Generais insubordinados e pastores extremistas: nossas saúvas famintas, por Marcio Valley

Um antigo ditado dizia que “ou o Brasil acaba com as saúvas, ou as saúvas acabam com o Brasil”, em função do estrago que faziam nos campos de plantações.

Generais insubordinados e pastores extremistas: nossas saúvas famintas

por Marcio Valley

O Brasil assistiu, estarrecido, a vandalização da capital da república, realizada por cerca de três ou quatro mil pessoas vestidas com o uniforme verde e amarelo da adorada seleção brasileira do craque Neymar. Alguns deviam cantarolar “eu já lavei o meu carro, regulei o som, já tá tudo preparado vem pois quebrar tudo é bom” enquanto destruíam o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto. Outros agrediram violentamente os raros policiais que tentaram contê-los, quem sabe seguindo os ensinamentos de Roberto Jefferson em seu tutorial de defesa da democracia. Muitos, profundamente religiosos como a Cássia Kis, ajoelharam-se e rezaram, talvez pedindo sucesso na empreitada de “salvar o país dos comunistas” através da destruição total do que encontravam pela frente, inclusive o acervo artístico e histórico que havia nos palácios. Vários, com a ênfase extática similar à de um pastor fervoroso como Malafaia, diziam que faziam aquilo em nome de Deus, da pátria, da família, da liberdade e, ao que parece, também em nome de seu mito. Havia os que, possivelmente satisfeitos com o que inicialmente parecia ser o sucesso da operação, gravavam em vídeo, para divulgação nas redes sociais, o rosto alegre e sorridente, como o de Regina Duarte quando invocou o pum do palhaço. E batiam continência para os policiais e soldados que lhes protegiam, como se estivessem à frente de um general Villas Boas, um Braga Netto ou até mesmo, vá lá, de um Augusto Heleno.

Após a estupefação inicial, recuperada a sanidade racional, indaga-se: quem, de fato, foi surpreendido com o acontecido? Ao meu ver, talvez a ema que pasteja no gramado do Planalto, aquela que recusou a cloroquina. Ainda assim, tenho dúvidas. Fora a ema, a mais ninguém, surpresa zero. Trata-se de tragédia anunciada, previsível há tempos, e bota tempo nisso.

A selvageria, inédita, pela intensidade, na história da república, é o resultado direto da leniência das autoridades, principalmente as militares, com as “manifestações pacíficas” que há três meses vêm bloqueando as estradas, impedindo violentamente uma criança de ter seus olhos operados (“que fique cego”, disse o manifestante “pacífico”), sonegando a uma filha o direito de se despedir da mãe moribunda, atacando agressivamente jornalistas de rádio e televisão que não fossem da Jovem Pan, tocando fogo em veículos, colocando bomba em caminhão-tanque para explodir aeroporto e se amontoando sem impedimento em frente aos quartéis.

Antes disso, já era previsível a partir das notícias dando conta de fascistas invadindo festa para assassinar aniversariante esquerdista, espancando pessoas desconhecidas na rua pelo simples fato de vestirem alguma peça de roupa vermelha, vandalizando veículos que ostentassem o símbolo de partidos de esquerda ou o nome de seus candidatos e outras ações desse naipe. E, na verdade, bem lá no começo, já tudo indicava que assim seria quando o “mito” deles, munido de imenso amor cristão e evangélico, dizia ser a favor da tortura e de assassinatos políticos, enquanto seu filho desfilava com camisa portando a inscrição “eu, tranquilamente, vou te matar”.

Tutti buona gente, todas pacíficas e fiéis seguidoras dos ensinamentos de Jesus Cristo, aquele sujeito lá do meio do mundo que, tempos atrás, tentou ensinar a validade de amar o inimigo e de dar a outra face. Reconheço a dificuldade em seguir essas lições, mas, ei, não sou e nem me afirmo cristão, portanto, não posso ser acusado de hipocrisia.

