Fernando Horta
Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.
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A Era da Desumanidade, por Fernando Horta

A Era da Desumanidade

por Fernando Horta

Uma das mais sórdidas ferramentas que o ser humano tem contra outro é a desumanização.

Toda a nossa sociedade foi erigida dentro da perspectiva que somos todos humanos. Todos oriundos dos mesmos descendentes. Todos feitos da mesma matéria, com mesmos cromossomos e – depois do século XVIII – admitimos que temos todos os mesmos direitos. Não vou fingir que desconheço a realidade, ou a luta que houve para que os pressupostos humanistas do século XVIII viessem a se transformar nos “Direitos Humanos”. Não vou desaver toda a luta atual para incrementar e defender a humanidade no século XXI. É claro que no mundo real as pessoas não são iguais. Nem no nascimento e em nenhum momento deste caminho até a morte. Mas a pergunta é: deixam de ser humanas?

A desumanização do outro é uma ferramenta comum do ser humano. Normalmente, colocamos pessoas dentro de substantivos coletivos e adjetivamos de forma pejorativa: corja, bando, cambada e por aí vai … usamos adjetivos substantivados como os terroristas, os aproveitadores, as putas, os canalhas … Usamos neologismos com o mesmo efeito, as bixas, os lgbt, os petralhas, os evanjegues … A língua desumaniza antes que os olhos possam verificar o que, de fato, é aquilo.

Na História isto é muito antigo. “Os cristãos” viveram este processo. E de imediato nem a Paixão de Cristo foi capaz de infundir humanidade naqueles que acreditavam em Jesus, aos olhos de seus detratores. Depois, a própria Igreja Católica usou este expediente a seu favor, eram os “hereges”, os “mouros”, os “pecadores” … Não eram, afinal, seres humanos. Dotados de racionalidade, de sentimentos e de uma história por trás. Não deviam ser entendidos, compreendidos ou mesmo aceitos. O objetivo da desumanização é construir uma barreira psicológica e cultural que impeça que se veja o outro. Que se sinta e entenda o outro.

O fascismo fez isto de forma quase perfeita. Separou, marcou e vestiu judeus a quem só era permitido o ódio. Violentou, obrigou a trabalhos desumanos e por fim exterminou quando já estavam despidos de humanidade. Por mais brutais que sejam os seres humanos, ainda há um sentimento de espécie que nos une. A desumanização visa acabar com isto. Não se conversa com não-humanos. São bestas, figuras selvagens que devem ser evitadas ou combatidas.

O ocidente criou a imagem da “Cortina de Ferro”, mas a desumanização veio também por meios culturais ocidentais. O “comunista” permitiu que crianças, jovens e mulheres fossem torturados, estuprados e mortos por toda a América Central e do Sul. No Brasil alguns defendem até hoje que “fizeram o certo”. Ainda completamente alheios de que torturaram seres humanos. Estupraram mulheres e crianças. Mataram pais e filhos que tinham famílias, vidas, história e todo um tempo neste mundo.

É característica básica da ação social fascista é a desumanização. O “corrupto” não merece nem as garantias da lei. O “comunista” não tem direito a qualquer coisa que não o desprezo e a violência. O “não nacionalista” é um desgraçado que merece o escárnio e a agressão verbal, física e simbólica. Aquele que não defende o que eu, fascista, defendo é um inimigo e como tal deve ser tratado. Um selvagem, um monstro que me ameaça pela sua simples existência. A ele devo, de todas as formas possíveis, a violência.

No entanto, desde as primeiras sociedades uma cena, um momento, nos humaniza a todos. É símbolo sacro em toda e qualquer religião. É parte de todas as tradições mais antigas e mesmo nas mais modernas: alimentar-se. Não é à toa que Cristo come com seus discípulos. Que Moisés partilha do maná no deserto, e que o Iftar é tão festejado no Ramadã. Não há quase nenhuma celebração humana que não remeta ao ato de comer, na maioria das vezes em grupos, demonstrando que partilham do mesmo alimento, partilham da mesma essência e são todos, portanto, humanos.

Nas regras de boa convivência atuais, criamos o “brunch”, o “chope com os amigos” e toda uma sorte de cerimonias gastronômicas que vão desde o Natal até os chocolates da Páscoa … tudo aponta para nossa origem. O momento sagrado em que todos partilhamos das mesmas necessidades, das mesmas oportunidades e ficamos felizes por isto. O genial Manuel Bandeira mostra – ao avesso – esta importância. Quando se dá conta da humanidade daquele que come, apesar do que ele está comendo:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato
Não era um rato

O bicho, meu Deus, era um homem.

