A transfixação mágica no Paraná, por Rui Daher

por Rui Daher

Caía a tarde feito um oleoduto e o carro se aproximava da Refinaria Presidente Getúlio Vargas que a história não conta, mas foi assassinado pelo acordo secular de elites. O mesmo que ora se faz com outro estadista que quis construir nação menos injusta e mais soberana.

Chegava a uma cidade pequena, próxima de Araucária, no Paraná. Deveria sugerir a uma plateia de agricultores como produzir mais, melhor e com menor custo. No aplicativo havia selecionado Dinah Washington. Ela cantava Stormy Weather e me lembrava de como as tempestades políticas chegam ao Brasil da mesma forma que os aguaceiros chegam às encostas de morros e fazem desmoronar os sonhos de quem ali vive.

Hotel modesto, estaciono o carro. O manobrista veste terno, camisa e gravata pretos. Não abre a porta do carro nem se oferece a carregar minha mochila. Não me importo. Deve estar mal-humorado.

No lobby, estranho os dois funcionários da recepção com as mesmas feições e vestes do manobrista. Penso: uniformes e gêmeos. Tez morena, lábios finos, olhos atilados triunfantes, cabelos negros alinhados, sorrisos disfarçados, entreolham-se vaidosos. Um deles aperta a gravata sobre o colarinho:

– Já esteve hospedado aqui?

– Não.

– Preencha a ficha completa.

Noto oito folhas à minha frente. Dou uma passada de olhos e pergunto:

– Mas tudo isso, por quê?

– Normas do hotel.

– Há informações absurdas diante do que exige a lei. Vivo me hospedando em hotéis, vou preencher apenas o que sei necessário.

Olham-se. Um deles apoia-se no balcão e quase encosta em meu nariz:

– Não preenche, não assina, não fica. É o único hotel em 50 quilômetros. E todos exigirão o mesmo procedimento. Foi padronizado. O senhor está no Paraná. Aliás, pagamento antecipado.

Tenho uma hora para chegar ao local da palestra. Gastarei 50 minutos preenchendo a ficha. Sobrarão dez minutos para o banho, trocar de roupa, colocar o endereço no Waze, e partir. Chegarei atrasado ao evento.

Topei. Não havia rodado quase 500 quilômetros para dar o cano. Facilitava o fato de as perguntas serem na forma sim ou não.

Já votou no PT? Reconhece em Lula e Dilma ladrões? Tem em casa alguma obra de Marx? Concorda que Veja e Globo News representam o melhor do jornalismo feito no país? Sabe que José Dirceu matou Celso Daniel e José Genoíno é podre de rico? Tivesse oportunidade, que lábios beijaria, os da antipática Angelina Jolie ou do probo Gilmar Mendes?

Percebendo estar em hotel de alguma seita, tal qual goleiro que na hora do pênalti escolhe um dos cantos para se jogar, sabedor do atual clima político do país, em todas respostas arrisquei a direita. Deixei em branco os “lábios que beijei”, aí não dava. Felizmente o inquiridor não percebeu.

Um deles me seguiu até o quarto. Em cada andar, nas paredes do patamar, uma foto enorme dos gêmeos em diferentes posições, mas com faixas presidenciais verdes e amarelas no peito. Sobre a cama, a mesma foto. Seriam mesmo eles os ali retratados?

Sou medroso. Confesso já ter visto mula-sem-cabeça quando visitei o Congresso Nacional, em Brasília. Na dúvida sobre os rituais da seita, cobri a foto com um lençol. Também decidi que lá não dormiria de jeito nenhum. Terminado o evento, voltaria para casa, em São Paulo.

Somente no salão da palestra conheci o professor de agronomia que havia me convidado. Surpresa. Reproduzia à perfeição o pessoal do hotel. Quadrigêmeos?

Compilara 58 assinaturas de presença. Peço para ver. Nova surpresa. Todas iguais, rabiscos em formas diversas das letras SM.

– Vamos lá, Doutor Rui. Vamos instalar o PowerPoint?