Estava tudo às escâncaras, sem pudor algum. Só não viu quem fez um tremendo esforço para não ver. Desde muito antes da eleição do inominável, ora viajante ou talvez fugitivo (espero que assim permaneça, considero improdutiva a sua prisão), já a partir do episódio do mensalão, do golpe contra a Dilma e do processo farsesco da Lava Jato e posterior prisão de Lula, todos os elos formadores da corrente progressista do pensamento advertiram insistentemente sobre a demonstração de pouca inteligência que seria abalar os frágeis alicerces da democracia a partir da destituição ilegítima de uma presidenta eleita, da prisão de um ex-presidente absolutamente popular e da eleição de um representante do protofascismo brasileiro.

Com relação ao impeachment de Dilma e à prisão de Lula, lembro que o país considerado o modelo de democracia liberal, os EUA, jamais destituíram um presidente por impeachment e tampouco prenderam ex-presidentes. Não porque não tivessem motivos para isso, salvo se alguém supõe que todos os presidentes americanos, sem exceção, são exemplos de moralidade e ética na conduta pública e privada. Claro que não é assim. A questão é que priorizaram os valores democráticos e a imagem do país perante seus próprios cidadãos e perante o mundo. Impedimentos e prisões de presidentes legitimamente eleitos estremecem a democracia, pois sempre irão contra a vontade de parte importante do eleitorado. No Brasil, porém, somos mais audaciosos. Ou ingênuos, talvez.

Relativamente à candidatura fascista, deve-se levar em conta que o Brasil foi um dos países com o maior número de nazistas fora da Alemanha. Além disso, muitos nazistas alemães aqui se instalaram após a derrocada na 2ª Guerra. Santa Catarina está aí para não nos deixar mentir. Disso resultou nossa experiência com o integralismo e, depois, com a ditadura militar. Seria uma burrice sem tamanho, décadas depois, já escaldados, apostar novamente na extrema-direita. Ainda assim, foi o que fizemos.

Democracia é coisa delicada com a qual não se deve brincar de modo brusco. Embora, no modelo atual, dela se possa tecer críticas legítimas e contundentes, é muito melhor do que sua alternativa extrema, a ditadura totalitária. Todos os que têm real preocupação com a saúde da democracia possuem a obrigação moral de dela cuidar com atenção, com carinho, para evitar-lhe causar ferimentos mortais.

Ah, diria o tolo, mas um país democrático não pode impedir manifestações populares. Olvida-se de que o direito de manifestação não alberga a possibilidade de exigir o fim da democracia, o golpe, a invalidação de uma eleição, a destruição do patrimônio público ou privado ou, enfim, a apologia a qualquer crime. Manifestações populares sobre os destinos da nação constituem, de fato, a essência do espírito democrático. Quanto maior a efetiva participação política da população, indireta também mas principalmente direta, mais democráticas serão as decisões de governo, as quais, em última análise, produzirão efeitos cujos bônus e ônus serão suportados majoritariamente pelo próprio povo. Porém, um dos principais axiomas do direito é o de que não cabe sua invocação com o propósito de impedir a consecução do seu próprio sentido teleológico. Assim, como todo e qualquer direito, a participação democrática do cidadão em passeatas possui limites constitucional e legalmente estipulados para evitar sua utilização com o objetivo de solapá-lo. Em resumo, o direito de manifestação não pode ser exercido para pedir o fim do direito de manifestação, o que é um contrassenso.

Repito: nas democracias capitalistas submetidas ao estado de direito, e com uma única exceção, não há direito que possa ser exercido em toda a plenitude, sem limitação de ordem alguma.