(Manuel Bandeira, O Bicho, dezembro de 1947)

Na forma como se alimentava, estava a certeza de que era um “bicho”. A exclamação do poeta com a descoberta de que era um homem vem no “meu Deus”. Se perguntando um “como pode ser?”, chocado com o “como é”. A profanação do alimentar-se é impensável para a composição do ser humano. Ainda que se saiba que há fome no mundo “alimentar-se” nos faz humanos. “Tomai todos e comei” e uma das coisas que dá sentido à Eucaristia. É o “comei”, mas um “comei todos” e todos “comei da mesma coisa”, partilham pela boca da mesma essência.

João Dória Júnior avança mais um degrau na bestialidade humana com a forma que vem tratando os desafortunados na cidade de São Paulo. Não bastou retirar-lhes as posses e cobertores em pleno inverno, para que tivessem ainda mais dificuldade de defender suas vidas das mais básicas forças da natureza. Não bastou retirar-lhes o direito de ir e vir instruindo a polícia a tratar com violência SERES HUMANOS em situação de rua.

Agora é preciso desumanizá-los até no ato da alimentação. É preciso dar-lhes restos e sobras, em forma animalesca, para que fique claro que deixaram de ser humanos. Nenhum cristão, judeu, muçulmano ou qualquer outra religião pode aceitar tal absurdo, que atenta contra os símbolos mais sagrados de tudo o que se ensina há mais de 4000 anos. Come-se na mesma mesa. Come-se das mesmas coisas. Come-se com os semelhantes, porque esta é uma das coisas que nos faz semelhantes.

De Dom Quixote ao Rei Arthur, sempre o maior sinal de honradez, de fidalguia era reforçar os laços de humanidade:

“Para que vejas, Sancho, o bem que em si a andante cavalaria encerra e quão perto estão os que em qualquer ministério nela se exercitam de ser honrados e estimados do mundo, quero que aqui a meu lado e em companhia desta boa gente te sentes, e QUE SEJAS UMA MESMA COISA COMIGO, que sou teu amo e natural senhor; QUE COMAS DE MEU PRATO E BEBAS POR ONDE EU BEBER, porque da cavalaria andante se pode dizer o mesmo que do amor se diz: QUE TODAS AS COISAS IGUALA”

(Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, Do que sucedeu a Dom Quixote con uns cabreiros)

As elites brasileiras são monstruosas. São bestiais em si mesmas.

 
Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

12 Comentários

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  1. Estereótipos

    Excelente texto, pena que não tocou na desumanização da pessoa negra, num processo que, sob o comando da Igreja Católica, no século XV, tornou-as prisioneiras dos estereótipos (adjetivos, substantivos) racistas conhecidos.

  2. humanos
    “Toda a nossa sociedade foi erigida dentro da perspectiva que somos todos humanos”
    Perdão, a nossa não.
    os pretos escravos tiveram, e ainda têm, sua humanidade contestada para justificar a servidão.
    e os indios, donos do país, eram meramente bugres, assim justificado seu extermínio.
    Apenas, hoje, os donos tiraram as máscaras e reabriram a temporada de caça.

  3. A desumanização

    Prezado Fernando, gostei de seu texto. Mas apenas como contraponto a um fascista do séculoXXI. Por que apesar de tudizeres que estão a 4 mil anos tentando humanizar o humano, me parece que colocaste apenas sitações de romance ou de ficção. Porque a verdade é que a História real só cita milhões de exemplos de violência total e absoluta. Se pegarmos qualquer livro de história da idade média veremos que em todas as culturas do mundo, do Ocidente ao extremo Oriente do Setentrinal ao Meridional, só veremos massacres totais e absolutos, desde aprisionamento de 15 mil peesoas e depois mandar-lhe furar a todos os olhos para que virem um exército de cegos.

    E tão ficamos assim: precisamos de pelo menos mais alguns milênios para que o humano evolua um pouco mais. A julgar por esse início do 3º milênio estar a exigir muito mais que exemplos ficcionais.

  4. Gostei do texto. Vivemos um

    Gostei do texto. Vivemos um momento dantesco da história. No mesmo instante em que a humanidade consegue produzir alimentos para matar a fome do mundo, vemos pessoas passando fome na esquina. As câmaras de gás agora voam em drones. De fato, o 1% espalha o vírus da desumanização para que os 99% aceitem o extermínio de seus semelhantes. E aqueles imunes ao  vírus ainda vivem um dilema: devem continuar tratando aquele 1% como humanos ? 

