O New Deal das emoções da PEC 55, por Fernanda Graziella Cardoso

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O New Deal das emoções da PEC 55

por Fernanda Graziella Cardoso

Em sua obra seminal, O atraso econômico em perspectiva histórica, de 1952, o historiador econômico russo Alexander Gerschenkron ressaltou: “Num país atrasado, o esforço grande e repentino de industrialização clama por um New Deal das emoções”.

Considerando o esforço de industrialização (que naquele momento histórico era sinônimo de desenvolvimento) e o contexto de atraso socioeconômico, é perfeitamente possível transplantar tal pensamento para o contexto atual: Brasil, ano de 2016, prestes a aprovar um Projeto de Emenda Constitucional que pretende impor um teto aos gastos públicos por dois decênios e, supostamente, recolocar o país no trilho do desenvolvimento por meio da recuperação do crescimento econômico.  

O New Deal das emoções da PEC 55 formou-se a partir de um clamor social contra a corrupção, identificada diretamente com o setor público. Embalada por essas emoções, a sociedade brasileira (ou ao menos aquela que possui poder de voz e, portanto, de apoio da mídia) apoiou o golpe parlamentar de 2016, na esperança de que dias melhores viriam – ou seja, de que as crises econômica, política e social desapareceriam pelo toque de uma varinha de condão da tão falada fadinha da confiança. Mas, para a fadinha agir, era necessário abrir o caminho.

O toque da varinha de condão vem a ser justamente a PEC 55, a formalização da chamada “Ponte para o Futuro”. Na sua embutida concepção de qual deve ser o papel do Estado – qual seja, mínimo, condizente com o Consenso de Washington de 1989 – estaria o embasamento teórico para explicar porque o Brasil chegou à atual crise – ou seja, excesso de gastança por parte do Estado – e o caminho para sair dela – qual seja, restringir o papel desse mesmo Estado, abrindo espaço para o mercado agir à la laissez-faire.

E como isso seria possível segundo os defensores da PEC 55? Limitando os gastos sociais (saúde, educação, etc.) e os investimentos públicos em geral. E para que? Para despertar a confiança do mercado (esse sim capaz de gerar crescimento e desenvolvimento sustentados), o governo deve se mostrar responsável, tal como um exemplar chefe de família, que gaste menos do que ganhe e, portanto, que gere poupança para pagar suas dívidas! Dito de outro modo, limitam-se os gastos não-financeiros, mas não impõe-se qualquer restrição sobre gastos com dívida e/ou juros dela.  

A explicação parece irrefutável. Quem discordaria? Não à toa, o New Deal das emoções se forma a partir da identificação de um inimigo comum: o Estado, classificado como corrupto, gastador e irresponsável. Por isso a solução apresentada para os problemas foi: destituir a sua figura central e, posteriormente, restringir o seu papel econômico, controlando o seu principal instrumento – o orçamento e sua execução – com o intuito de sanar a dívida pública, acalmar o dragão inflacionário e, num toque de mágica, estimular a retomada do nível de atividade.

O que se pretende demonstrar aqui é que o New Deal das emoções que embasou o golpe de 2016 e que vem amparando a aprovação da PEC 55 (bem como suas demais reformas correlatas, tal como a da previdência recentemente proposta), ou tem uma baixa dose de racionalidade econômica – ou uma alta dose de hipocrisia. Ou as duas coisas ao mesmo tempo.

