Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Lula, a crise do paradigma Gramsciano e da nossa democracia, por Ion de Andrade

Lula, a crise do paradigma Gramsciano e da nossa democracia

por Ion de Andrade

Uma das mais importantes contribuições teóricas de Antônio Gramsci foi a diferenciação que fez entre o Estado restrito e o Estado ampliado, que permitiu que concluísse que uma revolução explosiva, como a da Rússia, seria impossível no Ocidente.

Identificando-o na Rússia, denominou esse Estado restrito de “oriental”, caracterizando-o como possuidor de uma Sociedade Civil frágil ou “gelatinosa” sendo por isso governado muito mais pela força do que pelo consenso. E denominou de “ocidental” o Estado ampliado europeu, dotado de Sociedade Civil mais robusta, no qual o governo estava obrigado a exercer o poder pelo consenso respeitando o protagonismo e as pactuações com essa Sociedade Civil.

Nessa análise, os núcleos duros do Estado, nos dois casos, a Sociedade Política, se caracterizava por deter o monopólio do uso força e por ser o último recurso para a proteção do status quo. Gramsci explicitou, portanto, a ideia de que o Estado era sempre um arranjo entre repressão e hegemonia ou entre força e consenso.

Porém, ao tipificar de forma estanque o Estado restrito como oriental e o Estado ampliado como ocidental, Gramsci não teve tempo de enxergar que entre os dois havia na verdade uma “cronologia” e que o Estado restrito no capitalismo era a véspera do Estado ampliado. A história mostrou, posteriormente a ele, que o Estado sob o capitalismo evoluiu em diversos países de uma fase inferior restrita e autoritária (o Estado burguês clássico) para uma fase superior e ampliada, potencialmente democrática a depender das lutas (o dito Estado democrático de direito).

Essa “cronologia”, aliás, permite vislumbrar, o que é muito interessante, uma estranha simetria invertida entre a evolução interna que se constata no capitalismo contemporâneo (que vai do uso da força para o consenso) e a que ocorreu no modo de produção asiático quando a humanidade entrava na sociedade de classes (que evoluiu da democracia para o despotismo). No “Anti-Dühring” Engels vê no modo de produção asiático uma fase inferior democrática, ainda não classista, a que denomina de “Comunidade” ou Gemeinde e uma fase superior despótica, pela primeira vez, classista. Na saída da sociedade de classes, entendida essa “cronologia”, emerge no capitalismo o fenômeno simetricamente oposto.

Seria exigir de Gramsci dotes de adivinho se quiséssemos que fizesse mais do que a caracterização tipológica do Estado restrito como oriental e do ampliado como ocidental, adentrando por uma caracterização histórico-cronológica, capaz de mostrar que um surgia do outro. Embora frustrante, isso era o máximo a que podia ter chegado naqueles anos 30 do século XX. Entretanto, sedimentada a tipologia em lugar da historicidade, não tivemos como perceber, até os nossos dias, de que a força política que move historicamente o Estado restrito autoritário à condição de um Estado ampliado potencialmente democrático no capitalismo não é outra senão o proletariado.

A teoria insuficiente nos embotou a percepção de que em meio às revoluções libertárias que o proletariado fazia contra Estados restritos, como na Rússia ou na China, desenhava também, com muita luta e sofrimentos, no interior do próprio mundo capitalista, um processo de ampliação de Estados restritos e autoritários obrigando-os a curvar-se a uma liturgia democrática e ao exercício obrigatório de um poder baseado no consenso. Esse exercício do poder pelo consenso é, aliás, como sabemos, bastante inadaptado e incômodo à dita liberdade burguesa que tudo quer e tudo pode. Essa democratização/ampliação do Estado ocorreu na Itália e na Alemanha do pós-guerra e em Portugal, Espanha e América Latina no pós ditaduras, com diferentes profundidades a depender da maturidade política e força do proletariado em cada uma desses países.

Século das revoluções, o século XX foi atravessado, portanto, por dois modelos de revolução proletária simultâneos, as libertárias com a tomada de Estados restritos e as democráticas com a sua ampliação.

