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Cassandra e a maldição brasileira, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Cassandra e a maldição brasileira

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há bem pouco tempo a grande imprensa em uníssono clamava pela deposição de Dilma Rousseff, dizendo que isso era indispensável para o Brasil decolar. Nosso país obviamente não decolou. Muito pelo contrário, ele ficou atolado num pântano que combina isolamento diplomático, desemprego elevado, encolhimento do comércio que resultou no fechamento de empresas grandes e pequenas.

Apesar disso, os resultados entesourados pelos banqueiros e pelo mercado financeiro parecem justificar qualquer coisa. Inclusive a tolerância da imprensa em relação aos arroubos autoritários e golpistas de Jair Bolsonaro.

O ambiente político ficou tão tóxico, que hoje a discussão mais importante é se os militares ficarão no poder com Bolsonaro ou sem ele. Em qualquer das hipóteses parece que o modelo chinês venceu. O Brasil parece fadado a mais um período de autoritarismo, desta vez sem qualquer compromisso com o desenvolvimento nacional.

O objetivo é apenas preservar a financeirização da economia com o menor custo orçamentário possível. O sofrimento imposto ao povo desta vez não virá embalado na promessa “É preciso fazer o bolo crescer para depois dividir”. A máxima do autoritarismo neoliberal será apenas “Comam o pão que o diabo amassou, passem fome e não venham nos importunar. Caso contrário vocês serão exterminados.”

Extermínio do rebanho, seja durante a pandemia seja depois dela. As opções colocadas à disposição da população não incluem o livre exercício da soberania popular para mudar o curso dos acontecimentos. Portanto, podem estar errados aqueles que acreditam que Lula poderá disputar a eleição e se ele for eleito poderá governar sem manter a militarização do estado e o processo crescente de exclusão dos pobres do Orçamento da União.

Bolsonaro nem chegou a ser tema da reunião do G-7. Portanto, os acordos feitos em segredo para preservá-lo na presidência do Brasil provavelmente já foram celebrados. Impossível saber se deles também consta alguma cláusula “ele não” em relação a Lula. O Brasil está na beira do abismo e a comunidade internacional parece ter resolvido dizer apenas uma coisa aos brasileiros: pulem, nós realmente não nos importamos.

Nesse contexto, a importância que a imprensa deu à reunião do G-7 é incompreensível. Considerando-se senhor absoluto do quintal (ou seja do Brasil), o governo dos EUA está mais preocupado em aumentar seu poder na Europa e na Ásia. Não há um confronto entre dois modelos políticos e econômicos distintos, pois russos e chineses fazem a mesma coisa que os norte-americanos. No fundo todas as potências do hemisfério norte querem apenas garantir a exploração e dos pobres, mantendo-os sob o julgo dos algoritmos que garantem aumento consumo e da produtividade, maximização dos lucros e da vigilância, tudo ao mesmo tempo.

Está cada vez mais difícil dizer que os EUA é uma democracia. Os próprios norte-americanos estão assustados com a intensificação do uso de tecnologias que garantem monitoramento remoto, invasão da privacidade e reconhecimento facial nas ruas. Seguindo essa tendência, o governo Bolsonaro já recriou o SNI reunindo em poder de um órgão governamental imensos bancos de dados contendo informações dos cidadãos. Caso seja necessário, um adversário dele pode ter a vida pessoal, profissional, bancária, fiscal, etc. totalmente devassada.

Os tiranos do mundo antigo faziam e publicavam listas de cidadãos proscritos que podiam eliminados sem que o assassinato fosse considerado crime. Os tiranos modernos não precisam nem mesmo divulgar listas, pois eles controlam suas populações de uma maneira inimaginável para um grego ou romano do século I dC.

Durante a ditadura militar, alguns militantes de esquerda ficaram paranoicos acreditando que estavam sendo observados. Verdadeira ou ilusória, a onisciência do SNI era utilizada como uma arma poderosa pelos ditadores brasileiros para manter a população intranquila e em silêncio. O SNI 2.0 criado por Bolsonaro será muito mais eficaz. Consultando o histórico de transações bancárias de alguém é possível prever onde aquela pessoa estará em um determinado dia da semana momento no futuro. Esse dado pode ser corroborado por informações do GPS no smartphone que ela usa.

No Brasil, para resistir à nova ditadura será necessário desistir de utilizar recursos tecnológicos sofisticados. Quem está realmente disposto a fazer isso? E com isso nós chegamos ao paradoxo de Cassandra.

Essa personagem da Ilíada, de Homero, estava certa ao tentar impedir seu rei de deixar a oferenda dos gregos a Poseidon ser trazida para dentro da cidade de Tróia. Entre estar certo e conseguir mudar o curso dos acontecimentos existe um abismo imenso e profundo. Esse abismo nunca poderá ser preenchido por ninguém.