A exceção a que me refiro, aqui abrindo parênteses no assunto principal, é à possibilidade de enriquecimento ilimitado, esdrúxula e nociva invenção da sociedade humana que possibilita a alguns, pouquíssimos, serem donos de porções significativas de uma riqueza surgida da exploração da Terra e do trabalho alheio. Isso ao custo da miséria, fome e morte de milhões de seres humanos todos os anos, ao que se soma a submissão de bilhões à violência urbana, cuja principal causa, adivinhem, é a desigualdade de renda provocada também pelo acúmulo ilimitado de riqueza. Note-se que a repulsa não é à formação de riqueza, mas à ausência de limitação. Vale deixar claro que a possibilidade de intervenção estatal na propriedade, de que falarei no próximo parágrafo, não corresponde a um limite para o acúmulo de riqueza.

Voltando ao tema principal, e fora a única e anacrônica exceção, todo direito possui limites impostos pelo direito alheio, individual ou coletivo. Para ficar num exemplo de direito dos mais caros para os liberais, o uso e o gozo da propriedade privada submete-se ao interesse público, podendo o Estado nele intervir em casos de necessidade pública, o que pode se dar através de tributação especial em nome da justiça distributiva, desapropriação, perdimento de bens, tombamento, administração judicial e outras formas de intervenção estatal na propriedade privada. Ora, se é admitido que a joia da coroa do liberalismo, a propriedade, sofra intervenção estatal, com muito mais razão isso há de ser observado em relação ao direito às passeatas e manifestações coletivas no espaço público, pois se há algo certo e inarredável acerca das manifestações populares é que elas jamais representarão os interesses da totalidade da população.

A democracia do estado de direito exige que as minorias não sejam massacradas pela maioria, existindo salvaguardas constitucionais protetivas a respeito. Disso decorre, consequentemente, e com muito mais razão, que os interesses da maioria não podem ser solapados pelos caprichos injustificados de uma determinada minoria, ainda que seus integrantes protestem com selvageria, façam arruaças e promovam quebra-quebras. E foi exatamente isso o que se viu na tragédia de Brasília. Os terroristas não queriam se curvar ao resultado eleitoral. Pretendiam que a maioria, que escolheu Lula, se submetesse a um novo mandato daquele que não se deve dizer o nome, que, apesar de não ter sido eleito, por eles era desejado.

Lula acertou em seu discurso durante a reunião de desagravo à democracia realizada com todo os governadores. Os terroristas não tinham uma pauta política justa e juridicamente admissível. Desejavam um objeto fora da Constituição e de todo o ordenamento jurídico brasileiro: o desrespeito a uma eleição aprovada pelo órgão máximo eleitoral, o TSE. Clamavam por um golpe militar.

O que será que os levou a entender que tinham esse direito ou esse poder?

Isso pode ser explicado pelo fato de que, a partir da ascensão da esquerda ao poder federal, aqueles que mais tinham o poder-dever de zelar pela saúde da democracia foram justamente os que a atacaram. Apesar de reiteradamente advertidos dos perigos rondantes, embora cientes das fragilidades da democracia, donos de mídia, militares, magistrados (no sentido de autoridade política) e pastores extremistas prosseguiram com a disseminação do pânico moral antipetista. O objetivo inicial era instalar no poder um legítimo representante do patriarcado branco e rico que governasse para os privilegiados, ou seja, aqueles que costumam supor, ou fingir supor, que a fome de hoje pode aguardar alguns anos até que a economia melhore.

Para alcançar o objetivo, romperam com todos os escrúpulos. A imprensa corporativa continuou a sua sanha de escandalização do banal, sempre contra a esquerda. Generais e magistrados perderam a compostura, publicizando opiniões que deveriam, por dever de ofício, permanecer em reserva mental. Pastores evangélicos extremistas, não satisfeitos em enriquecer com o estelionato que é a exploração da fé do povo, filiaram-se ao discurso de extrema direita. Inventaram-se as pedaladas fiscais, deram um golpe na Dilma, prenderam Lula. Todavia, apesar de tudo isso, falharam miseravelmente em catapultar uma candidatura que efetivamente os representasse. Atônitos, constataram que perderiam a eleição de 2018. Desesperaram-se ao perceber a própria impotência em manipular o resultado eleitoral, como faziam no passado. E cometeram a mais drástica insensatez: renderam-se à candidatura de um brucutu com pensamentos espetacularmente retrógrados, quando tinham a possibilidade civilizada de escolher um manso, refinado e discreto professor universitário.

