A cegueira branca do Estado e o gigante iluminado

A cegueira branca do Estado e o gigante iluminado

Por Rafael Araújo

Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e da PUC-SP

Tenho acompanhado a movimentação política pela qual o país tem passado nas últimas semanas e prestado atenção nas questões que têm surgido tanto nas ruas quanto nos meios de comunicação tradicionais. De fato é difícil encontrar explicações exatas e fazer previsões quando se está vivendo o processo, mas gostaria de fazer algumas considerações que não poderiam ser veiculadas na TV, no rádio ou em qualquer outro meio de superfície.

A primeira coisa que devemos prestar atenção é ao fato de se estar procurando uma explicação exata para o movimento. Isso é uma prova de que temos uma formação cartesiana, que quer enquadrar a tudo em esquemas prontos e de fácil entendimento. Sermos assim é o resultado de um longo processo de desenvolvimento da racionalidade. Trata-se de um processo histórico que se iniciou com a modernidade e que caminhou junto com o desenvolvimento de um modelo social e político adequado ao sistema de produção capitalista. E antes que os maniqueístas iniciem a interpelação: não, o capitalismo não poderia ter se desenvolvido dessa forma não fosse uma ética específica. Foi preciso, para além de um modo de produção que potencializasse o acúmulo de riquezas, fabricar um certo tipo de gente mansa, pacífica, adequada ao mundo do trabalho. Para tanto, a mesma lógica matemática que surge para as explicações metafísicas passa a ser aplicada ao cotidiano das cidades, aos hábitos, à produção e ao consumo.

Ao longo dos anos fomos tomando essa forma que temos hoje. Passamos a ter uma visão utilitária sobre tudo, querendo a tudo dominar com nossas explicações rasteiras, como se ao encontrar o sentido matemático para o mundo, o próprio mundo pudesse estar sob controle. Esse parece ser o sentimento que paira a cada debate em um período como o que vivemos agora. O jornalista pede uma explicação de minutos para tudo o que está acontecendo e, em seguida, quer um parecer capaz de dizer para onde o movimento aponta. Trata-se, grosso modo, do velho “de onde vim, para onde vou” que sempre esteve presente, desde o pensamento mítico.

Essa questão é central, e é bom que esteja formulada de forma clara: ao procurarmos enquadrar a movimentação social e política pela qual o país vive agora em uma explicação, compramos o risco da banalização.

É verdade que as manifestações revelam um descontentamento da população e uma falência do sistema de representação política. Há uma crise de racionalidade pelo fato do Estado de direitos não ser capaz de cumprir com aquilo a que se propõe. Os articulistas têm repetido isso como um mantra, mas até que ponto trata-se de uma crise exclusivamente brasileira? Até que ponto podemos associar o descontentamento do povo ao descaso e à corrupção? Esse é o raciocínio de superfície que estrutura os meios de comunicação tradicionais e que está por toda parte: nas músicas, filmes e novelas, nos sermões e discursos políticos, nas conversas de bar e de família, nas fábricas e escritórios, nas ruas e praças. Se todo o público que consome notícia pensa dessa forma rasa, como esperar que a velha mídia se comporte de outra maneira? São empresas que precisam de anunciantes, dizem e escrevem o que o espectador quer ouvir e ler. O jogo é esse. As fontes de informação dizem aquilo que se quer ouvir, assim garantem a audiência. Afirmar isso tem um fundo de perigo, principalmente quando estamos em um período de desequilíbrio como agora, porque essa afirmação significa ampliar as responsabilidades também para os receptores.

A meu ver o mundo inteiro passa por uma crise sem precedentes. Basta lembrar o sintoma de que em um curto período de tempo tivemos manifestações do norte da África, na Europa e nos EUA. Não se trata do simples descaso de nossos políticos ou da ineficácia de nosso Estado. Afirmar isso, no entanto, pode nos encaminhar para uma imobilidade. Se o mundo está agonizando, o que podemos fazer para reverter o processo? Que protesto podemos fazer aqui em nossas cidades que seja capaz de alterar as estruturas do sistema-mundo? Nesse sentido é que entendemos o desespero de uma parcela dos manifestantes nos últimos dias em afirmar que se tratava sim de uma causa única, a do aumento das tarifas. Era uma forma de encontrar utilidade para o movimento, concretude para as ações e, com isso, talvez, gerar um envolvimento político da massa pelo processo e, quem sabe, um surto de politização. Essa é uma forma legítima de lidar com a causa. Se todos nós somos cidadãos forjados à luz do utilitarismo e construímos para nós uma política adequada a nossa superficialidade, então a causa única é uma estratégia inteligente, capaz de, no médio prazo, alterar de fato alguma coisa. E, diga-se, para viabilizar a revogação do aumento da passagem algo de estrutural terá de ser modificado. O fato do prefeito e do governador de São Paulo divulgarem a decisão pelo retorno à tarifa anterior veio com uma pista: o dinheiro terá de sair de algum lugar. Aqui está a resposta para a pergunta que imediatamente foi feita após a declaração dos governantes: “O movimento acabou? Cumpriu-se a meta, agora vamos para nossas casas?”. Parece-me uma oportunidade preciosa para que se pensem questões mais amplas e se avaliem alternativas acertadas para que o custo da não concessão do aumento não seja sentido como um tiro no pé.