As revoluções libertárias, produziram Estados restritos, as democracias populares, que permaneceram devedoras de uma legitimidade existencial aos Estados burgueses clássicos e autoritários que elas combateram e frente aos quais figuravam como contrário dialético.

A evolução interna dos Estados capitalistas para a sua forma superior ampliada, entretanto, produziu um efeito colateral negativo sobre as democracias populares: a perda progressiva da sua legitimidade histórica, muito dependente da memória ou da existência daqueles Estados burgueses clássicos brutais. Esses Estados, entretanto, pela metamorfose interna imposta pelo próprio proletariado de cada país, estavam sendo ativamente convertidos à sua forma superior ampliada numa ação que fundou Estados de direito. O fim do primado daquele Estado burguês primitivo que funcionava estritamente como o comitê gestor dos interesses do capital tornou historicamente insustentáveis as democracias populares.

A tomada do poder nas revoluções libertárias e anticapitalistas, revoluções ativas que foram, sempre foi obra autoral explícita e ostensiva de partidos identificados com o proletariado. Nas revoluções democráticas há uma autoria política diluída numa ampla frente, uma autoria que naturalmente é compartilhada entre o proletariado e segmentos da burguesia que romperam com a ordem autoritária anterior e aceitaram compor uma nova ordem democrática onde figuram como forças que limitam o alcance das conquistas populares, fenômeno que dá ao Estado de direito uma dimensão de Estado pacto. A novidade nas transições democráticas contemporâneas é a figura de um protagonista novo: os Movimentos Sociais.

Mas quem é esse proletariado contemporâneo que parece emergir com tanta força ao desenhar a institucionalidade do século XX? Quem é, se já o acreditávamos declinante considerando a inegável diminuição numérica do operariado fabril, tido por Marx como o seu núcleo duro? Que relações estabelece esse proletariado com os Movimentos Sociais?

Para entender o alcance disto, é preciso separar o que é estrutural do que é superestrutural no sentido de que, depois que o proletariado consolidou a sua visão de mundo, uma assimilação ao proletariado em termos de ação política é viável e factível a partir de segmentos originariamente não proletários. Isso ocorreu em diversas revoluções socialistas onde o campesinato realizou revoluções proletárias, ajudado por uma esquerda urbana; situações em que o proletariado propriamente dito era numericamente minúsculo.

De fato, esse grande leque de intervenções da cidadania que milita nos diversos movimentos sociais temáticos (Negros, Sem Terra, Sem Teto, culturais diversos, Ecologistas autênticos, Feministas, etc.) só pode subsistir e sustentar-se porque exprime, através de sua militância, fragmentos de uma ideologia comum que é a visão histórica do proletariado, sem a qual nada disso teria viabilidade política, como não teve no passado. O problema para compreender isso vem do fato de que Lenin, indo além do que Marx jamais aspirou, reduziu a “ideologia do proletariado” ao marxismo tornando o caleidoscópio dos movimentos sociais algo que parece estranho à pureza do dito marxismo-leninismo.  

A cidadania atuante nos movimentos sociais, que assegura e expande direitos e garantias é, portanto, de fato, o próprio proletariado tal como se exprime nas lutas superestruturais reais, ainda que não forçosamente por origem social, nem por seguir o marxismo. Então, essa cidadania é a infantaria do proletariado na Sociedade Civil.

Isso significa que o papel democratizador e ampliador do Estado no capitalismo tem nos movimentos sociais cidadãos a sua principal alavanca e que a luta pela hegemonia na Sociedade Civil se dá pela democratização do Estado, pressionando-o para que passe a respeitar direitos, prerrogativas e garantias arrancados à fórceps através das lutas sociais.

Desde Marx o conceito de revolução ora diz respeito ao fenômeno catártico da tomada do poder, ora diz respeito ao processo capilar de metamorfose social que vai moldando o novo no ventre da sociedade velha pela ação da classe social que detém a iniciativa estratégica e pelo incremento das forças produtivas. A burguesia, por exemplo, avançou capilarmente em toda a Europa até a revolução francesa. É o que Gramsci denomina de Revolução Passiva. É natural que os avanços capilares da burguesia, por exemplo, na liberalização do comércio entre feudos na idade média, não tenham sido acompanhados de uma consciência clara do significado histórico daqueles feitos.