É preciso pontuar que as advertências contra o perigo fascista não decorreram do achismo típico desses sujeitos mal-intencionados que não têm prova e ainda assim condenam por mera convicção. Todas as acusações contra essa deformidade política foram baseadas em declarações expressamente saídas de sua boca durante os últimos trinta anos, em relação às quais existem um sem-número de vídeos e entrevistas comprobatórios de seu racismo, homofobia, misoginia, elitismo e outras ideias e pensamentos que ferem de morte o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana. E dentre tanta declaração desastrosa, há uma que possivelmente foi a mais repetida por ele, inclusive pouco antes de ser eleito: a que expunha sua vocação para a tirania antidemocrática e violenta. Dezenas e dezenas de vezes ele repetiu ser a favor de fechar o Congresso, o STF e governar monocrática e absolutamente, com apoio dos militares, inclusive através de tortura e assassinato de adversários. Tudo isso está registrado pelos diversos meios de comunicação. Todas as pessoas que possuem efetivo poder político e de influência sabiam disso. Todos os que poderiam, em tese, impedir ou dificultar a ascensão de um ser abjeto, possuidor dessa natureza antipolítica, sabiam disso. Ainda assim, insistiram na farsa do antipetismo como justificativa para a inação mesmo após se tornar evidente que uma aberração poderia ser eleita, como acabou sendo.

Obtiveram êxito em afastar o PT e a política desenvolvimentista-social que tanto odiavam, mas ao custo de admitir que um brucutu se aboletasse na cadeira presidencial. Permitiram que o poder parasse nas mãos de um político notoriamente protofascista que jamais sequer tentou ocultar os pensamentos antissociais e antidemocráticos que flutuam de forma incessante e desorganizada em sua mente confusa e raivosa, o que o torna, por isso mesmo, extremamente perigoso.

Donos de mídia, generais, magistrados e pastores evangélicos extremistas acharam ingenuamente que o controlariam. Não se deram conta que o grau de destemor e ferocidade de um animal está diretamente vinculado ao seu nível de ignorância sobre a realidade. A magnitude da insipiência de quem não quero dizer o nome, tal qual a de uma fera ferida, o torna indomável na defesa das próprias convicções e interesses. Indagamos novamente: isso era alguma novidade? De modo nenhum, essa sua característica foi exatamente a causa da expulsão do exército décadas atrás. O que fizeram foi uma aposta, a de que, agora, conseguiriam controlá-lo. Não vejo problema em algum idiota apostar que um jumento se tornará professor de Oxford, desde que o risco recaia sobre um bem próprio. A questão é que, no caso, o bem objeto da aposta não lhes pertencia: a democracia. A lei de Murphy prevaleceu: tudo que tinha de dar errado, deu, e perderam a aposta. Assustados, descobriram-se na savana como presas, sendo ele, o predador. A sorte é que se tratava de um predador sem muito conhecimento sobre caça. Ainda assim, uma besta indomável capaz de causar problemas por sua simples existência.

Louve-se o árduo trabalho de Alexandre de Moraes, que merece totalmente os créditos que lhe são dados por conter o ímpeto fascista. Aliás, penitencio-me por, na ocasião, ter sido contra a sua indicação ao Supremo. A firmeza e a coragem que demonstrou no enfrentamento da extrema-direita fascista foram indispensáveis nesse momento. Porém, sem desmerecer de modo nenhum as ações do ministro, que considero importantíssimas, creio que o principal elemento que de fato nos salvou da ditadura, o que garantiu a manutenção da democracia brasileira, a maior fragilidade na cadeia de comando fascista, foi mesmo a ignorância do inominável. Fosse um pouco mais esperto, tivesse um mínimo de discernimento na articulação política, estaria hoje governando com poderes imperiais, tal e qual um Hitler. Sua abençoada desinteligência política, no entanto, revelou-se logo nos primórdios do governo, quando se incompatibilizou com o partido pelo qual foi eleito e que formou a maior bancada do Congresso. Ele precisava desses votos para sacramentar suas pautas, mas o espírito animal de macho alfa que o domina retira-lhe a capacidade de moderação; tudo tem que se dar conforme sua vontade imediata, o mundo deve girar em torno de si, caso contrário, gritaria, xingamentos, choro, internação em hospital e ruptura política com o ex-aliado. Um a um, com poucas exceções, perdeu os aliados de campanha, tanto políticos como celebridades. Foi isso o que, de fato, nos salvou, pois a própria resistência institucional poderia, em tese, ter sido superada pela inteligência política, que, ainda bem para todos nós, era pouca e se acabou, ou não existia.

