As dificuldades dos caminhoneiros

Por Luiz Henrique Mendes, da Agência Dinheiro Vivo

Nassif, o Fantástico de ontem exibiu importante matéria sobre a realidade dos caminhoneiros. Abaixo, crônica que escrevi num dos capítulos do meu TCC “Relatos de Boleia: crônicas de uma viagem”, que trata da vida dos caminhoneiros. 

Link para a matéria do Fantástico: http://glo.bo/fvREyK

Introdução de “Relatos de Boleia: crônicas de uma viagem”*

Sábado, 22 de outubro de 2005. São nove horas da manhã e Luiz Claudio, 46, acaba de ser enterrado.

Antes da chuva que ameaça cair sobre o Cemitério de Embu-Guaçu – um pequeno município ao sudoeste da Grande São Paulo, os familiares, ainda atordoados face à morte repentina, retornam para suas casas.

Conhecido entre seus colegas de trabalho como Moscou, Luiz Claudio morreu fazendo o que mais sabia: dirigindo um caminhão, ofício que exerceu desde o ano de 1988.

Caminhoneiro autônomo, Luiz Cláudio viu sua família pela última vez numa segunda-feira, 17 de outubro, quando deixou dois de seus três filhos, Thamiris e Lucas, no curso de inglês, partindo para aquela que seria sua última viagem. Com seu Volkswagen 17210, rumou à Brasília, capital da República.

NobaNo baú de seu caminhão, um produto capital ao século XXI: informação. Luiz Cláudio transportava revistas das mais diversas editoras – das frivolidades produzidas pela Escala aos factóides da revista Veja. Em resumo, uma profusão de informações e desinformações, tudo num só caminhão.

O transporte de revistas fez parte da rotina de Moscou a partir do ano de 2001, quando passou a oferecer seus serviços à Distribuidora Fernando Chinaglia.

O currículo deste paulista natural de Itapecerica da Serra, no entanto, não se resume às publicações editoriais. Luiz Cláudio já transportara diversas mercadorias: alumínio, para a gigante canadense Alcan; soja, para o agronegócio do centro-oeste brasileiro; açúcar rumo ao porto de Santos; cerveja para a AmBev, entre outras mercadorias. Convenhamos, um conhecimento invejável da cadeia produtiva brasileira.

Há ainda outro currículo na carreira do caminhoneiro Luiz Cláudio em nada invejável: o de flertes com a morte.

Às vésperas das eleições municipais de 1996, Luiz Cláudio transportava cervejas. Era noite e ele estava na capital do Paraná, Curitiba. Fazia breve refeição num restaurante quando foi abordado por homem, que lhe pediu uma dose de uísque. O homem bebeu sua dose e deixou o local.

Em questão de minutos, o homem voltou, desta vez com um objetivo: a bolsa que Luiz Cláudio trazia na cintura – as famosas pochetes. Seria uma rápida abordagem, afinal, não se espera reação de alguém que tenha consigo um revólver. Não foi o caso. O caminhoneiro resistiu. E pagou o preço.

Revólver na mão, o homem não se ressentiu e atirou naquele que havia lhe pago uma dose de uísque. Resultado: quatro tiros na região do abdômen e um no braço esquerdo. O assaltante, talvez a misturar sentimentos de arrependimento e falha, deixou o restaurante, abrindo mão, inclusive, da bolsa de cintura que o motivara a proceder aquele ato.

Luiz Cláudio foi levado ao hospital e submeteu-se a uma delicada cirurgia, bem-sucedida, é verdade. Por precaução, os médicos decidiram não retirar a bala que atingiu o braço esquerdo, por estar num lugar de remoção arriscada.

Para o alívio da professora Sueli, a esposa, ele recuperou-se. Afora a enorme cicatriz que resultou da cirurgia no abdômen, o braço imobilizado e a posterior fisioterapia, ele já dizia-se pronto para outra. Aproveitou, no entanto, o tempo em que esteve afastado do trabalho para curtir os três filhos, em especial o caçula, que tinha apenas um ano de vida.

Luiz Cláudio voltaria à rotina das estradas quatro meses depois, com a certeza de que o episódio em Curitiba havia sido um acidente de percurso, coisa pouca.

Entre os anos de 1997 e 1999, a carreira de Luiz Cláudio o obrigou a estar mais tempo longe da família. Foi nesse momento em que ele transportou soja. Durante o período da safra do grão, chegava a ficar três meses sem voltar para casa. Era, no entanto, o trabalho disponível.