De que forma tudo isso altera o modelo de transição ao socialismo como previsto por Gramsci?

A tipificação estanque do Estado ampliado não permitiu a percepção de que a continuidade da sua ampliação/democratização é que era (e é) o grande vetor força da atuação do proletariado na Sociedade Civil. Em lugar disto, fomos levados a uma luta pela hegemonia numérica numa Sociedade Civil também entendida como estanque. Essa luta vem sendo travada unicamente como uma contínua tentativa de ocupar espaços e de eleger parlamentares que, apesar de sempre minoritários e derrotados, entendemos (pelo esforço hercúleo de elegê-los) serem protagonistas mais importantes que os movimentos sociais (a série B da política). Em lugar da guerra de posição, proposta por Gramsci, essa estratégia parece um transplante da guerra de movimento, tipicamente leninista, para o interior da Sociedade Civil. Cultivamos a ilusão de que em algum momento, considerando as conquistas físicas de associações, sindicatos, prefeituras, além de cargos públicos em instituições, galgaremos a nossa tão almejada hegemonia sobre os Poderes Constituídos com uma maioria parlamentar capaz de assegurar a virada no jogo. Eis a ilusão não explicitada.

Essa estratégia nunca foi proposta por Gramsci, mas o conjunto da esquerda, e os italianos primeiro, chegou a ela por suas naturalmente perdoáveis lacunas.

No Brasil acreditamos ter, na conjuntura, uma carta na manga para esse jogo, uma carta rara e improvável: a possibilidade de assumirmos novamente o Executivo por termos, e temos, um líder desses que só aparecem uma vez na história: Lula.

Pode ser. As coisas não são lineares. Mas o que é que Lula deve fazer para tornar esse processo democrático irreversível? Essa é que é a maior questão em jogo e essa é a questão para o debate.

 

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

11 Comentários

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  1. Puxa!

    O velho estratagema dos grandes divisores acoplado a um esquema teleológico!!!…

    Há cento e cinquenta anos, o pesamento sociológico conhece esse tipo de doutrina pelo nome de “evolucionismo social”.

    Há que se acrescentar um detalhe: Há 90 anos que nenhum intelectual sério leva isso a sério, tamanhos os equívocos projetivos de que isso lança mão.

    Esse tipo de modelo equivale a querer colocar o mundo em uma camisa-de-força tipológica.

    Isso é tudo o que o Ion dispõe para defender a “redenção histórica” do proletariado?… É muito mecanicismo mental! É só um bricabraque largamente desconexo.

    1. puxa….

      A Anistia de 1979, trouxe isto  de volta ao país? Este é o produto da Redemocratização e Constituição Cidadã? E ainda estamos procurando desculpas para estes 40 anos? Jogar a culpa no Período Militar, não dá mais. Leio as ofertas que esta Esquerdopatia que tomou como cancro  o Estado Brasileiro nestas décadas todas tem oferecido. Dória ou Alckmin, crias de Mario Covas, tentando reeditar, mesmo que de forma envergonhada e acobertada, o período FHC e suas trágicas Privatarias. Do outro lado,a novidade do Republicanismo Tupiniquim, um novo Caudillho, um novo Pai dos Pobres, um recém empossado Salvador Lula da Silva da Pátria. Um verdadeiro Filho da Pátria. Ou algum Lobo Solitário, que logicamente governará somente com seu descompromisso e desapego ao Poder. 1979, lembro das pessoas sendo recebidas no Aeroporto, voltando do Exílio. Alternância no Poder. O Estado não poderia jamais novamente ser dividido em Capitanias Hereditárias. Política não seria Profissão. Nepotismo era um crime de lesa-pátria a ser extinto. Você concorda com os resultados, Bruno Covas?     