Um antigo ditado dizia que “ou o Brasil acaba com as saúvas, ou as saúvas acabam com o Brasil”, em função do estrago que faziam nos campos de plantações. Transportado para o campo político, as pessoas antes mencionadas – donos de mídia, oficiais generais, magistrados e pastores evangélicos extremistas – desempenharam o papel das saúvas nos campos agrícolas: são responsáveis pela destruição do que poderia ser produtivo, útil, benéfico. Ora, se se articulam contra o que potencialmente é útil, benéfico e produtivo, conclui-se que o propósito da empreitada antidemocrática que derrubou Dilma e colocou Lula na prisão nunca foi a prevalência do republicanismo, interesse na justiça, respeito à legalidade ou cumprimento do dever. Houve estritamente uma intensa, violenta e desigual batalha pelo poder de determinar o destino dos recursos públicos. Aliás, esse é sempre o objetivo, só que deve ser perseguido às claras através dos partidos políticos, não dissimuladamente pelos jornais e pela caserna. Portanto, assim como as saúvas, ou são destruídos (no registro simbólico de controle através de regulação) ou nos destruirão.

Pois bem, a elite percebeu o tiro no pé que deu, amainou o discurso antipetista, Lula foi solto e, como se sabia, venceu a eleição, porém, por vingança, depredaram Brasília. O que ocorre a partir de agora?

Bom, novamente devemos agradecer à falta de inteligência política daquele que devemos evitar dizer o nome e também de seus seguidores. Parte da mídia principiava a adotar o tom belicoso de outrora. Contudo, a destruição de Brasília materializou o que, até então, estava limitado ao âmbito do discurso e da narrativa. O fascismo e a violência dos seguidores de vocês sabem quem ficou evidente, foram postos sob os holofotes da opinião pública. Não há mais dúvida quanto à sua periculosidade, quanto ao seu poder destrutivo. A partir desses eventos, e muito em breve, poucos terão a coragem de se afirmar seus seguidores ou simpatizantes. Num processo similar ao que ocorreu com os nazistas na Alemanha, os seguidores do protofascista serão relegados a guetos políticos, discriminados pela massa da população, como devem ser. Continuarão estridentes, como são os neonazistas, mas com pouca possibilidade de voltar ao poder, embora a vigilância jamais possa ser interrompida.

Ao contrário do que muitos supõem, de que o discurso antipetista retornará tão logo se consolide a paz, penso que os efeitos da balbúrdia fascista serão duradouros. Não que as críticas contra o governo do PT deixarão de existir. Todo os governos estão submetidos ao escrutínio público e o jornalismo existe para isso. Porém, creio que o antipetismo em sua modalidade doentia não será ressuscitado, ao menos no que toca à população em geral e aos jornalistas mais respeitados e respeitáveis. Os escombros dos palácios de Brasília, com todas aquelas peças artísticas e históricas absolutamente valiosas sendo destruídas com descaso pelos terroristas ensandecidos, a imagem de um animal irracional de duas patas defecando em uma mesa do STF, tanta barbaridade despudorada, tudo isso permanecerá indelével na memória coletiva como um alerta não somente para o que ocorreu, mas principalmente para o que poderia ter acontecido caso essa coisa fosse reeleita.