– Não uso, nunca usei.

– Como? Mesmo depois do sucesso de nosso Procurador? Isso não é bom. O pessoal daqui não vai gostar.

Começo a me irritar com toda a situação.

– Pois é, não trouxe. Desistimos? Pode chamar outro leitor de slides.

– Não dá mais tempo. Vai sem PowerPoint mesmo.

– Bom.

– Amigos e amigas agricultores paranaenses. A comunidade Sertão Modelador, SM, neste momento em que estamos prestes a salvar o Brasil da corrupção introduzida na pátria pelo Partido dos Trabalhadores e os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, traz o consultor em agronegócios, Rui Daher, que irá falar sobre como aumentar a produtividade de suas lavouras e diminuir os custos de produção com novas tecnologias. Vamos ouvi-lo.

Fico mudo. Estou travado. Não consigo começar. Todos me olham ansiosos. O apresentador vai ficando cada vez mais aflito. Um rumor baixo começa a percorrer o salão. Os presentes, mesmo mulheres, crianças e cachorros frequentes em palestras nas zonas rurais, têm feições idênticas às dos funcionários do hotel. Como fossem bonecos de cera saídos da mesma fôrma. Lábios finos, olhos atilados, cabelos negros bem alinhados.

Realismo mágico? Afinal, havia relido Gabo e Rosa, recentemente. Traquinagem de Darcy Ribeiro sempre em minha cabeceira? O filme de Luís Buñuel, relembrado por um amigo? Ibsen, Kafka, socorro, onde estou?

O que aconteceu com o estado do Paraná? Onde os descendentes de alemães, suas loirinhas lindas, narizes aquilinos, feições gansolinas? E as italianinhas gostosas? Cadê os musculosos campônios vindos dos pampas e os Vênetos vermelhões das colônias em serras gaúchas?

Fujo em desabalada carreira. Lembro o final de um filme dos Irmãos Cara-de-Pau. No carro, o retrovisor não indica nenhum farol atrás de mim. Só paro em um posto de gasolina, depois de cruzar a fronteira do Paraná com São Paulo.

– Sei que é proibido em estradas, mas sofri uma violência muito grande que prefiro não narrar, o senhor não me arruma uma cervejinha.

– Pela sua palidez, vai precisar mais de uma e ainda uma cachacinha. Se ficar mal para dirigir, durma aqui. É mais seguro.

Um rapaz ao meu lado, boné da Scania, ouve a conversa, vira-se para mim, com forte sotaque carioca:

– Senhorrrr, apossssto que tá vindo do Paraná.

Balanço a cabeça positivamente.

– Soube não? Transssfixação Mental e de Imagem.

– O que é isso?

Seu companheiro, pelo jeito paulista, entra na conversa. Já estou na segunda dose de Seleta.

– Um laboratório de Curitiba que inventou. Na medicina o termo é usado para atravessar de um lado a outro, perfurar, muito usado em amputações e suturas.

– Cara!

– Pois é, caras foram os que inventaram um método de amputação mental que, tão intenso, vai modificando não só o pensamento, mas também a fisionomia de tudo o que for humano. Eu e o amigo aqui, depois que soubemos disso, nunca mais aceitamos carga para o Paraná.

– Puta loucura! E se levarem o método para outras regiões do Brasil?

– Já chegou. Não viu o Dória?

– Merrrmão, nos Estados Unidos, muita gente tá ficando vermelhona, plastificada, cabeleira dourada e com gestos do Mussolini. E olha, nem precisa serrr branquelo, não. Negro fica, chicano tamém.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

View Comments

  • Simplesmente genial. Com

    Simplesmente genial. Com perdão de meus amigos paranaenses que muito admiro pela humanismo. A corte da república do Paraná trás efeito trágico para imágem e povo do Brasil

    • Prezado Serralheiro,

      Tenho muitos amigos no Paraná, mas vejo-os adquirindo uma atitude justiceira cega e hipócrita, pois com o mesmo alvo. Abraço.