Coisa diferente ocorreu no ano 2000. Não havia trabalho disponível. Sendo assim, Luiz Cláudio ficou desempregado pelo desgastante período de 12 meses. Para um trabalhador, não há coisa pior que o desemprego e, naquela altura, ele não era exceção no país – o período bateu recorde nos índices de desemprego.

Com a ajuda de Carlos Eduardo Cau, empresário do município de Embu-Guaçu e um amigo de longa data, que inclusive ajudou Luiz Cláudio a adquirir seu primeiro caminhão, Moscou conseguiu uma vaga na transportadora paulista Transalino, que prestava serviços para a Fernando Chinaglia. É o início das viagens transportando revistas.

Seguiu-se um período de estabilidade na vida do caminhoneiro. O momento permitiu que Luiz Cláudio retomasse os projetos de construção de uma casa maior. Com algum esforço, a casa começava a ser erguida.

Mas eis que a morte resolve bater a porta do caminhoneiro, mais uma vez. Era o ano de 2002, no Rio Grande do Sul. Luiz Cláudio orgulhava-se sobremaneira do baú que havia comprado, ideal para o transporte de revistas. Era um dos melhores feitos no Brasil, dizia ele.

O que ele não sabia é que solidez daquele baú se desmancharia. Naquela viagem, que tinha como destino final a cidade de Porto Alegre, ele teve o caminhão roubado. Tratava-se de uma quadrilha especializada, que buscava cargas valiosas.

Luiz Cláudio tentou argumentar que seu baú transportava apenas revistas, mercadoria que não é considerada valiosa pelos assaltantes do tipo. Eles nãos sossegaram.

De início, eram dois assaltantes. Um deles passou a dirigir e o outro manteve o caminhoneiro sobre a constante ameaça, dando-lhe coronhadas. Quadrilhas deste tipo, no entanto, costumam ser muito bem organizadas. Um dos assaltantes conversava por meio de um rádio com outros homens. Foi aí que Luiz Cláudio percebeu que, além dos dois que estavam consigo no caminhão, haviam integrantes da quadrilha fazendo a escolta de seu caminhão.

As perspectivas naquele momento não eram nada animadoras. Das conversas via rádio, ele percebeu que a intenção da quadrilha era “apagá-lo” logo que estacionassem o caminhão em galpão combinado.

Acontece que o assaltante que dirigia perdeu o controle sobre caminhão, que acabou capotando. Sendo assim, os planos tiveram de ser alterados. Resignados, os dois assaltantes, face ao acidente, tiveram de fugir do local. Os dois entraram no carro que os escoltava, uma Blazer cor preta, e deixaram a região.

Como resultado, Luiz Cláudio escapou da possível concretização dos planos da quadrilha. O que não resistiu foi o caminhão, completamente destruído. Como a grande maioria dos autônomos, ele não possuía seguro. Teria de arcar com a reconstrução de seu veículo.

Com isso, a construção da casa foi paralisada, para nunca mais ser retomada. É uma velha máxima do mundo dos caminhoneiros, segundo a qual “o caminhão dá, mas tira com incrível facilidade”. Isto porque as peças de um caminhão são extremamente caras.

No caso de Luiz Cláudio, a situação era mais dramática, pois não eram apenas algumas peças. Devido à capotagem, tanto a cabine como o baú ficaram inutilizáveis. Perda total. Mas, ao contrário da casa, o caminhão não poderia ficar parado, deixar sua reconstrução para depois. Ele era o instrumento de trabalho, de onde o caminhoneiro tirava seu sustento.

Procura daqui, procura dali, e a cabine foi trocada por uma nova. À época, custou 13 mil reais, uma fortuna. Sueli, a esposa, considerou um excesso, preferindo que o marido instalasse uma cabine usada, por certo mais barata.

A reconstrução ainda não estava terminada. Faltava substituir o baú. Moscou preferiu uma carroceria simples – o preço de um baú era demasiado caro para quem já havia gasto os tubos com uma cabine.

Sem o baú, no entanto, Luiz Cláudio ganhou algumas horas a mais de trabalho. Com a carroceria, ele passou a utilizar lonas, tendo que instalá-la para proteger as revistas a cada viagem. Não bastasse, nas transportadoras, dá-se preferência ao caminhão baú, fato que o tirava por muitas vezes das viagens cujos fretes eram melhores.