É inimaginável supor que pessoas com uma visão um pouco mais ampla da sociedade não seriam impressionadas pelo que ocorreu e não pensariam duas vezes, no futuro, e mais sabiamente, na seleção do que seria o “mal menor”. Creio que Lula poderá governar, não com a complacência, mas com a crítica saudável, intelectualmente honesta, dos cidadãos e também dos principais jornalistas. Espero não estar errado.

Algumas escaramuças aqui e ali possivelmente ainda ocorrerão, mas a firme demonstração de união institucional simbolizada na reunião dos governadores não deixa dúvida de que serão superadas.

Quanto às nossas saúvas, regulação nelas, principalmente no que toca à mídia corporativa, e aqui falo dos donos, não dos jornalistas. A pretensão não deve ser a de censurar conteúdos, mas estabelecer limites à capacidade de formação da opinião pública, hoje nas mãos de não mais do que quatro ou cinco famílias. Um dos principais focos deve ser a extinção da possibilidade de propriedade cruzada dos meios de comunicação, assim pulverizando, e portanto democratizando, a divulgação de fatos e opiniões e possibilitando inclusive a crítica da crítica, o que atualmente é quase impossível por conta do cartel midiático existente, impeditiva de que uma empresa de informação critique a atuação da outra.

Quanto aos conteúdos, e como já afirmei em texto anterior, jornalistas, colunistas e comentaristas da mídia em geral têm o direito democrático de possuir seu próprio ideal político e defender essa bandeira às claras, seja qual for. Evidentemente, estamos falando de bandeiras políticas que se enquadrem nos princípios da dignidade humana, o que exclui pensamentos nazifascistas e totalitarismos de qualquer espécie, inclusive a defesa daquele que deve ficar sem nome e de seus seguidores. Porém, exige-se que o discurso político do jornalista, assim como o de todo cidadão, seja honesto intelectualmente e ético na práxis. Traduzindo: todo debate deveria se mover em busca da verdade comum possível de ser obtida a partir dos pensamentos que ambos os interlocutores possuam sobre um determinado objeto. O objetivo do debate não deveria ser, como comumente o é, a perseguição da vitória discursiva ou a conquista do interesse individual. Quando ocorre a conjunção de pensamentos em direção ao bom combate, acaba por se produzir uma certa convergência de objeto entre direita e esquerda na busca pelo bem comum. Diga-se que Lula já demonstrou fartamente a possibilidade de casamento entre direita e esquerda. O que não se admite é qualquer relação com ideais nazifascistas, no Brasil personificados no inominável.

Importa destacar que aquele cujo nome deve ser omitido não representa o pensamento da direita política. A bandeira defendida pela direita é honesta e socialmente útil. A direita política autêntica persegue a construção da sociedade boa, exatamente como a esquerda. Diferem na metodologia de busca da utopia e é esse o limite de minha discordância deles, sem que haja incompatibilidade social alguma ou distanciamento físico por nojo, como nutro pelo movimento do indizível. A honestidade intelectual de qualquer coloração é o atributo que confere validade a todo pensamento político incluído no debate público. É a partir dela, da honestidade intelectual, que surge o verdadeiro propósito público, ou seja, a vontade desinteressada de melhorar a vida coletivamente vivida, a dignidade das pessoas.

O pensamento do inominável, por outro lado, como todo neofascismo similar, representa a distorção da direita, assim como a União Soviética produziu a distorção da esquerda.

Quanto às saúvas pastoras evangélicas, já publiquei diversos textos sobre o risco que é o empoderamento político de sacerdotes. No limite, temos as experiências históricas da Europa medieval cristã e as teocracias islâmicas atuais como paradigmas da malignidade representada pelo descaso com a escalada política de ministros religiosos. O imaginário popular é suscetível demais, por temor reverencial, ao discurso religioso, o que desequilibra a balança política. É preciso pontuar ser praticamente impossível que um sacerdote no poder, eleito ou não, seja democrata, dada a barreira intransponível representada pelos dogmas de sua fé.

