Sentimentos morais, por Saturnino Braga

SENTIMENTOS  MORAIS

por Saturnino Braga

A moral é um conjunto de costumes, comportamentos, deveres, aprovados pela sociedade, no pressuposto implícito de que a sua observância propicia a boa convivência, o entendimento e o respeito entre os seres humanos.

Essas regras variaram no tempo e no espaço das diversas sociedades da Humanidade. Houve tempo, por exemplo, em que o empréstimo de dinheiro a juros, no Ocidente, era condenado como usura, pecado ligado à avareza. Era um preceito da religião católica mas com certeza fundava-se na sabedoria social da época que enxergava no abuso daquela prática graves riscos ao entendimento e à convivência entre os membros de uma comunidade.

O calvinismo mudou tão completamente esta visão que o Ocidente findou por aprovar e até considerar a atividade dos banqueiros como moralmente respeitável, e até, para muitos, como sinal de beneplácito divino.

Séculos de prática desse capitalismo liberal, com crescente predomínio dos bancos, conduziram hoje a um quadro aterrador sob o ponto de vista da harmonia social, ou do que se pode julgar como propício a uma boa convivência entre os membros de uma sociedade:

Um por cento de todos os habitantes do planeta detêm a metade de toda a riqueza do mundo! Os dez por cento mais ricos ficam com 90% da riqueza e os 50% mais pobres com menos de 5%! É um quadro repugnante de privilégios de direitos e poderes que faz lembrar, pela gravidade, aquele dos últimos tempos da nobreza que levou à hecatombe da Revolução Francesa. Estatísticas disponíveis mostram também que um quadro semelhante de desigualdades e privilégios abusivos havia no início do século passado, antes dos massacres das duas grandes guerras e da Revolução Soviética.

Quadro profundamente ameaçador, muito preocupante sem dúvida. Pois não será isso tudo uma brutal agressão aos sentimentos morais da Humanidade? Não terá um potencial de reação violenta imprevisível como teve no passado? Ainda que essas pessoas privilegiadas não sejam vistas como desonestas e que suas atividades sejam legais, só eventualmente resvalando para a trapaça, ainda assim, o resultado do funcionamento do sistema dominado por elas, não tem uma evidência insultuosa e atrevidamente injusta? Não será tudo isso uma infernal armadilha, ou mesmo uma monumental roubalheira, divertida pelos smartfones e sancionada pela lei ditada por eles, os mais ricos?

Fico a pensar em toda essa grandiosa e escandalosa operação de combate à corrupção em curso, que está a destruir a economia brasileira, em nome de uma revolução saneadora, operação que desrespeita preceitos jurídicos e produz uma catadupa de delações espontâneas-forçadas, com o fim, aplaudido pela opinião, de acabar com as praxes criminosas da nossa sociedade; fico a pensar na pequenez desse resultado, embora importante para o Brasil, diante da continuada megaroubalheira dos bancos cada vez mais ricos e poderosos, cobrando juros cada vez mais altos, pagos obrigatoriamente por todos os trabalhadores brasileiros, por recomendação de uma ciência econômica que, tal como a lei deles, é ditada por esses donos da riqueza e do poder em todo o mundo.

Fico a pensar e a acreditar que, apesar do fascínio fútil dos smartfones e, de outro lado, mais grave, apesar do radicalismo hediondo de algumas reações contra esses que praticam essa bruta ladroagem, apesar dessa leviandade e dessa tensão toda, ainda há uma reserva de bom-senso na Humanidade, suficiente para encontrar caminhos de rejeição a esse sistema insustentável, que, aliás, tem muito a ver com a insustentabilidade da depredação do nosso querido planeta.

Acho até que é uma obrigação acreditar nessa reserva de razão humanística. Uma obrigação como a de não desistir e continuar vivendo e lutando, mesmo quando tudo parece levar ao absurdo do suicídio coletivo.

Não acontecerá.