Devido às dívidas decorrentes da reforma do caminhão, a vida seguiu mais difícil. Para compensar a situação, Luiz Cláudio tinha de fazer mais e mais viagens, uma seguida da outra, o que levava a um stress e cansaço absurdos para qualquer corpo humano. Inevitavelmente, para manter o ritmo, ele teria de apelar para os famosos rebites.

No ano de 2004, na Freeway, uma rodovia catarinense considerada perigosíssima por muitos dos caminhoneiros, Luiz Cláudio colidiu com uma carreta. Foi a última vez em que dirigiu seu caminhão, um Mercedes-Benz 1519.

Já desgastado pelas constantes quebras e pela situação financeira desconfortável, pensava em desistir do caminhão. Ao filho mais velho, comentava sempre sobre a possibilidade de montar algum comércio, quem sabe uma borracharia, ou mesmo adquirir um caminhão basculante para que pudesse fazer viagens mais curtas e ficar em casa todos os dias. Não foi o que aconteceu.

Caminhoneiros, via de regra, são aficionados. Luiz Cláudio não era exceção. Desta vez, no entanto, ele não tinha condições financeiras para mais uma reforma.

Foi o que o fez aceitar a oferta para dirigir o caminhão do amigo Carlos Eduardo Cau, que àquela altura havia agregado cinco caminhões na transportadora de revistas. De amigo, Fumaça, como era conhecido, passou a ser patrão.

O fato de não trabalhar mais com caminhão próprio, por sua vez, acabou por reduzir o rendimento médio do caminhoneiro. Agora, ao invés de receber integralmente o frete, seu salário era uma comissão de 10% do que o amigo-patrão recebia. A vantagem, no caso, era a de não ter de se preocupar com a cara manutenção a que um caminhão está exposto, coisa que Luiz Cláudio já estava cansado de fazer e, principalmente, gastar.

Na direção do caminhão do amigo, um Volkswagen 17210, o ritmo de trabalho continuou alto e o cansaço, cada vez mais visível.

Em 15 de outubro de 2005, aproveitando que a esposa não estava em casa, Luiz Cláudio teve uma conversa com seus três filhos. Pediu a eles que relevassem o humor da mãe, impaciente nos últimos meses por conta de um concurso que prestara e, caso não fosse aprovada, corria o risco de ficar sem classe para lecionar no ano seguinte.

Durante a conversa, o caminhoneiro pôs-se a chorar, tal qual uma criança. Em lágrimas, disse aos filhos que as coisas melhorariam. Naquele momento, a família tinha sérios problemas financeiros. O telefone, cortado, já não recebia mais ligações. Emocionado, sentenciou aos filhos, como que estivesse se despedindo: “solitário, eu não sou nada. Com vocês, sou tudo”. No dia seguinte, um domingo, Luiz Cláudio almoçou pela última vez com sua família. Com a esposa e os filhos, à noite, foi à missa, encerrando assim as atividades do dia.

Na segunda-feira, 17, deixou os filhos no curso de inglês e partiu. Daquele momento em diante, a família não mais teria notícias de Luiz Cláudio, ao menos com ele vida. Ao que tudo indica, o trecho de ida seguiu o script. O caminhoneiro descarregou as revistas em Brasília na quarta-feira e iniciou o trecho de volta.

Era quinta-feira e Luiz Cláudio já havia cruzado os estados de Goiás e Minas Gerais. Por volta das 22 horas, via Anhanguera, município de Orlândia, colidiu fortemente com outro caminhão, um Mercedes-Benz amarelo, modelo 1515.

O serviço médico da rodovia veio rápido, procedendo à transferência do caminhoneiro para o hospital mais próximo. Já na ambulância, a caminho do hospital, Luiz Cláudio não resistiu. Na madrugada de quinta-feira, a esposa foi avisada da morte do marido.

A distância entre Orlândia e Embu-Guaçu tornaria a espera pelo corpo ainda mais dura para os familiares. Somente na noite de sexta-feira, 21, é que o corpo de Luiz Cláudio chegou.

No dia seguinte, 22 de outubro de 2005, meu pai foi enterrado. 

*Introdução do livro-reportagem “Relatos de Boleia: Crônicas de Uma Viagem”, escrito em 2009 como TCC do curso de jornalismo da PUC-SP. O trabalho foi orientado pelo professor Marcos Luiz Cripa.

Luis Nassif

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