A baixa racionalidade econômica refere-se à concepção inadequada do papel dinâmico que os gastos públicos desempenham em qualquer economia de mercado. E para essa compreensão, retomam-se Keynes e Kalecki, os teóricos que fundamentaram o princípio da demanda efetiva. O governo não pode ser definido como uma família: orçamento público não é orçamento doméstico. Simplificadamente, os gastos do governo (corrente e de investimento) são componentes da demanda agregada e, por isso, o seu crescimento concorre para impactar positivamente o crescimento do PIB (de maneira direta ou de maneira indireta, via efeitos multiplicadores, como o estímulo ao investimento do próprio setor privado por conta do incremento da demanda impulsionada pelos gastos governamentais). E, quanto maior o PIB, maior a base de arrecadação do próprio governo. E, ademais, os gastos do governo desempenham ainda outro papel: o de redistribuição de renda, por meio do fornecimento de serviços públicos, por exemplo. Redistribuir renda (direta ou indiretamente) para os mais pobres têm ainda outro efeito econômico: impactar positivamente o consumo (uma vez que tendem a possuir, pelo baixo nível inicial de renda, um alto nível de demanda reprimida), outro componente de demanda agregada que estimula direta e indiretamente (novamente, via efeitos multiplicadores, como o estímulo ao investimento do próprio setor privado) o crescimento do PIB. 

E o que pretende fazer a PEC 55? Restringir os gastos sociais e investimentos públicos com o intuito teórico de estabilizar a dívida pública. Uma dívida define-se contabilmente pela diferença entre a renda e os gastos e, para rolá-la, pagam-se juros. Ora, a base da renda do governo é a arrecadação tributária e as bases da arrecadação tributária são justamente a renda, o comércio e a produção gerais. Assim, diminuir os gastos do governo, especialmente num contexto de crise (círculo vicioso de baixo consumo, baixo investimento e desemprego) implica diminuir a própria base arrecadatória e, portanto, a sua fonte de renda. Inclusive para pagar aqueles juros e continuar rolando a dívida – não vale nem à pena contar aqui que quem define a taxa de juros é o Banco Central, seria covardia!

Embora seja difícil imaginar, pode até ser que a dívida estabilize pela imposição de um teto aos gastos; porém, qual seria o resultado socioeconômico dessa espiral negativa? Incremento nos níveis de pobreza e miséria, pois serão justamente as classes mais vulneráveis e dependentes de serviços e benefícios públicos que sofrerão na carne a imposição de um teto dos gastos públicos. Isso sem falar nos prováveis impactos de reformas correlatas, como a da previdência.  

E, ainda, sendo muito otimista e supondo que a fadinha da confiança ressurja como uma fênix das cinzas e o crescimento volte a acontecer, capitaneado por uma pujante classe empresarial e pela atração irresistível de investidores externos, o que implicará a PEC? Implicará que o superávit gerado – ou seja, o excesso de arrecadação sobre os gastos – seja utilizado tão somente para pagar os juros e a dívida, provocando uma redistribuição de recursos favorecedora dos detentores de títulos da dívida pública (cuja remuneração é definida por quem mesmo?). Portanto, mesmo no contexto improvável de retomada do crescimento pós-PEC, o resultado continuará sendo mais precarização dos serviços públicos, mais pobreza e mais desigualdade social.

Por conseguinte, pelo critério da racionalidade econômica, o toque da varinha de condão representado pela PEC 55, ao invés de fazer da abóbora uma carruagem que leve o país para o crescimento, parece estar com o roteiro trocado – por ignorância, por má-fé ou por ambas. O New Deal das emoções da PEC 55 só pode sobreviver com base nelas. Afinal, além de tudo, construiu-se a partir de uma mentira – de que o impeachment tinha base legal – e inebriado por ao menos uma ilusão – de que serviria para acabar com a corrupção. E mantém-se, ainda, à custa de uma grande ilusão coletiva de que não há outra saída – quando na verdade há.

O que será quando romper esse New Deal das emoções? Tarde demais.

Fernanda Graziella Cardoso – professora de Ciências Econômicas e Relações Internacionais da UFABC
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Casa de Família

    E ainda tem o fato de que se o pai ou a mãe de família ganharem um bom aumento vão poder gastar acima do orçamento anual dos anos anteriores, com a PEC 55 isso fica proibido, mesmo se o pai ganhar na Mega Sena teria que continuar gastando como um pobre trabalhador.

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