Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã, por Daniel Gorte-Dalmoro

Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita.

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

por Daniel Gorte-Dalmoro

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou “fracassados”) na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as “desviantes” no gênero ou na orientação sexual… e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso – e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa “acolhida perversa” feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti – mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos).

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas – e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de “má fama” (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas – e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos – sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja – quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol).

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio “de resultados”, voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado.

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a “brincadeira” e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro – e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha “se perdido”, que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: “você é louco, por isso tá assim”, ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: “não fala assim com seu irmão…”, enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja – por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um “deus é mano” antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram “bugre”, “do mato”, “caipira” – e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco.

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de “homossexualismo” – justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda – foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo – e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda “running for the lord” (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, “porque no Brasil não se valoriza o médico”, argumentou.

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas – deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro – creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas.

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de “não precisava ser assim”. Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores – da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente.

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance – as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos – tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado – a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.

Daniel Gorte-Dalmoro é bacharel em filosofia e ciências sociais pela Unicamp e mestre em filosofia pela PUC-SP

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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