Entre contradições e disfuncionalidades, por Vitor Hugo Haidar da Silva

Nada contra o Ciro. Nada contra ele. Mas gostaria de que essa energia se voltasse a quem de fato nos agride e ameaça.

José Cruz – Agência Brasil

Entre contradições e disfuncionalidades

por Vitor Hugo Haidar da Silva

Não sou petista, nunca fui, embora seja honesto dizer que de 2002 até 2018, ou votei no PT em primeiro ou segundo turno. Na última eleição, me parecia nítido que a melhor opção fosse Ciro Gomes, mas na última semana, irritado com a irritação que se generalizava na sociedade, fiz a escolha baseada em meus critérios e meus valores: fui um dos 500 mil eleitores de Guilherme Boulos. Este preâmbulo pessoal deve servir para que o leitor se situe sobre quem fala.

Feito o preâmbulo, segue a tese: Ciro Gomes deve ser criticado, como qualquer candidato, como qualquer sujeito que se coloque como alternativa política na sociedade. Tenho me assustado com suas posturas irritadiças, desnecessárias, extremamente disfuncionais. Contradições, todos temos. Disfuncionalidades, em política, podem revelar fisiologismo, o que é muito mais sério. Lula é contraditório, o PT é contraditório. Ciro também o é. A contradição é parte do encontro entre as ideias e o mundo real, inevitável se desejamos testar os limites entre o que queremos e o que é possível fazer.

Por exemplo, se acredito em me casar, ter filhos, ter uma casa, uma vida estável, de classe média, ao tentar implementar o plano, posso me ver diante de uma série de contingências que me farão hesitar, me readequar, até mesmo desistir. Chico Buarque dizia: “A gente vai contra a corrente, até não poder resistir, na volta do barco é que sente…”. Garrincha dizia: “Está tudo certo entre a gente, falta só combinar com os russos”. Na roda viva, seja da vida pessoal, seja do futebol ou da política, as contradições se instalam ali no ponto onde a idealização e realidade se encontram.

Até aqui chovo no molhado para o leitor acostumado a política. Talvez continue fazendo de agora em diante. No entanto, a grande questão que se coloca, a meu ver não são as contradições, porque afinal de contas, quem é tão puro assim que não possa ser pego pelo que disse em outros tempos? Quem é tão puro assim que não tenha, para conseguir um objetivo pragmático, cedido àquilo que outrora dizia não ceder. Mas a disfuncionalidade é quando aquilo que digo e aquilo que penso, nitidamente estão em conflito, de tal maneira que o outro que me escuta, pensa: esse cara está ficando doido?

É aqui que entra a questão discursiva. É aqui que a linguagem se coloca como parâmetro para investigar se o que digo e o que faço estão em contradição ou consonância. Quando um político afirma: “Ainda bem que a pandemia surgiu para barrar um processo de desmonte do estado”, parece disfuncional, mas é contraditório. A gente até pode se incomodar com Lula por ter dito algo neste sentido, mas com um pouco de esforço é possível adentrar a opacidade dos sentidos e dele extrair aquilo que se pretende dizer. Afinal, sem a pandemia, falava-se inclusive em privatizar o SUS, bem como se falava em “vouchers escolares”. Absurdos dos tempos neoliberais, em uma sociedade que não aguentaria tais decisões.

Mas quando um político afirma assim: “Lula não tem projeto para o país, é um personalista interessado no poder” ou “A jagunçada do PT que me agrediu” ou “O PT acabou com a economia do país” ou ainda “É uma ilusão que houve esse tempo que o Lula fala, de bonança”. Tudo isto não parece ser aquilo que de fato este sujeito pensa. Isto porque, estas afirmações ou não são inteiramente corretas, quando confrontadas aos fatos, ou simplesmente, são falseamentos, negacionismo.

Não cabe aqui desconstruir estas afirmações, mas cabe chamar a atenção para tantas outras que vão se avolumando à medida em que as tensões se tornam maiores. Em entrevista à Eduardo Moreira, Ciro diz algo mais ou menos assim: “Aceito o apoio de Lula e nego o de Bolsonaro. Lula está no campo democrático. É só um velho caduco.” Isto logo depois de apelar à inteligência, à unidade nacional, à construção de uma frente ampla pautada em projeto. A disfuncionalidade a que me refiro, à despeito da boa vontade com que é tratado nesta entrevista, nasce deste tipo de afirmação. Ora, como é possível, ao eleitor médio, simpático à Lula se convencer de que Ciro é a melhor opção? Como é possível a certos segmentos da sociedade acreditarem que alguém que agride aquele de quem eles gostam, desta forma, possa ser uma opção. Isso é crítica ou ataque? Como convencer setores esclarecidos que Lula não deve ser parte de um projeto que concilie os opostos, se Lula foi até hoje o maior conciliador que existiu?