Também aqui se impõe uma regulação mais estreita sobre o papel sacerdotal quando no púlpito e sobre os limites de atuação na política. Pode-se pensar em punições que atinjam o interesse mais precioso dos pastores extremistas, que claramente não é sua alma, nem a dos fieis, mas o seu bolso. Precisa-se repensar a questão da isenção tributária de igrejas e templos nos casos em que verificada o desvio de finalidade da igreja em direção ao empoderamento político, como em campanhas eleitorais ou associação explícita com determinada figura política, seja quem for.

Por fim, no que toca às saúvas militares, e com as exceções de praxe, essas já deram demonstrações históricas claras de posicionamentos antidemocráticos e falta da devida subordinação ao poder civil. Nos últimos anos, os sinais de insubordinação foram explícitos, com general se achando no direito de ameaçar publicamente os ministros do Supremo relativamente à soberania de suas decisões. A anistia dada aos militares da ditadura foi um erro histórico em função do qual até hoje sofremos as consequências. Todavia, já foi dada e há de se pensar em como lidar com os esbirros autoritários atuais. Um dos modos possíveis é impedir ou dificultar a nomeação de militares para cargos públicos de confiança. O que se viu no governo anterior foi um gigantesco trem da alegria direcionado aos militares, com milhares deles sendo nomeados para cargos de confiança. Um total absurdo, que desvirtua os objetivos da instituição e da carreira, comprometendo a isenção política que as Forças Armadas devem ter em relação aos chefes dos poderes e, principalmente, ao comandante em chefe atual e futuro.

A reestruturação da formação militar, claro, é outro alvo a ser perseguido. Tem que ser interrompida a cadeia de transmissão do pensamento militar aristocrático que originou a ditadura e que, até hoje, vem representado pelo velho oficialato. A academia militar necessita de um revolução no ensino, com ênfase, ao lado da técnica militar, em noções de cidadania, direitos humanos, ética e limites constitucionais de atuação.

O direito penal militar talvez tenha que ser atualizado, pois, ao que parece, enquanto não for facilitada a prisão de generais e outros oficiais superiores, como exemplo para toda a tropa, a hierarquia não será devida e suficientemente estabelecida. Talvez seja hora de reformular os tribunais militares para reduzir o corporativismo. Ainda que observado o atual código, certamente, após a balbúrdia de Brasília, é possível reunir elementos de prova suficientes para a condenação de alguns deles, obviamente respeitando-se o devido processo legal.

Chegou-se ao ponto em que oficiais de baixa patente se irresignam publicamente com o oficialato superior por conta dessa ou daquela orientação política. Em ambiente militar, a insubordinação representa o fim da linha de comando e, portanto, da instituição.

A omissão dos comandantes em esvaziar as aglomerações defronte aos quartéis e o que ocorreu em Brasília, com a guarda militar do Planalto tendo se omitido completamente na defesa do Palácio e, em última análise, do próprio presidente, salvo apenas pela circunstância fortuita de não estar presente no local, são atos de extrema gravidade ainda não devidamente esclarecidos, embora Lula tenha se referido ao episódio.

Por fim, ainda que a relação com o assunto seja residual, já passou da hora de extinguir as polícias militares, cujas tropas devem ser incorporadas às polícias civis dos estados. Não há razão alguma que justifique a existência de uma polícia militar em regime democrático civil submetido ao estado de direito.

O Brasil precisa acabar com as saúvas políticas antes que elas acabem com a plantação democrática brasileira.

Marcio Valley é formado em Direito pela UFF, com pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

4 Comentários

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  1. Excelente na análise e no quadro descrito. Só faço ressalva quanto a atribuir à incompetência do inominável a principal causa do seu fracasso até agora. Passa a impressão de que está desconsiderando todos os outros esforços e ações realizadas por tantos que resistiram e ainda resistem ao autoritarismo.

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