As clivagens políticas em tempos de cólera, por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Tradução do próprio autor do artigo publicado no Periódico Diagonal (Madri, 25/08/2015)

É bem conhecido no Brasil o emblema político que serve para caracterizar as atitudes de uma esquerda que, seja por excessiva ingenuidade, seja por dogmatismo míope, seja por simples teimosia, torna-se presa fácil da direita: é a esquerda que a direita gosta. Romper a naturalidade do consenso conservador exige uma destreza para a qual a singeleza das ideias não é suficiente. É preciso muito mais astúcia. Os vários séculos de vigência de uma ordem social pesadamente segregadora, hierarquizante e autoritária no Brasil, transformou o sistema de valores conservador no termo “natural” ―uma “naturalidade” da qual muitas vezes sequer a esquerda escapa.

Para usar um conceito da linguística, é possível dizer que, no espectro político brasileiro, a direita tem sido o termo “não marcado”, o termo da generalidade, enquanto que a especificidade, a excepcionalidade, a “marcação”, essa não só é o que cabe à esquerda, como também foi sempre o seu estigma e anátema. Não se trata simplesmente da novidade que as utopias carregam. As próprias ideias de justiça social e participação cidadã, a simples fórmula republicana de que todo o poder emana do povo, na falta de uma narrativa da irrupção popular no espaço da governança, ocupam o lugar do anômalo no campo das experiências históricas e no curso do pensamento social no Brasil.

O recente decênio do Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal tampouco fez vislumbrar um mínimo de sentido que fosse para uma ideia tão exótica como a de poder popular ― ou de poder “dos de baixo”. A narrativa (ou contranarrativa) que se vinha gestando desde a segunda metade dos anos 80 sobre a ampliação da cidadania e o fortalecimento institucional do espaço público (mais que tão simplesmente do Estado) ― que animou a primeira década e meia de existência do mesmo Partido dos Trabalhadores ― em algum momento foi amputada, foi como que domesticada e reduzida ao gueto de legitimidade corporativa e clientelista das ONG’s, e estava já definitivamente derrotada, mesmo dentro do PT, quando ele chegou, por fim, ao governo federal.

O neodesenvolvimentismo pelo qual o PT ―ou o que se chamou de “lulismo”― pretendeu então se legitimar como alternativa amena à ordem senhorial não teve jamais coisa alguma a ver com a arquitetura dos direitos, mas sim com uma ideologia hedonista emanada de um certo proletariado urbano (de onde Lula é egresso) cevado nos valores do “milagre econômico” da ditadura militar; uma ideologia lastreada na massificação do consumo e na miragem da suficiência das oportunidades individuais.

Assim, esse projeto encontrou seu curso em uma política de distribuição (e reificação simbólica) de “vales” (qualquer que seja a forma específica que assumiram): “vale automóvel” no lugar de uma política de transportes; “vale habitação” no lugar de una política de gestão do espaço urbano; “vale universidade” no lugar de uma política de educação ― educação não no sentido do treinamento de mão-de-obra, mas no da formação intelectual das pessoas ― e todo um longo et cetera.

Por essa lógica de vales, a “política” torna-se uma política por omissão, expressão elementar de um laissez-faire não muito mais que assistencialista. Dessa maneira, se por força de alguma crise econômica ou mudança de governo, acabam-se os vales, acabam-se também os direitos. A “inclusão” não é muito mais que uma farsa espasmódica. Isso, evidentemente, não chega a ser sequer um projeto social-democrata. É, antes, um glacê social-democrata, onde, à diferença da social-democracia clássica, não entra nem uma pitada de gravame sobre o capital (incluído o financeiro) ou o grande patrimônio.

A crise política recente em que o país se meteu foi deflagrada pela crise de gestão econômica do esgotamento do projeto neodesenvolvimentista do PT: simplesmente não há mais condições, fiscais ou financeiras, sem que se alcance o capital e as grandes fortunas, para continuar distribuindo vales, pelo fato de que tampouco houve uma política da produção mais além da reprimarização da economia. A explícita e contundente viragem neoliberal, com seu mantra da austeridade fiscal, na política econômica do segundo governo de Dilma Rousseff não é mais que o atestado definitivo de que, para o PT, o capital (sobretudo o financeiro) e as grandes fortunas são intocáveis.

Esse compromisso formou parte do nascedouro político do “lulismo”, pouco antes de que o PT chegasse ao governo. Foi o sinal seguro de que o PT alcançaria o governo renunciando ao poder. A política conciliatória de Lula, emanada de um sindicalismo pragmático, é paradoxalmente uma política que foge do poder e o sonega enquanto problema. Talvez o elogio patologicamente obsessivo da gestão, encarnado na figura de Dilma Rousseff, não seja mais que uma outra cara do mesmo fenômeno.

