Um golpe no coração da América Latina, por Luciano Elia

Brasileiros e latino-americanos têm experimentado na carne novas edições do pisoteio colonizador, agora com as funestas marcas do fascismo

Imagem: Primavera enferma, Francisco Dominguez.

do Psicanalistas pela Democracia 

Um golpe no coração da América Latina

por Luciano Elia

A psicanálise nos dá a chance de fazer ato com a palavra. Sem presunção a poesia, que é outro ato, mas com força comparável quanto aos efeitos que seu ato produz no sujeito que fala, efeitos que são afetos, palavra irmã de efeitos. O psicanalista não pode, portanto, não ser político – o que desagrada a alguns deles, que, por obsessividade ou má-fé, insistem em dizer que o psicanalista, quando intervém na polis, no espaço público, por excelência político, deve fazê-lo dissociada e exclusivamente como cidadão, mas não como psicanalista que, este, só está autorizado a intervir no espaço privado da experiência da análise, tida, nesta balela, como politicamente neutra, a-política.

Brasileiros, latino-americanos – colonizados, portanto – temos experimentado na carne, no Brasil dos últimos anos, e nos nossos vizinhos, hermanos na geografia de sua história política, novas edições do pisoteio colonizador, agora com as funestas marcas do fascismo, da destituição do Estado Democrático de Direito, do próprio Direito como campo de incidência da lei que medeia as relações sociais, da ruptura do pacto civilizatório, da garantia da própria vida de maiorias populacionais, chamadas, em ironia, de minorias, talvez por terem sempre minorados seus direitos humanos e sociais.

A política necro-liberal, comandada pelo capital internacional mas instrumentalizada pelo ódio aos pobres, aos negros, aos indígenas, às mulheres, aos que orientam sua sexualidade de modo diverso do padrão heteronormativo, enfim, a um conjunto de cidadãos considerados indesejáveis, encontra, nas regiões colonizadas do mundo, maiores e mais violentas formas de devastação. Mas encontra também resistência, combate, luta. Neste processo, o silêncio e a omissão de qualquer cidadão ou campo que se caracterize, como a Psicanálise, por um modo particular de incidência no corpo social, é atestado de abdicação ética, covardia discursiva, abjeção civil.

O golpe na Bolívia, que destituiu presidente Evo Morales, é na verdade uma reverberação de sucessivos golpes, que se vão distribuindo em diferentes planos e níveis da vida social e da história do país: golpeia a machadadas as raízes étnicas do próprio povo boliviano, que pôde, pela primeira vez em sua História, ter um presidente de origem indígena, a mais genuína origem deste povo; golpeia a inauguração, que se encontrava em vias de se realizar, da emancipação econômica e moral da nação boliviana, igualmente inédita em sua História; golpeia a dignidade e a altivez que um povo inteiro estava, pela primeira vez, podendo experimentar em sua relação com outros povos, vizinhos ou distantes, semelhantes ou distintos, nivelados ou díspares em sua posição demo-, sua posição de povo.

Demoníaca, talvez, e por isso tomada pelos vencedores da História pregressa que se quer eterna como devendo ser extirpada, massacrada, como aliás tem sido, concretamente, a população boliviana.

Mas demoníaco é o sujeito do inconsciente, e é também o seu desejo, no dizer de Freud. E nós, psicanalistas, temos a deplorar, repudiar, abominar do modo mais radical e enfático possível este(s) golpe(s), bolivianos e todos os demais, congêneres, que se vem perpetrando em nosso continente de veias abertas (1), sangue retinto pisado por trás de todos os heróis emoldurados (2), para mudar essa história que começa na lua cheia e termina antes do fim, neste fim de mundo, fim de mundo, fim de mundo (3) em que insistimos em viver.

A primavera dos nossos irmãos e hermanos só brotará em ponta de cano, e toda calmaria é engano: sabemos disso desde 1970 por Milton & Ruy Guerra (4).

Enquanto não chega a hora, dia e futuro dessa espera terminar, precisamos, como psicanalistas, sustentar o demônio da transferência, que é o laço social do inconsciente, do desejo que, desde Freud, dobra os céus ou move o rio dos infernos (5) único que nos pode salvar do verdadeiro inferno que nossos inimigos, os inimigos da civilização, os que querem dominar, oprimir e matar nossos povos, nos impõem.

Notas:

(1) Alusão ao clássico de Eduardo Galeano, _As veias abertas da América Latina_.

(2) Versos de _Historias para ninar gente grande_, samba-enredo da Escola de Samba Mangueira, vencedora do Carnaval 2019, de varios compositores, sob comando do enredo de Leandro Vieira.
Versos ligeiramente modificados para se integrarem às frases do texto.

(3) Versos de _Marginalia II_, de Torquato Neto, 1968. Idem

(4) Versos de _Canto latino_ de Milton Nascimento e Ruy Guerra (1970). Idem

(5) Versos de _Eneida_, de Virgilio, escolhidos por Freud como epígrafe de sua _Interpretaçao de sonhos_ (1900): _Se não puder dobrar os céus, moverei o Acheronte_ (rio do inferno)

Redação

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