Ao Gregorio Duvivier, após o polêmico programa do ator, humorista e literato (sim, quem se forma em letras pode receber essa denominação), por sua vez, Ciro responde assim: “Pode falar de mim, eu aguento. Agora, o Cabo Daciolo…”. Na desculpa de defender Cabo Daciolo, o cristianismo brasileiro, os negros, pobres e bombeiros, Ciro começa dizendo, que faz essa defesa aos outros e não em nome dele mesmo. Tudo muito nobre. Adentrando a opacidade do discurso, podemos cotejar que Ciro quer dizer “Não aguento estas piadas, estas críticas. Por isso, vou criar uma argumentação, rotulando Gregório de preconceituoso, fingindo que defendo Cabo Daciolo, para defender a mim mesmo”. Isto é disfuncional. Isto é afirmar uma coisa, mas pensar outra.

Porque digo isso? Porque Greg não ofendeu Daciolo, mas sim o criticou. Greg também fez piada com o cristianismo. Ora, até o Papa faz piada com o Cristianismo, ou não foi Francisco quem disse há pouco tempo: “O problema do Brasil é muita cachaça e pouca reza”. Ou não é típico de religiosos bem resolvidos brincarem com suas crenças. Qual o problema? Agora, é inegável que Cabo Daciolo é confuso e mistura religião e política e muitos de nós, de esquerda, mesmo religiosos, não gostamos disso, porque sabemos onde pode terminar. Esta é a crítica do programa.

Por fim, Ciro vive se defendendo que foi para Paris porque a eleição estava definida. Até pouco tempo, eu mesmo deixava de lado este fato, em nome do diálogo, da unidade e das boas ideias do eterno candidato. Mas vamos lá. Todos nós sabíamos que seria quase impossível (ou completamente impossível) que diante da realidade que se apresentava virar a campanha a favor de Haddad. Mas quem o fez, o fez primeiro, porque era imperativo (não politicamente, mas moralmente) fazê-lo. Segundo, porque diminuir a vitória era importante para que não acabássemos na “ponta praia”. Estava em jogo o respeito pelos nossos corpos, pelos corpos de muitos brasileiros que estavam ameaçados.

Ora, ora. Cada um tem direito de lutar as lutas que considera justas. Mas não tem o direito depois, de dizer, que suas omissões sejam simplesmente aceitas, como se nós, então, meros eleitores, devêssemos aceitá-las. Não dá. Ciro não é inimigo. Mas Ciro, quando Moa do Katendê (como símbolo) precisou, onde estava? É aí que Boulos ou Haddad se mostram gigantes. Haddad não nos abandonou ou desistiu, contra tudo e contra todos. Boulos, abriu mão de sua candidatura em nome de uma unidade.

Ciro tem todo direito de seguir suas convicções. Só não tem o direito de se arvorar como moralmente superior a ninguém. Ele tem direito a ser contraditório. Mas como representante político que se coloca na sociedade não pode ser disfuncional. Em suma, enquanto Lula, embora tenha uma forte personalidade, a coloca em nome da frente ampla, bem como representa o partido mais capilarizado e orgânico da sociedade brasileira, Ciro tem se resumido a ele. O Projeto Nacional de Desenvolvimento que ele diz defender e que nos seduz (não muito diferente de outros projetos discutidos há mais de 70 anos no Brasil), parece uma disfuncionalidade, quando ele usa, discursivamente, tantas vezes o termo “eu”, “eu”, “eu”.

Nada contra o Ciro. Nada contra ele. Mas gostaria de que essa energia se voltasse a quem de fato nos agride e ameaça. Este texto, mais que crítica, é um pedido: Ciro, suba ao alto da montanha com Daciolo e medite. Mantenha sua candidatura se for o caso, mas reflita sobre como neste momento precisamos, como sociedade, de menos “eu” e mais “nós”. Por mais difícil que seja.

Vitor Hugo Haidar da Silva, 36 anos, Bragança Paulista  
Professor de Língua Portuguesa e Literatura
Mestre em Linguística Aplicada pelo IEL – UNICAMP
Doutorando em História, política e bens culturais – CPDOC-FGV

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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