É possível dizer que a astúcia desse “progressismo” foi a de driblar não apenas (mesmo que tão somente em parte) a “ordem natural” da direita, como também a própria esquerda e seu lugar marcado (de excepcionalidade intransponível), colhendo com isso inusitadas vitórias eleitorais. Sua hegemonia ideológica se viu garantida enquanto se pôde sustentar o funcionamento da lógica de vales. A partir das massivas manifestações de junho de 2013, essa hegemonia começou a colapsar vertiginosamente, e emergiu então o descontentamento simultâneo diante da insuficiência das mudanças e diante da estanqueidade política na qual o condomínio da governança se encerrou.

Agora, no momento do que parece ser o esgotamento definitivo do lulismo, o que ele colhe é, de uma parte, a desilusão (ou até mesmo a sensação de traição) por parte dos que aprenderam (falsamente através dele mesmo) a depositar esperanças na transformação social e, de outra parte, uma raiva feroz por parte da direita, esse tão característico ódio senhorial ibero-americano, próximo em sentimento e atitude política ao fascismo, e que animou o franquismo, o pinochetismo e outras tantas “gusanadas” do mesmo naipe.

No último dia 14 de agosto, o instituto Data Popular deu a conhecer uma pesquisa pela qual é possível demarcar dois blocos expressivos de opinião política na população. De uma parte estão os “descontentes”, que são aqueles que nas últimas eleições votaram em Dilma, que em geral aprovam o ex-presidente Lula, que estão frustrados com o atual governo e que, mesmo que em muitos casos sejam favoráveis ao impeachment de Dilma, não acreditam que a direita represente uma alternativa melhor ao país. Eles somariam 44% da população. De outra parte estão os “opositores”, os que não votaram em Dilma, que rejeitam taxativamente o ex-presidente Lula, que, sem rodeios, desejam o impeachment da atual presidente e que, por mera opção ideológica conservadora, são contra qualquer programa social. Esses somariam 36%.

Isso tudo diante de um quadro geral que alerta, conforme outro instituto, o Datafolha, para 71% de reprovação do atual governo (uma taxa que se distribui quase por igual em todos os estratos de renda ― de 75% para os mais ricos até 69% para os mais pobres), índice que ultrapassa aquele da reprovação do ex-presidente Collor às vésperas do seu impeachment em 1992. Pelo levantamento desse outro instituto, 66% da população defende o impeachment da atual presidente.

Confrontando os números, o apoio explícito ao impeachment de Dilma ― uma medida bastante radical que, sem consistente base jurídica, equivaleria a um golpe paraguaio, e que significaria o afastamento do PT do governo― alcançaria quase a metade dos “descontentes”. A repulsa é grande, e a rejeição ao PT só não é mais esmagadora porque a sombra da direita está ali na esquina; uma direita que talvez pela primeira vez, deixou seu cômodo lugar de generalidade silenciosa para tornar-se bastante visível.

Em março deste ano, a parcela mais decididamente opositora ao progressismo lulista convocou suas primeiras manifestações nas ruas. Naquele momento, as fronteiras entre oposição e descontentamento ainda eram mais difusas. Era o momento propício para que a oposição conservadora, com suas imprecações moralistas e muito seletivas contra a corrupção, se recompusesse plenamente no seu lugar de universal, de termo não marcado. Mas não foi isso o que aconteceu.

Mesmo que a lógica dos “vales” que moveu os governos do PT tenha sido comprovadamente insuficiente para mudar os termos da regulação social ― e isso ficou patente nos movimentos de junho de 2013, ainda que o PT se recuse a reconhecê-lo ―, seu efeito simbólico foi relevante. Por uma parte, passou a constituir-se como estofo do artificioso relato das “conquistas” do lulismo, esse castelo de cartas que pode vir a desmoronar com a atual política econômica, sobretudo se sobrevier outra crise global. E de outra parte, atingiu o coração simbólico da ordem senhorial: o fantasma da ascensão de uma “nova classe média”, o aumento do custo da mão-de-obra de “serviçais” em general, além da progressiva presença de toda essa “gentinha” nos espaços do consumo, acertou em cheio as certezas daquela velha ordem segregadora, hierarquizante e autoritária.

