A caixa de pandora do obscurantismo, por Fábio Palácio

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A caixa de pandora do obscurantismo

por Fábio Palácio

Antes era “apenas” o ataque agressivo aos direitos dos trabalhadores. Até aí, tudo dentro do script do pós-impeachment. Mas, como nada está parado, a tendência de toda tendência é se aprofundar.

E lá estamos nós, repentinamente, a assistir a tentativa de proibição judicial da livre manifestação do pensamento no interior das universidades públicas. É preciso notar que mesmo a ditadura militar de 1964 mostrou-se tímida na tentativa de interferir nos ambientes acadêmicos.

Tudo começou às vésperas do impeachment, com uma recomendação do Ministério Público Federal de Goiás para que a universidade federal daquele estado se abstivesse de sediar manifestações favoráveis à presidenta Dilma Rousseff. No despacho, o MPF fazia referência a um ato em defesa da democracia convocado por entidades acadêmicas e movimentos sociais, e que contou com a participação do reitor da UFG, Orlando Amaral.

O MP concluiu que demonstrações daquele tipo seriam “incompatíveis com a Administração Pública, se realizados no âmbito do espaço físico de órgãos e de autarquias federais, ou […] se utilizando de equipamentos e insumos públicos”.

Esqueceram-se, porém, os egrégios procuradores do fato de que as universidades federais não são meras “autarquias” ou repartições públicas. Elas possuem personalidade jurídica própria, garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal. Nele lê-se que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”.

O conteúdo do preceito constitucional relaciona-se à especificidade do ambiente universitário, cujo papel é o de realizar – sozinho ou em parceria com Estado, empresas, partidos políticos, movimentos sociais, ONGs e demais instituições da sociedade – o debate sobre todos os temas de interesse nacional.

Como mostra a história da luta pela autonomia universitária, é preciso garantir a livre discussão nos ambientes acadêmicos. Não pode haver “temas proibidos” ou atores sociais impedidos de pautar discussões junto à universidade. Foi o que entendeu o Conselho Universitário da UFG ao afirmar, em nota, que “a dinâmica acadêmica demanda […] o diálogo aberto com a sociedade em sua totalidade”.

O Conselho reforçou ainda “a autonomia e a liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber […] conforme garante a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da UFG”.

Mais recentemente, situações semelhantes mostraram que o entendimento do MP de Goiás é mais disseminado nos meios jurídicos do que se pensa. Merece destaque a peculiar decisão da Justiça Federal da Bahia, proferida no último dia 17 de agosto, que suspendia a entrega do título de doutor honoris causa ao ex-presidente Lula pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano, atropelando decisão de responsabilidade exclusiva do conselho superior daquela instituição.

Mas a sanha política do poder judiciário esteve longe de restringir-se, no último período, à interferência indevida nas instituições acadêmicas.

Para citar um exemplo dos mais bizarros, lembremos a decisão do juiz Felipe Albertini Nani Viaro, da 26ª vara cível de São Paulo. Ele determinou a execução de dívida contraída pela empresária Roberta Luchsinger, comumente definida na grande imprensa como “neta do ex-acionista do Credit Suisse Peter Arnold Luchsinger”.

Roberta ganhou os holofotes após anunciar a doação de meio milhão de reais ao presidente Lula, cujos bens haviam sido bloqueados pelo juiz Sérgio Moro. Pois bem. Não é que o juiz Felipe Albertini entendeu que ela só poderia fazer a doação após quitar uma dívida de R$ 62 mil que lhe vinha sendo cobrada por uma loja de decoração?

É certo que um juiz tem o poder de ordenar a execução de dívidas, isso ninguém discute. Mas determinar a forma como devo dispor de meu dinheiro até o pagamento de uma dívida, sem que esse dinheiro esteja bloqueado judicialmente… Isso pode, Arnaldo?

Diante de tão frenético ativismo judicante, talvez fique mais fácil entender o polêmico general Mourão e seu desejo de “derrubar tudo”, expresso recentemente em meio a declarações que, para citar as palavras do jornalista Jânio de Freitas, resgatam a longa tradição de nosso “golpismo militar”.

