As últimas semanas da ‘favelinha’ da Cracolândia, por João Wainer

Da Folha

Entre loiras e anjos

Regras para fumar, vocabulário próprio, barracos que davam status; a Folhaacompanhou as duas últimas semanas da ‘favelinha’ da cracolândia

JOÃO WAINER EDITOR DA “TV FOLHA”

Quatro usuários de crack sentados na sarjeta dividem um guarda-chuva na alameda Dino Bueno, no centro de São Paulo. Não chove, mas a função do guarda-chuva, diz um deles, é proteger o “anjo” que passa na rua.

Na linguagem dos usuários, “anjo” significa criança e, no código de conduta da região, é proibido fumar crack na frente de crianças.

“Quando uma criança passa, a gente grita: Olha o anjo’ e todo mundo tem que abaixar o cachimbo ou se esconder atrás do guarda-chuva”, conta um usuário que não quis se identificar.

A reportagem da Folha acompanhou as duas últimas semanas da “favela da cracolândia”, que foi removida pela prefeitura na última quarta-feira. Os moradores foram alocados em hotéis da região e passaram a integrar uma frente de trabalho em que ganham R$ 15 por dia.

FAMÍLIA CRACOLÂNDIA

“Quem tá na cracolândia já foi rejeitado pela família e pela sociedade porque usa crack. Aqui a família cracolândia’ te recebe de braços abertos. Fora uma rixa ou outra, todo mundo aqui é irmão no sofrimento, então a gente se ajuda”, diz Marcos Paulo dos Santos, 32, que vive na região há cerca de dois anos.

Na hierarquia da cracolândia, quem tinha um barraco na Dino Bueno era considerado elite. Agora vivendo em um quarto de hotel pago pela prefeitura, esse status deve continuar. As casinhas de madeira, papelão e lona mantinham alguma organização e privacidade, apesar da falta de banheiro.

A maioria dos usuários que circula na cracolândia vive na rua. Muitos têm família e passam temporadas na rua usando crack. Quando não aguentam mais as condições insalubres, voltam para casa para repor as energias até a hora de novamente mergulhar no vício.

Com o tempo, formam-se crostas de sujeira nos pés e nas mãos, que acabam funcionando como uma espécie de casca protetora.

Vivem de refeição em refeição, comem quando podem e nunca sabem quando vão comer de novo.

Quando há fartura de pedra, passam cinco dias acordados. Quando a “brisa” acaba, comem e dormem por dias. Desenvolveram anticorpos fortes para sobreviver à vida selvagem da rua. “Como comida do lixo sempre, bebo água de poça e não fico doente. O único problema é que a pedra estraga os dentes”, diz o morador de rua M.

NO GRITO

A comunicação na cracolândia é feita por meio de gritos. Alguém grita o que precisa e quem pode ajudar responde em meio à multidão de usuários. “Dou um trago” é um dos gritos mais ouvidos.

Quem não consegue completar os R$ 10 para comprar uma pedra inteira do traficante sai gritando “Dou um trago” até que algum usuário tope revender um terço ou metade de sua pedra por um valor inferior.

Na cracolândia, ouve-se o grito de “Olha a loira” sempre que uma viatura da polícia se aproxima.

“A primeira vez que ouvi alguém gritando Olha a loira’ fiquei procurando uma mulher de cabelo amarelo e quase fui presa”, diverte-se E., 23, enquanto fuma uma pedra na frente da câmera da TV Folha para provar que não se altera quando está “brisada” (sob efeito da droga).

“Vou dar um trago e vou ficar igualzinha eu estou agora, vocês vão ver”, diz ela, descumprindo a promessa no minuto seguinte.

Outro grito constante é o de “cigarreiro”, pessoa que vende cigarros avulsos. Quem é “cigarreiro” e procura clientes grita “eigth” “”marca de cigarro paraguaio barato.

Antes de fumar a pedra, os usuários “fazem a cinza”, que é encher o cachimbo com cinzas de cigarro para acomodar a pedra de crack. “Se depois de fumar, a parte que sobrou da pedra ficar branquinha, significa que a pedra é boa. Se ficar preta, é uma porcaria”, afirma um deles.

Apesar da desconfiança habitual, há um clima positivo entre os usuários de crack hoje. A proposta da prefeitura agradou, e muitos dizem que sairão do vício. Porém, em relação à epidemia de crack, a única certeza possível é a de que não existem certezas.

Redação

4 Comentários

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    1. Próxima missão: Prender os traficantes.

      Caro Zanchetta, a Prefeitura e suas Secretarias envolvidas na desocupação pacífica e dos dependentes de crack e invasores das ruas da Luz, cumpriram esta ação, sem usar a fôrça e nem pressão psicológica, apenas a boa e velha conversa, e a promessa de ajuda-los. Agora quanto aos traficantes, aí já envolve a Secretaria Estadual de Segurança Pública, que deve estudar como agir, contra estes que são os verdadeiros criminosos, e que estão escudados e invisíveis.

  1. Comovente o gesto de respeito

    Comovente o gesto de respeito dos usuários de crack para com as crianças. O vício não destruiu a humanidade deles. E parabéns à equipe de Haddad por tratar esses usuários como seres humanos. Essas pessoas que ja foram desacretitadas por amigos e família encontra quem acredita nelas. 

  2. homicidas

    ……………….   torço para o Hadad sair vitoriosos nessa empreitada.

    mas nao entendi porque nao efetivou a prisao dos vendedores de drogas na regiao, os verdadeiros homicidas dos indefesos.

    quem vende drogas – do varejista ao burgues importador, todos sao homicidas dos indefesos.

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