A reação à desordem simbólica não se fez esperar, e reverberou em tom de discurso de ódio contra o demônio: o PT e seu malfadado progressismo. Nesse contexto, qualquer pretexto serve. O principal deles (e o mais hipócrita) é a demonização seletiva da corrupção em uma máquina eleitoral que o PT, ao mesmo tempo em que se regalou com ela, não se dispôs e não tratou de mobilizar recursos para reformá-la ― da mesma forma como agiu em todos os demais âmbitos estruturais ― enquanto se aboletava no feliz e duvidoso condomínio palaciano.

As manifestações de rua convocadas pela oposição conservadora no último dia 16 de agosto, cinco meses depois das primeiras, selaram o aprisionamento da direita no estreito discurso do ódio, além da sua inusitada incapacidade de se apresentar na condição de universal, de englobante e de inclusiva de algo mais que não esteja previamente estratificado nos termos da velha ordem. Três dias antes dessas manifestações, uma escandalosa chacina com cara de ação de grupo de extermínio matou aleatoriamente 18 pessoas na periferia pobre de São Paulo. No dia da manifestação nessa cidade, um jovem munícipe quis levar um cartaz de protesto em memória dessas vítimas. Acabou “convidado a se retirar” pelos manifestantes.

Fora as explícitas mensagens de ódio, que não economizaram palavrões, a estreiteza e a hipocrisia dessas manifestações confirmaram o diagnóstico que já dois dias antes fizera o instituto Data Popular, pelo qual 71% dos entrevistados concordou com a assertiva de que as forças de oposição ao governo do PT “agem em interesse próprio e não pelo bem do país”. O particularismo, o perfil bem marcado que a direita brasileira está assumindo no espectro político talvez até possa responder a essa moda multicultural pós-moderna de afirmação de identidades, mas acaba sendo um fenômeno que, no caso da direita brasileira, só encontra comparação próxima no quase caricatural anticomunismo dos militares da última ditadura.

O resultado talvez más relevante das manifestações de 16 de agosto foi que, imediatamente depois delas, as principais forças institucionais de oposição ao governo do PT deixaram de falar de impeachment e adotaram o lema da renúncia da presidente. Os desdobramentos políticos, salvo o fato de que a presidente não tem a menor disposição para renunciar, são ainda imprevisíveis.

O imobilismo político de Dilma e o hermetismo da sua equipe de governo é verdadeiramente exasperante, inclusive para os próprios petistas. Suas poucas iniciativas políticas parecem antes de mais nada erráticas. O fatalismo com o qual acolheram a viragem neoliberal da política econômica e seus efeitos devastadores, tal como no Partido Socialista de François Hollande, não deixa muita esperança de crédito político para sua própria agrupação partidária.

Vai se conformar uma frente de esquerda à margem e a despeito da hoje ainda persistente hegemonia do PT no campo progressista? Assumindo a estreiteza do seu particularismo, a oposição vai por fim se tornar a direita que a esquerda gosta? Ou o discurso do ódio vai se mostrar apenas como um aríete bem armado para tentar abrir caminho para um “pacificador” que buscará restaurar a “normalidade” conservadora? No momento só resta tentear as alternativas possíveis.

Ricardo Cavalcanti-Schiel é antropólogo e pesquisador na Unicamp (Universidade de Campinas)

Redação

3 Comentários

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  1. Análise muito interessante,

    Análise muito interessante, discordo de alguns pontos, o que é obviamente natural, mas há muita sensatez no diagnóstico do momento.

    Discordo dos chamados vales, como foi denominada as incipientes políticas públicas para mitigação dos efeitos da desigualdade social, acredito que esses “vales” seriam necessários como medidas emergenciais para reverter de forma mais rápida os danos causados por séculos de desprezo com as classes sociais mais vulneráveis. Concordo quando diz que deveria haver uma política social muito mais consistente e protegida da mudança de governos, e que o capital (financeiro, acrescento o econômico) deveria participar de forma abrangente na redução da desigualdade.

    Esse é um diagnóstico que há muito tempo deveria ter sido escrito.

  2. 2013

    Sim, em 2013, a esquerda ao governo pediu mais avanços. A direita percebeu a oportunidade, e mudou o enfoque, engrandecendo a cobertura. 

    Agora, depois de março, protesto anti-Dilma virou programa de domingo. Já já vem o tédio. E a direita volta a entender que eleição é coisa chata para daqui a 3 anos. Até lá o pt se vira, ou não, para manter seus cargos. 

    Deixa disso de Lulismo ser a utopia possível. Então vocês acham que a água não está faltando em SP?

  3. Hegemonia do PT

    Acho que uma outra análise proveitosa nesse momento é: por que o PT ainda é persistente a hegemonia do PT no campo progressista, apesar de tudo o que foi dito no artigo?

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