  • Fugir desabalado do Paraná para... São Paulo. É triste. É duro.

    Fugir desabalado do Paraná para... São Paulo. É triste. É duro.

    Ninguém merece. Aposenta e vai morar numa prainha do Nordeste, Rui.

    • Vai Rui.

      No Nordeste certamente encontrará pessoas simples e legítimas. Vai Rui e continuas a escrever textos maravilhosos como este. O Paraná, desculpem-me os paranaenses, transformou-se numa sede de Neo-nazistas e Fascistas. Talvez se explique pela colonização alemã e italiana!

      • Diógenes,

        como disse a outro companheiro, viver não daria, mas só o fato de sempre visitá-los me dá alguma esperança no Brasil. Obrigado e abraço.

    • Francisco,

      aposentado já sou, mas o valor você pode adivinhar. Deveria ter feito isso quando mais jovem. Ainda assim, a barra está tão pesada que penso nisso. Abraço

  • a transfixação....

    Caro sr. Rui, excelente texto. O pior é que esta lavagem cerebral está mesmo acontecendo novamente. "Lavagem" no sentido literal. Quanto à sua viagem de carro, entre PR e SP, esqueceu de mencionar (se a viagem não foi pela BR116), os "526" pedágios. Inclusive aquele que fica no PR e passado 2 Km da divisa, o outro em SP. Bagatelas de 20 reais, cada. "De volta ao futuro". Somente o Brasil consegue estas proezas. abs.   

  • tempos dificeis!

    aqui no paraná tá cheio de gente, que só abre a boca para falar mal do pt. e não dizem uma palavra do governador.

  • A transfixação mágica no Paraná, por Rui Daher

    Caro Ruy:

    Genial. Vem pro Nordeste sim. Aqui tem soi e calor o ano todo de Porto Seguro (BA) a São Luís (MA). Que o diga Pedro Àlvares Cabral, padres Manoel da Nóbrega, José de Anchieta e Antonio Vieira que por aqui passaram. Ah, deixa os espelinhos portugueses para o pessoal que não entendeu, tá?  rsrs

    • Luiz,

      já estou sonhando com minha viagem ao Nordeste no fim do mês. Não será para o maravilhoso litoral que você menciona, mas para Juazeiro/Petrolina, às beiras do Velho Chico, para olhar suas águas e me embebedar com a cultura mais instigante deste país de Darcy Ribeirro. Abraço. 

  • os holofotes para o patinho feio virar cisne começaram se apagar

    A ignorancia da população fez com que o Juiz Sergio Moro e aos demais Patinhos feios do Paraná, usassem a lava-jato como holofote para tentarem virar Cisnes da realeza. No entanto, como está acontecendo com todos os "herois dos patos do Golpe", que por nunca se interessarem pelo historico politico do Brasil, sairam as ruas contra a Dilma e contra o PT;  o juiz Sergio Moro, ja começa a ver seus 15 minutos de fama se acabando; pois UM FATO CURIOSO ACONTECEU NESSA SEMANA QUE PASSOU. Imagine que "A GLOBO QUE FOI PARCEIRA O TEMPO TODO DO SERGIO MORO, seja através do MORODUTO onde O JUIZ MORO DEIXAVA VAZAR APENAS AS PARTES DAS ACUSAÇÕES AO PT e NÃO DEIXAVA VAZAR AS ACUSAÇÕES CONTRA O PSDB; ou NA PERSEGUIÇÃO AO LULA E A DILMA, quando 'FIZERAM UM CARNAVAL COM a CONDUÇAÕ COERCITIVA DO LULA, ou quando FIZERAM O MESMO CARNAVAL EM RELAÇÃO AS VERGONHOSAS GRAVAÇÕES DAS CONVERSAS DO LULA, ONDE NÃO MOSTRAVA NENHUM ENVOLVIMENTO DO LULA COM CORRUPÇÃO E MUITO MENOS COM A CORRUPÇÃO NA PETROBRAS'; agora 'NÃO SÓ NÃO ACEITOU FAZER O FILME DO SERGIO MORO', como TAMBÉM ORIENTOU AOS SEUS ATORES A NÃO ACEITAREM CONVITES PARA PARTICIPAR DO FILME DO SERGIO MORO". """"""NÃO É ESTRANHO QUE A GLOBO, que SEMPRE ENDOSSOU AS AÇÕES ATNTI-ETICAS DO SERGIO MORO, esteja agora TENTANDO SE LIVRAR E SE AFASTAR DO SERGIO MORO?"""""""""""