O que significa dizer que o gigante acordou? Sejamos diretos, o gigante nunca dormiu. A diferença é que agora estamos com a luz acesa. Uma somatória de fatos resultou nesse estopim. O aumento das passagens diante de um sistema de transporte ruim, a violência desmedida da polícia frente aos manifestantes, o discurso de que não há verbas para subsidiar a tarifa enquanto a organização dos eventos esportivos tem seus orçamentos bilionários, tudo isso fez com que a população tomasse as ruas. Mas isso não significa que sejam as primeiras manifestações políticas dos últimos anos, claro que não. Significa que as manifestações entraram na agenda da grande mídia. E esse fator se deve em grande parte às redes sociais.

De qualquer forma, o problema que temos diante de nós é, antes de tudo, um problema de percepção, uma espécie de cegueira branca. Todos estão surpresos com a inventividade da Multidão. Essa surpresa explica-se pelo fato de que os governantes, jornalistas e articulistas ainda estão presos aos velhos esquemas, aos velhos processos de contestação e de controle. Na pós-modernidade é preciso que se tenha outra percepção. O Estado mudou, a representação política fragilizou-se, os partidos se esvaziaram, a população também está diferente. Só não mudaram os discursos e a percepção. No mundo do trabalho o individualismo tornou-se hegemônico e o coletivismo que sempre caracterizou a política desapareceu. A política passou a ser coisa de profissional, enquanto o desinteresse da população pela coisa pública fez com que a cidadania ficasse restrita aos pleitos eleitorais. Esse processo histórico pode ser visto também pelas lentes do controle, pela forma com que as elites tomaram o Estado para si de maneira a perpetuarem um sistema de injustiças e desigualdade através das instituições políticas.

Soma-se a isso o fato de que vivemos em uma era tecnológica e informacional que propicia a subversão do tempo e contribui para o insulamento do indivíduo. A forma e a velocidade com que as informações circulam nos privam da reflexão e da vivência. Vamos gradativamente nos rendendo a essa velocidade e ao espetáculo da tecnologia de tal forma que não percebemos que se trata de um processo autoritário e sem grandes brechas para a resistência. Então, aqueles que se prendem aos velhos esquemas reivindicam líderes, querem clareza nas propostas e nas estratégias, querem encontrar discursos ideológicos coerentes e unificados. A Multidão é fragmentada, pluralista e se articula através de redes. Não tem coesão interna, é colaborativa e é, principalmente, criativa e resistente. A sua resistência passa, necessariamente, pela comunicação digital. Essa é uma realidade nova que o mundo vive e que ainda não foi compreendida. As tecnologias de informação e comunicação permitiram aos cidadãos ampliar a participação sem que sacrificassem o mundo do trabalho. Não é mais preciso parar de trabalhar para manifestar-se. A articulação em rede garante à população uma pluralidade de perspectivas sobre os fatos e, principalmente, uma velocidade que a mídia tradicional não consegue acompanhar. Os governantes, ainda presos aos velhos esquemas, vêem a multidão nas ruas e a movimentação na Web como a materialização da opinião pública. Cada um que vai a passeata ou dá um clique em um evento da internet representa um voto e exerce pressão na tomada de decisão. Uma prova disso está no fato das autoridades no Brasil aos poucos recuarem em relação ao aumento das tarifas. Nesse sentido, pouco importa a qualidade do discurso de quem está dando volume ao movimento, os governantes têm de responder a isso.

No dia em que essa nova realidade, que articula o real e o virtual, for entendida poderemos ter uma outra democracia, porque será preciso ao Estado, para perpetuar-se, criar dispositivos novos que abrigue os humores da multidão. O déficit das tarifas, agora, parece difícil de ser resolvido porque os técnicos estão insistindo em um modelo que não se sustenta. Os códigos precisam ser revelados e a participação ampliada para que um novo modelo se construa. Isso ainda não foi entendido. Não se quer simplesmente que se diminuam os lucros, se ampliem os subsídios ou se altere a arrecadação. Isso resolve momentaneamente a questão e já implica um grande passo. Mas essa é também uma perspectiva utilitária. O que a multidão está reivindicando, e que só poderá ser percebido com distanciamento histórico, é uma mudança estrutural em um sistema que não se sustenta mais. Não é só o transporte público, mas um conjunto de fatores que têm por princípio a ampliação dos mecanismos de participação e a reapropriação da cidade por parte dos cidadãos.

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