamais terei condição, é uma garantia individual do cidadão.

No momento em que eu, dirigente, for responsável e cumpridor da obrigação, se tiver a capacidade de gerar espetáculo, com o espetáculo gerar renda e solver rigorosamente os meus compromissos, eu vou ter o atleta aqui. Nós já tivemos inúmeros casos assim, de atletas que optaram ficar no Brasil e não foram.

Entretanto, alguns vão sair sempre. Grandes estrelas no mundo inteiro saem dos seus países e vão jogar em outros. Não há como impedir o artista, o grande expoente de uma determinada atividade, buscar o melhor caminho profissional para ele.

Entretanto, nós temos uma televisão que é predadora do patrocinador. Ela não põe a sua camisa, não fala sequer o nome. E isso nós estamos aplaudindo, quando exatamente deveria ser o contrário. A televisão é uma concessão pública. O patrocinador, às vezes, até por lei de incentivo, tem assegurado o seu patrocínio e a divulgação da sua marca. Entretanto, a rede de televisão bloqueia.

Você acha que eu vou punir o atleta, quando o erro está na estrutura?

E a Lei Pelé diz que o atleta em formação pode esticar até 20 anos sem ser profissional, no clube, com indenização se ele quiser abandonar. Depois, ele pode fazer o seu primeiro contrato de cinco anos. Então, ele ficaria no Brasil até 25 anos. Mas a CBF disse que não pode seguir a lei brasileira porque a Fifa, já que na Europa é um pouco diferente, diz que o atleta abaixo de 18 anos só pode fazer contrato de três. E aí, obriga o clube brasileiro a fazer de três, contrário à lei brasileira que era cinco. O atleta com 21 anos está livre.

Então, a lei brasileira já protege que o atleta não saia do país, a não ser com o consenso do clube, pagando a indenização. O nosso problema é de formação, de educação e de responsabilidade com o indivíduo.

Leia as outras reportagens da série Mudanças no Futebol:

“Fortalecer os clubes é agenda do século XXI”

“A CBF fecha os olhos”

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

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  1. ao dizer que os dirigentes

    ao dizer que os dirigentes das federações e da cbf deveriam voltar à escola, ele resumiu a responsabilidade desses dirigientes em consórcio com a rede globo.

    será que foi um lapso linguístico e  el e gostaria de que voltassemm para outro lugar?

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