    • É isso, Gesiel. Me fez

      É isso, Gesiel. Me fez lembrar um excelente comentário que li neste espaço à época da "louvação" ao menino pobre que salvou o Brasil em seus timidos passos na direção de uma "carreira solo". Disse o comentarista que se a criatura (o "herói" da ocasião) ousasse ir um pouco além do enredo do seu criador (a midia, destaque pra Globo) seria provavelmente duramente advertido com algo assim: "sabemos quem é você, você e o herói deles, NÃO NOSSO, portanto, não vá além do script".

       

       

       

      • Gesiel e Jaíde,

        gostaria muito de que assim fosse. Mas o script só acaba com a prisão e a inelegibilidade de Lula. Pena, mas ando muito cético e muito assustado com o tamanho da conspiração. Abraços

  • republica de banana

    moro  é não vejo tudo, duro que governador nada de braçada aqui no Paraná, a Record, Paraná tem um jornalista rola bosta, que substituiu a Joyce,  à Ctrl. c e Ctrl V,  só faz noticia federal,  quando entrevista o governador, beija a mão dele, a coisa aqui é de da medo. O  incrível e que a globo é a única emissora que ainda ousa mostrar alguma coisa do governador, como estamos abandonado pelo midia. 

    • Saulin,

      duro é que do "Beto" (gostam de tratá-lo como íntimo) eles não falam nada, sendo que sabemos de todos seus malfeitos. Abraço

  • Texto delicioso.
    Rui, você

    Texto delicioso.

    Rui, você precisa começar a escrever fora de pauta e publicar em livros.

    Nunca imaginei que eles iriam escolher a terra do nosso valente e querido senador Requião para chocar o ovo da serpente.

    • Obrigado João Jorge,

      Acredito que no início de novembro lance o "Dominó de Botequim", livro com crônicas que escrevi aqui e no Terra Magazine, do Bob Fernandes. 

      O Requião está sendo realmente valente. Abraço

  • Texto excelente e não muito

    Texto excelente e não muito distante da realidade que tentam disseminar pelo país inteiro. De certa forma, estão conseguindo. Logo os paranaenses estarão saudando o chanceler Sérgio Moro com o clássico: "Heil, mein Führer". E o stf acovardado de joelhos diante dele.

  • PARANÁ

    Querem uma vingancinha? Ontem no Shoppinjg Cristal, em plena sede da Ku Kulx Klan (Curitiba), ao final do filme Aquarius, quase toda a platéia aplaudiu, gritando Fora Temer. Bom sinal, talvez em meu estado haja uma parte significativa de democratas. Espero, porque senão, o negócio e estocar alimento, se isolar ou fugir pro nordeste. O ar anda irrespirável, tanto familiar como socialmente, e moro aqui desde que nasci, mas penso em fugir pro exterior: Natal, João Pessoa ou Recife, terra dos antepassados, rsrsrsrs

    • Você é da família Alho? Pois

      Você é da família Alho? Pois desde que nasci no São Lucas é o mesmo,  é cumprimentar no elevador que a tigrada sua frio. Sempre fomos assim e meu avó me dizia: Paulo, Curitiba é o ... do mundo. Salvamo-nos vovô, eu e você Está foda!

    • Boa Oskar,

      você e o Paulo aí embaixo me dão certeza que muitos paranaenses não entregaram seus cérebros à transfixação. Mas pro exterior que você menciona eu também estou pensando viajar. Dizem que estão plantando alho por lá, viu Paulo? Abraços

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