Saber o que vai ocorrer no futuro é uma maldição. Projetar o passado no futuro é um erro imperdoável. A verdade nua e crua é que ninguém é capaz de prever o que vai ocorrer dentro e fora do Brasil. Tudo o que nós podemos fazer é esperar e reagir. Sempre que ameaça colocar os militares na rua, Bolsonaro também está reagindo a algo ou a alguém. Talvez os maiores inimigos dele estejam mais próximos dele do que da oposição.

O dilema que os militares enfrentam é evidente: como eles podem se livrar do mito que os levou a controlar fatias maiores do Estado sem colocar em perigo a posição que eles ocupam em virtude de sua inexpressividade eleitoral? O dilema em que a oposição se encontra não é menor: como apostar todas as fichas no resultado de uma eleição que poderá ser desrespeitado pelos generais?

Cassandra poderia ter ficado quieta. O silêncio provavelmente não alteraria o resultado da guerra de Tróia. Exceto se não falar nada sobre o futuro fosse uma condição imposta pela divindade que a amaldiçoou para que as coisas ocorressem de maneira diferente do que ela havia sido levada a prever. Nós vivemos num mundo imprevisível. Mas há lugares escuros em que lideranças poderosas, maliciosas e persistentes tramam, plantam sementes venenosas, espalham a desconfiança e o ódio para obter um resultado previamente calculado (perpetuação da submissão brasileira aos EUA, impossibilidade de nosso país encontrar seu próprio caminho sozinho servindo de exemplo para as outras nações, etc…).

No século XIX, europeus e norte-americanos chamavam a China de o doente da Ásia. O país foi invadido pelos EUA e por potências europeias. O império japonês ocupou a Manchúria no princípio do século XX. Após a guerra civil que se seguiu à vitória contra o Japão imperial, os chineses conseguiram finalmente se libertar do controle estrangeiro de seu território. Nos últimos 40 anos a China conseguiu virar uma potência moderna e dinâmica. 

Nesse princípio do século XXI, o Brasil é o doente da América do Sul. Nosso país não perdeu o rumo. Ele foi deliberadamente desviado de seu caminho pelos norte-americanos e seus esbirros brasileiros. A penetração política dos EUA no Brasil é tão intensa que autoridades daquele país chamam nosso país de “quintal”. E para piorar o atual presidente brasileiro bate continência para a American Flag. 

Os gringos interviram abertamente na política do Brasil através da Lava Jato e com a colaboração de seu principal informante (Michel Temer). Eles obviamente estão fazendo o mesmo nesse exato momento, mas sem o estardalhaço do período anterior ao golpe de 2016 e à inutilização eleitoral de Lula em 2018. Não seria necessário começar a espioná-los da mesma maneira que eles espionam o Brasil?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  • A esquerda brasileira e mais especificamente o PT deveriam desenvolver um sistema de inteligência para que caso se tornem novamente atores no processo de poder e controle do Estado, tenham condições de adotar medidas e contramedidas nessa guerra de informação e de formação da consciência popular

  • A realidade, que está cada vez mais escancarada, é a eterna verdade política de sempre: Todo e qualquer Estado político significa simplesmente uma coisa, o monopólio do uso da violência (e a tecnologia moderna é uma nova forma de violência política) à favor das classes ricas e dirigentes do estado. Eu sou de esquerda, mas dada a falta de representatividade do conceito de representação política formal ( a ingerência burocrática da politicagem brasileira sobre as decisões sociais e econômicas fundamentais do país) e dos acordos e contratos necessários para qualquer chegada até o poder, crer que algum governo "moderno" ainda que de esquerda, tendo domínio sobre uma tecnologia de controle de informações sobre seus cidadãos, vai se preocupar em usá-la tão somente para contramedidas defensivas na luta de informações e para uma forma de conscientização popular é algo muito ingênuo. Nenhum governo com o poder nas mãos tem interesse na conscientização de sua população, o próprio PT durante o período que permaneceu no poder não mostrou interesse algum sobre isso, tendo a relação entre governo e população se limitado à força carismática do LULA ( e realmente essa falta de articulação política com as grandes massas pobres da população foi talvez o grande erro dos governos do PT). Mas para além disso a própria população brasileira (o grosso dessa população) não demonstra nenhum interesse quanto à qualquer idéia de conscientização política (realmente não vejo saída possível para esse país). A população brasileira está preocupada com as suas postagens em Facebooks e WhatsApps da vida ou em passar os dias vendo vídeos idiotas para ganhar alguns trocados ( sim, chegamos à um estado de coisas em que boa parte dos jovens e mesmo adultos não reclamam mais oportunidades de trabalho, mas estão satisfeitos de poder ganhar alguns míseros reais idiotizando-se com vídeos absurdos).

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