Não deveríamos, talvez, entender as declarações de Mourão como nada além de uma “cotovelite” aguda – típica daqueles que veem outros atores a desempenhar com muito mais desenvoltura um papel que já foi seu, em algum lugar do passado?

A judicialização da arte

Mas nenhum ativismo político é tão ruim que não possa transbordar para a esfera cultural. É assim que assistimos, estupefatos, ao fechamento de uma exposição patrocinada pelo banco Santander em Porto Alegre. Contando com obras de artistas do quilate de um Portinari, a iniciativa foi encerrada por obra, graça e livre pressão do Movimento Brasil Livre (MBL) – a tropa de choque juvenil do golpismo 2.0 –, que considerou a iniciativa “pornográfica”.

O banimento da exposição deu-se com a surpreendente concordância da própria curadoria, que, em nota, saiu-se com declarações que deveriam ser cuidadosamente exumadas por críticos e professores de artes, a fim de mostrar didaticamente o que NÃO é a arte. Para os curiosos, uma amostra: “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”.

Falar em “inclusão” para justificar o fechamento de uma exposição que celebra a diversidade sexual já é uma cretinice. Mas o que dizer do termo “reflexão positiva” para definir o “propósito maior” da arte? Será que não podíamos ao menos – e olha que já faço aqui uma enorme concessão – deixar a reflexão “positiva” para a ciência, o jornalismo e outras dimensões, digamos, mais comportadas da experiência humana?

Decididamente, não é no terreno do “positivo” que a arte respira melhor. A experiência estética caracteriza-se precisamente pelo contrário, isto é, pela “pura simples negatividade” – para ficar com as palavras de um Hegel em sua Fenomenologia do Espírito. É papel da arte chocar o senso comum, revirar modos normais de enxergar as coisas, trazer à luz novas visões de mundo, subverter os sentidos e a experiência. Picasso, Magritte, Dali! Por favor, acudam-nos aqui!

Na imediata sequência da [auto]censura à exposição do Santander Cultural, um juiz de direito (que surpresa!), fingindo desconhecer o artigo 5º da Constituição – aquele mesmo que assegura ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” – proibiu a exibição da peça de teatro O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que apresentava Cristo como um travesti.

No despacho, o juiz afirma: “Muito embora o Brasil seja um Estado Laico…”. Ficaria não talvez mais correto, mas certamente mais autêntico, dizer simplesmente “Muito embora tenhamos uma Constituição…”. Acostumamo-nos recentemente a falar em “judicialização da política”. E que tal a novidade da “judicialização da arte”?

Aproveitando o ensejo, outro juiz – talvez ao mesmo tempo motivado e insatisfeito com o anterior – resolveu passar por cima do Conselho Federal de Psicologia e da OMS para consagrar no país o charlatanismo, ao liberar tratamentos que propõem a chamada “cura gay”.

Nesse entremeio, um grupo de evangélicos invade uma exposição do grande artista hispano-brasileiro José Zaragoza para inspecioná-la e avaliar se não seria acaso merecedora do mesmo fim da exposição do Santander.

Ao mesmo tempo, uma proposta legislativa apresentada no Senado propõe a revogação da lei 12.612/2012, que concedeu a Paulo Freire – um dos pensadores brasileiros mais prestigiados em todo o mundo – o título de “patrono da educação brasileira”. Vejam que não se trata de concordar ou não com Freire, mas apenas de perguntar-se: por que deveria o Brasil enxovalhar um pensador de estatura internacional, patrimônio intelectual do país?

Parece um roteiro de ficção surrealista, mas é a realidade do maior e mais importante país da América Latina. Vai-se tornando uma constatação inescapável: em plenos albores do século XXI, abrimos a caixa de pandora do obscurantismo. Bem-vindos ao circo de horrores do Brasil pós-impeachment!

Fábio Palácio – Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP). Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão.

