
Rumos para o quartel atordoado
Por Manuel Domingos Neto
O rol dos delatores premiados deve crescer. Mais denúncias corrosivas surgirão. Caixas pretas podem ser abertas. O sensacionalismo dos jornais manterá a prolongada tritura da imagem do militar. O festival de ambições mesquinhas, rivalidades deletérias, rixas pessoais, expedientes sórdidos e infindáveis procedimentos à margem da lei não tem prazo para terminar.
A ignomínia dos que pretendiam incendiar o país e assumir o poder de costas para a Lei nutrirá cotidianamente a fereza do brasileiro mediano.
A exposição negativa do quartel é o preço da jornada macabra, iniciada bem antes do governo Bolsonaro. A quebra da institucionalidade sobrepassa a tentativa tabajara de mantê-lo no poder de qualquer jeito. O planejamento de assassinatos e o quebra-quebra nos palácios resultam de processo alongado e ainda mal descrito.
Para recompor sua imagem, o quartel terá que responsabilizar os que, por décadas, açularam as entranhas do ultraconservadorismo e exaltaram a ditadura.
Os lances visando a imposição de um regime autoritário incluem as prisões arbitrárias do mensalão, a interrupção do mandato de Dilma, a condenação Lula, o acicate dos milhões de integrantes da “família militar”, a condução grotesca de Bolsonaro ao Planalto, a pregação negacionista durante a pandemia, a busca alucinada de sinecuras na administração pública, as operações psicológicas visando interferir no humor popular, os conluios com estrangeiros inimigos do Brasil e a contestação das urnas eletrônicas.
Os comandantes refratários ao ativismo político nos quarteis perceberam tardiamente o potencial desagregador da militância ultrarreacionária nas fileiras. Comparações de quadros históricos são sempre questionáveis, mas seria difícil lembrar constrangimento moral do castrense como o que hoje atordoa o quartel.
Aos poucos, os sicários estão sendo incriminados. Alguns serão expulsos com desonra das corporações, configurando caso raro na história nacional.
O democrata brasileiro terá seu momento alegre com a prisão de ícones do golpismo. Que pense nos animais domésticos, nos autistas, e festeje sem soltar foguetes.
A recomposição da imagem das fileiras exige expurgos arriscados. Pode haver quebra da cadeia de comando. Chefes serão testados. Desavenças entre as corporações podem eclodir. O marinheiro escancarou essa semana sua indocilidade agredindo quem lhe garante o soldo.
O golpismo parece momentaneamente contido. Mas vale lembrar: trata-se de recurso inerente ao ultraconservadorismo, que mostrou força nas últimas eleições. Veleidades de democracia, soberania e desenvolvimento socioeconômico persistirão combatidas. Lula governa fortemente contingenciado. Na peleja ideológica em curso, parece não sobrar espaço para mudanças sociais imprescindíveis.
Não obstante, cabe debater a construção da legitimidade do quartel porque, sem instrumento de força respeitado, o Estado soberano e democrático é uma quimera.
Que tal algumas iniciativas em benefício da Defesa Nacional? O Brasil precisa se inserir dignamente em cenário global que anuncia guerra generalizada.
Na busca de legitimação, as fileiras podem ganhar pontos suprimindo gastos perdulários e se preparando para guerrear de verdade.
A extinção de centenas de unidades militares inúteis para responder ao agressor estrangeiro seria aplaudida. O avanço na capacidade aeronaval, também. O estrangeiro pérfido não será abatido com tiros de fuzil. Rambos não impedirão um eventual bloqueio de nosso comércio internacional.
Precisamos de mísseis hipersônicos, aeronaves, barcos, drones e satélites inteiramente fabricados aqui, com o saber brasileiro. A dependência externa em armas e equipamentos atesta o fracasso da Defesa Nacional.
É hora de redução de efetivos em benefício de uma capacidade defensiva real.
Para afirmação da soberania, o gesto de maior significado seria o fechamento das obsoletas comissões militares na Europa e nos Estados Unidos, heranças das guerras mundiais reveladoras de um atrelamento que nos fez mal.
Apelos à coesão nacional seriam fundamentais. O mais espetacular seria um agradecimento do Comando da Marinha ao Almirante Negro. Ninguém contribuiu mais que João Cândido para reduzir a pecha escravista da Armada.
