No mundo dos excessos, carência de Justiça, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Refiro-me obviamente ao excesso de mediocridade da imprensa neoliberal, dos políticos neoliberais e, sobretudo, da esquerda que se deixou seduzir pelo neoliberalismo

Arte na Rua – Berlim

No mundo dos excessos, carência de Justiça

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não, não vou aqui criticar o excesso de consumo, pois de fato ele está em declínio. Milhões de europeus já não conseguem pagar suas contas de luz. Dezenas de milhões de norte-americanos passam fome ou dependem de programas de distribuição de food stamps. Centenas de milhões de africanos e latino-americanos foram jogados na miséria pela pandemia. No Brasil já tem gente consumindo lixo, algo que dificilmente poderia ser chamado de consumismo.

Os excessos que merecem minha atenção são outros.

O primeiro é o excesso de gastos militares. Desesperadamente tentando manter sua hegemonia global, os EUA gastam cada vez mais dinheiro com a manutenção e ampliação de suas Forças Armadas ao redor do planeta. Além disso, Washington pressiona seus aliados europeus a aumentares suas contribuições para a OTAN. A pressão dos EUA fez seus principais competidores, Rússia e China, também aumentarem seus orçamentos militares.

O segundo excesso que merece atenção é o de liquides. Ele começou logo após a crise de 2008.

Aterrorizado pelo efeito dominó causado pela quebra do Lehman Brothers Holdings Inc. em decorrência da explosão da bolha du sub-prime, o governo dos EUA bombeou oceanos de dinheiro para os bancos privados norte-americanos. O BC Europeu fez algo semelhante na zona do euro, que foi rapidamente contaminada. Em tese, os banqueiros deveriam emprestar esse dinheiro às médias e pequenas empresas para resgatar a confiança do mercado e reativar a economia. Não foi isso o que ocorreu. O dinheiro ficou empossado nos bancos e nas grandes empresas, que tomaram dinheiro emprestado e aplicaram nas suas ações para valorizá-las.

A pandemia também obrigou os Bancos Centrais a bombear mais dinheiro nos bancos privados, mas apenas uma parcela mínima desses recursos realmente chegou às mãos daqueles que trabalham e consomem (ou que deveriam consumir sem trabalhar por causa das restrições sanitárias impostas pela circulação do vírus legal). Beneficiadas, as Big Techs sonham com a imersão virtual total (caso do Facebook) ou com o turismo no espaço (Amazon). O G7 parece querer salvar a ciranda financeira apostando num ciclo industrial alavancado pela exploração espacial.

Marx teorizou sobre um capitalismo acossado por crises de excesso de produção e pela competição por mercados que inevitavelmente levava os países capitalistas à guerra e à colonização forçada de imensas regiões na África e na Ásia. Desde 2015 nós já vivemos num mundo em que o maior problema é o excesso de liquidez economicamente inútil https://www.noticiasaominuto.com.br/economia/136344/schauble-alerta-sobre-risco-de-bolha-por-excesso-de-liquidez.

O reverso do excesso de liquidez é o excesso de endividamento privado. Para manter o consumo as pessoas se endividam. Ao fazer isso elas comprometem seu futuro num contexto em que o Estado cada vez mais deixa de investir em saúde, educação, moradia, etc… Os teóricos e pastores neoliberais defendem a tese de que o mercado deve ser totalmente livre de qualquer controle público ou estatal. No mundo real criado pelo neoliberalismo centenas de milhões de pessoas se tornaram escravas das dívidas que foram obrigadas a criar para consumir e das quais não serão resgatadas nem pelo mercado nem pelo Estado.

Pensando sobre esse assunto, lembrei-me do filme Total Recall (não a versão de 2012 que é uma porcaria, mas o original de 1990). Na colônia marciana, alguém descobre um imenso reator alienígena capaz de transformar geleiras subterrâneas em atmosfera respirável. O administrador local, encarregado de garantir a extração de minérios ao menor custo, manda lacrar o local. Ele está acostumado a usar o suprimento de ar para controlar politicamente a população local rebelada por causa da desigualdade econômica crescente.

Em nosso contexto, o ar é a moeda. O excesso de liquidez empossado nos bancos e nas empresas multinacionais é uma geleira que deveria ser derretida para que as pessoas possam respirar (ou seja, produzir e consumir ou quem sabe consumir sem produzir). Mas não existe nenhum reator alienígena capaz de transformar a liquidez em moeda circulante. O neoliberalismo faz exatamente o oposto, ele congela a esperança à medida que as pessoas são obrigadas a ficar mais e mais endividadas.

