O jogo dos espelhos: Trump e Bolsonaro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A semelhança com Donald Trump começou a deixar de existir algum tempo depois do início da pandemia do Covid-19.

O jogo dos espelhos: Trump e Bolsonaro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Depois que Donald Trump foi eleito para cumprir o primeiro mandato, Jair Bolsonaro passou a mimetizar o presidente norte-americano e a dizer que era o “Trump brasileiro”. Os métodos de propaganda criados por Steve Bannon foram adaptados ao contexto brasileiro pela familícia e Fernando Haddad foi derrotado porque preferiu ficar num pedestal de mármore a dar porradas verbais no adversário grosseiro, mentiroso, rasteiro desonesto que impulsionava campanhas de Fake News e de ódio com ajuda de robôs.

A semelhança com Donald Trump começou a deixar de existir algum tempo depois do início da pandemia do Covid-19. Enquanto o presidente dos EUA autorizou a compra de vacinas, Bolsonaro continuou sabotando a aquisição delas pelo Brasil. O programa de vacinação brasileiro foi atrasado e isso obviamente aumentou a quantidade de mortes durante a pandemia.

Outra diferença evidente entre Bolsonaro e Trump não foi muito notada. Enquanto o presidente brasileiro atacou sistematicamente o Poder Judiciário, o norte-americano preferiu conviver pacificamente com os juízes norte-americanos. As diferenças entre os dois países desempenharam um papel importante nessa questão, porque a judicialização da política entre nós é muito maior do que entre os norte-americanos e a Suprema Corte dos EUA julga uma quantidade de processos muito menor do que a brasileira.

As diferenças entre o presidencialismo norte-americano e o brasileiro são imensas. A competência do presidente do Brasil é explicitada de maneira taxativa no art. 74, da CF/88. A constituição dos EUA exemplifica os poderes presidenciais, sendo certo que a doutrina constitucional norte-americana admite que o presidente lá tem poderes implícitos que não foram expressos no texto da constituição (desde que eles não tenham sido atribuídos ao Congresso e ao Judiciário).

Também é digno de nota aqui a maneira diferente como as Supremas Cortes dos dois países foram estruturadas e dotadas de competência. Esse também foi um fator importante para diferenciar o primeiro mandato de Donald Trump do de Jair Bolsonaro, porque os confrontos entre Executivo e Judiciário lá foram menores e menos intensos do que aqui. Mas não entrarei em detalhes técnicos sobre as diferenças entre as duas Supremas Cortes. Os interessados podem obtê-los em outro lugar (vide 1, vide 2).

Donald Trump foi condenado por diversos crimes e ainda assim pode disputar a presidência e foi empossado após a vitória em 2024. Isso não seria possível no Brasil. Mas é preciso dizer que o sistema de justiça brasileiro demorou demais para processar e julgar os crimes cometidos por Jair Bolsonaro. Na verdade, ele já poderia ter sido jogado no lixo da história por crimes que cometeu quando era deputado federal. Os crimes comuns que ele pode ter cometido quando era presidente e após o fim do mandato (genocídio pandêmico, apropriação indébita de joias da presidência e conspiração para matar juízes, líderes políticos adversários e impor uma ditadura) ainda não foram objeto de denúncia.

Um espelho nem sempre mostra aquilo que foi colocado em frente dele. Deformações na imagem podem resultar do formato do espelho, da iluminação e de rachaduras ou danos à fina camada de prata, alumínio ou cromo. Dependendo do lugar em que se encontra, um terceiro observador nem sempre sabe se o que ele está vendo é a imagem espelhada da coisa ou a própria coisa. As diferenças entre a imagem e o objeto em frente ao espelho tem fascinado os artistas e já foi explorado exaustivamente pelo cinema.

É notável a cena do filme Matrix em que Neo toca um espelho e se transforma numa substância espelhada antes de acordar. Mencionei essa cena porque ela me parece simbolizar bem o que está ocorrendo nesse momento.

Após tomar posse para o segundo mandato, Donald Trump assinou vários decretos. Num deles ele revogou o princípio constitucional do jus soli, segundo o qual quem nasce no território dos EUA é norte-americano. Obviamente inconstitucional, esse decreto foi questionado na Justiça e suspenso por um juiz federal norte-americano.  Nesse exato momento Trump está na mesma posição que Neo: ele tocou o espelho e começa a se transformar numa substância espelhada.

Se deixar de atacar ferozmente o juiz que suspendeu o decreto mencionado a popularidade do novo presidente dos EUA entre os norte-americanos fanáticos e racistas que odeiam imigrantes despencará. Caso confronte publicamente o juiz federal (como atacou a religiosa que deu um puxão de orelha nele), Donald Trump emergirá do outro lado do espelho transformado em Jair Bolsonaro.

O ex-mito brasileiro apostou tudo no conflito com o Judiciário e perdeu. O sistema de justiça dos EUA já condenou Donald Trump por diversos crimes. Um conflito com os juízes norte-americano pode encerrar a carreira dele de forma mais rápida e dramática do que os trumpistas brasileiros imaginam. Como Neo-Bolsonaro, Trump trocará a Matrix do poder pela lata do lixo da história? Essa é a pergunta que a imprensa brasileira deveria ter feito e ainda não fez.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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