Entretanto, o ponto alto da afirmação do quartel como instrumento da vontade brasileira, seria a redefinição de seu papel constitucional.
A Carta precisa interditar o uso das Forças Armadas contra brasileiros e destiná-las exclusivamente ao combate aos agressores estrangeiros.
A garantia da Lei e da Ordem deve ser entregue às instituições que lidem com a cidadania. A vigilância da costa marítima e da fronteira terrestre são deveres policiais. Segurança Pública não é especialidade militar.
O distúrbio de personalidade funcional das fileiras, provindo do regime imperial-escravista, finalmente, desapareceria. Trata-se de passo fundamental para evitar delírios militaristas.
Com missão claramente definida, o quartel teria melhor chance de se aprumar. Quem sabe, proteger-se-ia melhor de atordoamentos inglórios e deixaria a sociedade definir seu rumo sem sobressaltos.
Manuel Domingos Neto – Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, em 1976. Obteve o título de Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, em 1976, e o título de Doutor em História pela mesma universidade, em 1979.
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Tem uma coisa que me assombra.
O escrutínio de um discurso, de uma narrativa, de forma dialética, pode nos revelar muito mais pelo que não foi dito.
Me parece o caso desse texto.
Qual a imagem que se quer resgatar?
E pior, qual o objetivo desse resgate?
Isso me assombra, como eu disse, tratando-se de um interlocutor tão laureado, e, ao que parece, possuidor de uma inclinação progressista (seja lá o que isso signifique).
Ora, forças armadas no contexto capitalista só servem para duas coisas, olhando em uma perspectiva simplista, porém histórica:
Disputa geopolítica por território e recursos alheios, com composição de alianças externas estratégicas, tudo com objetivos hegemônicos.
E contenção interna dos conflitos de classes, con auxilio de forças policiais.
Desnecessário dizer que se tratam de países ricos, no primeiro caso, e os pobres, no segundo, como o Brasil.
Não há exceções.
Em 135 de república, não tivemos 40 anos ininterruptos de eleições sem golpes.
Ah, estamos desde 1989 com eleições livres.
Mentira, ainda estamos no golpe de 2016, senhores e senhoras, não esqueçam!!!!
Então, de novo, qual imagem?
Nossas FFAA não têm que ter imagem alguma, tem que obedecer, e ponto!
Mas vamos imaginar que seja possível, como Chávez fez na Venezuela.
Qual foi o resultado, ainda que o nível de mobilização popular, proporcionado pela liderança de Chávez seja memorável?
Na verdade, um país como o nosso, contextualizado historicamente, deveria reduzir suas forças ao mínimo, para corresponder a sua posição geopolítica de subordinação e viralatice.
Em termos práticos, essas FFAA não servem a qualquer possibilidade de defesa dessa território gigante.
Não me refiro a IV Frota, ou a vasos de guerras potentes, como russos ou chineses.
Falo de traficantes, contrabandistas e outros mequetrefes que entram e saem pelas nossas fronteiras, como se fossem peneiras.
Vergonha.
Então, se é para sustentar essa laia, e seus descendentes (algumas em situação previdenciária ilegal), demitam esses parasitas golpistas e cesse essa sangria nos cofres públicos.
Não tem essa conversa de que só uma parte das FFAA é golpista ou isso ou aquilo.
Falar essa asneira é desconhecer o papel das FFAA descrito lá em cima.
Agora, no episódio dos cortes orçamentários, a exclusão dos militares, após tudo isso, a atitude de Lula é, como dizia Brizola, um sonoro tapa na cara dos brasileiros.
Então, professor Manoel, qual imagem?
Caro Douglas, grato pelo questionamento. Responderei todos os comentários em outra matéria. Abraço
Abraços
Excelente análise. Como leva- lá ao Presidente Lula e seus ministros???
Dentre aa várias questões relacionadas às FAs com este governo uma me preocupa muito. Trata-se do ministro da defesa. Segundo leio, lula escolheu mucio como porta voz dos milicos junto ao governo. Foi correta esta inversão? Acho que não.
Follow the money
O inimigo interno garante os privilégios dos militares brasileiros. O inimigo externo é perigoso e ameaçador.
Para combater o inimigo interno não é preciso armamentos modernos. Isso explica o sucateamento das forças armadas.
Por que trocar um pelo outro, perder privilégios e arriscar a vida em combate de igual pra igual?