  5. Muito bom!

    Também gostei muito do texto, que aborda um tema de extrema relevância sob uma ótica que jamais tinha me ocorrido, nem havia lido ou ouvido falar. Em tempos em que boa parte da humanidade – aí incluidos vários líderes – dedica-se ao retrocesso, textos como esse são fundamentais.

    Parabéns Fernando.

  6. Lindo e humano texto!!!

    Lindo e humano texto!!! Quanto à desumanização das pessoas, ao que parece nada concorre mais para essa tragédia do que o ser se permitir invadir por pré-conceitos que satanizem o outro, privem-no de VALOR – quando então, perco esse ponto de vista sobre ele, básico, essencial: enxergá-lo como humano!

    Explica pessoas que normalmente praticam valores e princípios de vida “apenas com os seus semelhantes” – os de sua classe social e às vezes, estendendo tais princípios às pessoas “de classe inferior” (porteiros, empregados domésticos, etc.) que lhe sejam próximas. Mas ignorando completamente todos seus valores, se o alvo de uma violência, massacre ou injustiça pertencer ao “grupo satanizado”.

    Por isso nossa sociedade celebra ou se posta indiferente, se Lula é conduzido coercitivamente, se dona Marisa veio a falecer entre outras coisas por esse massacre, se uma juíza permite a invasão do lar de Marcos Cláudio, baseado em denúncia anônima, fatos que os fariam ranger os dentes de raiva e indignação se cometidos contra os que “merecem” aos seus olhos, o respeito humano – com os devidos direitos e garantias previstos na lei.

    Esse “privar o outro de valor” é sim, o centro de todo pensar, sentir e agir desumanos desde que a primeira sociedade humana foi formada.

    Daí a ter quem ache a ideia de Dória Jr., de tratar seres humanos como gado, “uma boa solução” – é só um passo a mais nessa escala de desumanização.

  7. O fardo da sabedoria

    Sr., Horta.

    Essa sabedoria a gente carrega para o resto da vida temos de ser forte para sustenta-la, perante o ataque sempre faço a pergunta por que, qual o motivo, passem o texto adiante para as pessoas

  8. Denuncio aqui no ggn há muito
    Denuncio aqui no ggn há muito tempo o flerte do fascismo no Brasil, quando escrevia “o judiciário quer q no Brasil uns possam tudo e outros nada possam” ou “estão querendo a volta da escravidão”,tudo isso muito antes de efetivamente acontecer,me sinto frustrado,eu me comunico de acordo com minha capacidade, mas os mais sabidos não souberam entender e por em prática o “remédio necessário”,bom tô aí vivendo no meu “mundo”e nossas “autoridades”(em especial o Judiciário)tb vivem o seu mundinho particular,VAIIII BRASIIIL!(poderia ir pra frente mas só está indo para trás,vêem atrás!)

  9. Violação aos direitos humanos

    E algumas ditas, tentam para enganar, recomeçar brandas, para só depois mostrarem sua truculência de DITADURA.

    Massacres como o de Eldorado do Carajás, no sul do Pará, onde 19 sem-terra foram assassinados pela polícia militar do governo do PSDB em 1996, figuram nos relatórios da Anistia Internacional, que denunciou o governo FHC de violação aos direitos humanos. A Anistia critica a impunidade e denuncia que polícias e esquadrões da morte vinculados a forças de segurança cometeram numerosos homicídios de civis, inclusive crianças, durante o ano de 2001. A entidade afirma ainda que as práticas generalizadas e sistemáticas de tortura e maus-tratos prevalecem nas prisões.

  10. É incrível como um artigo com

    É incrível como um artigo com este dissocie a função do fascismo com sua simbiose com o Estado, atribuindo-lhe ares de voluntarismo – aqui com pinceladas de uma aura em busca do humanismo perdido.

    Seria esperar demais em um histórico de textos analíticos que são permeáveis a uma linguagem pós-moderna de mundo, das instituições. Até a religiosidade – célula mestra do fascismo – foi aporte (favorável) de sua análise do fenômeno.

    Nada que um Clóvis de Barros ou um Cortella ou um Pondé não fizessem, evidentemente com ares de filosofia da auto-ajuda. Mas no texto de Horta há a tentativa de incutir no debate a ideia do vírus do fascismo que ontologicamente surge e nos contamina, tornando-nos demasiadamente desumanos.

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