É aqui que emerge o verdadeiro excesso em que a civilização ocidental foi aprisionada. Refiro-me obviamente ao excesso de mediocridade da imprensa neoliberal, dos políticos neoliberais e, sobretudo, da esquerda que se deixou seduzir pelo neoliberalismo. Não há nenhuma alternativa? O mundo tem que ser inevitavelmente sugado pelo buraco negro do excesso de liquidez combinado com o excesso de gastos militares e de endividamento privado.

Qual seria a solução para uma crise econômica mundial oriunda de contradições econômicas originadas na colônia em Marte? O perigo do excesso de liquidez é menor que o do excesso de produção? Uma guerra convencional entre EUA, Rússia e China não evoluirá inevitavelmente para um confronto nuclear destruindo tanto a vida humana quanto a economia que a sustenta? Os sabichões neoliberais preferem não fazer perguntas incômodas.

Nem exploração do espaço, nem perpetuação dos excessos de liquidez, de endividamento privado e de gastos militares, nem guerra nuclear mundial para aliviar as tensões internas e internacionais criadas pelo mercado. O mundo precisa sair da armadilha em que foi aprisionado. A catástrofe que vai liberar todas as energias aprisionadas pelo neoliberalismo será natural https://www.science.org/content/article/ice-shelf-holding-back-keystone-antarctic-glacier-within-years-failure#.YbjSu1kejgE.twitter? A conferir.

No caso específico do Brasil, a bomba detonada pelo MPF terá efeitos devastadores https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/12/15/mpf-acusa-governo-federal-de-omissao-e-pede-indenizacao-para-familias-e-vitimas-da-covid-19.ghtml. A obrigação do Estado indenizar as vítimas do genocídio pandêmico é evidente, uma decorrência inevitável do relatório da CPI da COVID. Mas isso não basta.

A CPI provou que Bolsonaro e os generais do Exército usaram a pandemia para matar 400 mil pessoas. Causar mortes para garantir o crescimento econômico não pode ser considerado um programa econômico lícito https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/. Portanto, o presidente do BC e, eventualmente, o Ministro da economia também devem ser considerados responsáveis.

A canalha que chegou o poder espalhando Fake News e propagando-as para iludir a população durante a pandemia merece ser processada criminalmente e enjaulada, a começar pelo presidente da república e os filhos dele. Generais e coronéis genocidas que o ajudaram Bolsonaro não podem ficar impunes. O mesmo se aplica inclusive aos jornalistas bolsonaristas que fizeram propaganda da cloroquina.

O patrimônio de toda malta deve ser bloqueado e, depois confiscado. A União não poderá ficar sem ser indenizada em decorrência do que for obrigada a pagar às vítimas do genocídio pandêmico. Nem esquecimento, nem anistia, nem impunidade, nem imunidade. Cada qual deve responder pelos atos que praticou durante a pandemia.

Há ainda uma questão eleitoral que deverá ser julgada pelo TSE. A justiça eleitoral deve permitir a Bolsonaro e seus “manos” devem poder disputar eleições enquanto o genocídio pandêmico não for julgado dentro e fora do país?

No filme Total Recall (1990), o acionamento do reator alienígena restaura a distribuição justa de ar interrompendo a tirania política e econômica em Marte. O que será capaz de fazer algo semelhante no planeta neoliberal dominado pela especulação tóxica de ativos financeiros economicamente inúteis?

A Justiça foi uma coisa expulsa do nosso mundo pelo neoliberalismo, teoria que preconiza a maximização do lucro privado mediante a liberalização total da economia com a destruição da capacidade estatal de corrigir as distorções socioeconômicas produzidas pelo mercado. Restaurar a Justiça no Brasil é algo necessário. Restaurá-la em escala planetária deveria ser a missão civilizatória do século XXI.

O mundo não precisa financiar a exploração capitalista do espaço, nem incentivar os países centrais a gastar mais dinheiro numa guerra que não poderá ter vitoriosos. Catástrofes naturais são oportunidades econômicas. Mas a população do planeta não deve se tornar vítima do excesso de liquidez, nem ser escravizada pelo endividamento privado.

As vítimas do neoliberalismo são seres humanos dotados de direitos internacionalmente reconhecidos desde o fim da II Guerra Mundial. Elas não merecem ser indenizadas pelo mercado? Como operacionalizar a restauração da Justiça num mundo que naufragou no excesso de mediocridade?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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