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Essa gente reaça é um vírus

    Essa gente reaça é um vírus do século XIX que foi inoculado num corpo debilitado desde que foi golpeado e agora é um terreno fértil pras doenças oportunistas. E ainda conta com um povo que nem tem ideia do que está acontecendo – fruto duma sociedade escravocrata e duma elite que sempre desprezou a educação 

  2. MAGISTRADOS OU BANDIDOS DE TOGAS?

    Se não houvessem bandidos de togas e todos magistrados e seus assessores, cumprissem fielmente as regras de seus cargos e obedecessem a Constituição, sem falsas interpretações das leis, como muitos costumam fazer para livrar seus bandidos preferidos, em trocas inescrupulosas de benefícios, será que algum politico teria a ousadia de ser BANDIDO CORRUPTO INESCRUPULOSO, COMO É TÃO COMUM HOJE EM DIA?

    ÍM A CONIVÊNCIA DE ALGUM BANDIDO DE TOGA, NÃ HÁ POSSIBILIDADE DE HAVER BANDIDO NA POLITICA.

    UM BANDIDO DO JUDICIÁRIO, COMPLEMENTA OUTROS BANDIDOS DA POLÍTICA. E TODOS FICAM MUITO RICOS, MILIONÁRIOS E PODEROSOS.

    – OS BANDIDOS QUADRILHEIROS QUE PARTICIPARAM DO GOLPE CONTRA A DEMOCRACIA BRASILEIRA QUEREM VER O PT FORA DA POLÍTICA BRASILEIRA. – TEM BANDIDOS DE VÁRIAS QUADRILHAS PARTICIPANDO DESSE GOLPE QUE NÃO ACABA ENQUANTO NÃO ELIMINAREM LULA E O PT. – AS PRINCIPAIS QUADRILHAS SÃO: – A QUADRILHA TUCANALHA DO PSDB.(legislativo)- A QUADRILHA DO TEMER QUE É DO PMDB. (executivo e legislativo)- A QUADRILHA DOS BANDIDOS DE TOGAS (judiciário), que é a pior de todas pois se ela não existisse, e todos magistrados só trabalhassem como manda a constituição, nenhuma outra quadrilha estaria em ação, pois lugar de bandido é na cadeia ou no cemitério, e a função do judiciário é fazer cumprir a lei e não perseguir políticos e partidos contrários às suas ideologias.)https://www.youtube.com/watch?v=wHKIErwmG-4https://www.youtube.com/watch?v=ad5WB83Wx-U https://www.youtube.com/watch?v=ad5WB83Wx-U&t=618shttps://www.youtube.com/watch?v=l2QhigH5iUM

     

  3. Que o Brasil é um país de

    Que o Brasil é um país de direita eu fiquei sabendo desde que comecei estudar a questão filosófica e política. Mas de uns 5 anos para cá a coisa degringolou tanto que comecei a me perguntar a onde isso vai parar. 

    Eu jamais imaginei que esse país que nunca lutou por avanços sociais minimamente significativos, que jamais fez a menor tarefa de casa para dar aos menos favorecidos direitos históricos, fosse ficar tão dominado por pensamentos tão reacionários como os que estão ai. Penso que a ordem implicita divulgada pela mídia seja de extinção pura e simples dos mais pobres e dos menos favorecidos. Seria um viés planetário ou uma ordem imanada de algum pensamento tipicamente capitalista/rentista das forças malígnas do norte da América?

  4. Cadeia a juizes pgrs e procuradores Blindadores e aos Blindados

    TÁ TUDO NA INTERNET É SÓ DÁ UM CTRL-C E UM CTRL-V QUE SAI MILHARES DE GOLPISTAS CRIMINOSOS HEDIONDOS DOENTES MENTAIS QUE ROUBARAM OS NOSSOS 55 MILHÕES DE VOTOS E A NOSSA DEMOCRACIA!!!

     

    ESSE EXEMPLO AÍ EMBAIXO DE GOLPISTA, MOSTRA-NOS UM DOS MILHÕES DE DOENTES MENTAIS PIORES DO QUE ÊLE!!!!!

    OU SERÁ QUE ALGUEM TEM ALGUMA DÚVIDA DISSO? SÓ POR AQUI CONHECEMOS UNS 10 PIORES QUE O ARCEBISPO, TUDO MAÇOM TOTALMENTE DESAJUSTADOS MENTAL PSICOPATAS!!! FORA OS PASTORES LAVADORES DE GRANA SUJA DO TRÁFICO DE DROGAS DE MG E ETC ETC ETC….

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