  2. é impressionante / “A geração de petistas mimados” – Rudá Ricci

    enche linguiça. Artifício manjado mas sempre eficiente quando usa termos e jargões e autores de esquerda num espaço onde há uma parcela com alienação politizada e idólatra. E a idolatria, agindo mais o coração do que a razão, é um passo que vem sendo dado para a polarização crescente (que interessa mais à reação, à direita) e os encastelamentos sectários portanto míopes. O artigo do link é, em parte, sobre a religiosiadade num partido político, mas muito mais.

    http://www.rudaricci.com.br/

     

  3. Mas o que é que Lula deve fazer para tornar…

    O que nós devemos fazer para recolocar, fincar, Lula, que é bandeira, no seu devido e legítimo lugar?

    Lula é o Brasil, é o aparelho, a mula, o cavalo encantado pelo espírito, pela alma brasileira.

    Luis Inácio morreu há muito, não é mais gente

  4. Qual a Saida para o Futuro?

    Da parte teorica não discuto. Os grandes pensadores da esquerda citados, faz muitos anos que não estão.

    Mais temos que pensar no final : Temos uma carta na manga? O que devemos fazer? 

    Temos Lula mais existem muitas pedras no caminho. Não podemos duvidar que entre Moro e Gebran farão tudo o possivel pra que Lula não possa concorrer as eleições, Dirceu fique anos presso, etc.

    Todos os que queiram democracia, teremos que lutar para acabar com a Lavajato e seu proposito de liquidar o PT e a econmia do pais.

    Apesar da corrupção do Poder Legislativo, e o unico capaz de gerar os mecanismos para isso, nem que se inocentem Temer e o seu quadrilhão.A democracia plena, vale a pena. Não vejo outra saida.

    Veremos como muda o panorama com a nova Procuradora Geral, parece que algunas mudanças estão em pauta, mais talvez não seja suficiente

     

  5. O GGN diante de “revolucionários”: muita cautela

    Revendo documentários reprisados pelo canal CURTA! me baixou não sei se paranóia:A cuidadora de minha mãe me disse q no bairro onde ela mora está dividido Bolsonaro / Lula (acho q sempre sou imparcial nessas pesquisas soltas individuais q gosto de fazer em ônibus,táxis, pessoas “do povo”.Nada científico,assim como julgar os autos de processos sem lê-los,e sem ter capacidade de entrar nas polêmicas provas X não provas. Ora, o GGN pode cair no ridículo e pode servir de um dos muitos pretextos pra um certo militar (e a parte saudosa,fascista) achar e divulgar que há setores furiosos, infla-mados aqui,ali(reproduzi longa postagem de um cara contra democracia e apregando ditadura do proletariado,e blá-blá-blá).

      1. Bostonaro e militares são parte do problema, não a solução

        De acordo com um velho comentarista do saudos CMI:

        “Em qualquer parte do mundo, a instituição militar não possui, unilateralmete, condições de tomar o poder sem o devido apoio financeiro de grupos da classe dominantes nacionais e internacionais, sustentando a logística e a estrutura de mobilidade. Portanto, a época favorável de interesses para esses fins encerrou-se em 1985, por determinação e participação desse ciclo histórico dos EUA. Agora não adianta chorar, os brasileiros estão apanhando e aprendendo, somos a 1° geração de fato, a viver a plena democracia com corrupção e tudo, são heranças culturais que sofrerão transformações ao longo dos anos.
        Primeiro aguardemos o satanás levar essa turma de velhacos ainda vivos em alguns segmentos do país, depois as novas gerações continuarão descontaminando, limpando e mudando a cultura negativa desse país, vamos chegar lá. A minha geração não teve o privilégio de receber um país menos ruim, coube a nós começarmos o processo lento e gradual contra essa cultura infeliz, principalmete vigiar canalhas como você que jamais voltarão a ser financiado pelo dinheiro revolucionário de interesses alheios aos brasileiros.”

        Portanto, não tenha medo do Bolsonaro nem saudade dos militares, nem tenha raiva do Lula. Se você quer odiar alguém, odeia os agentes do capital.

    1. Seria eu, Mestre, q estaria pregando a ditadura do proletariado?

      Seria o comentário abaixo o motivo da sua paranóia militarista, Sr. Nickname?

      Foda-se a Democracia! Viva a Ditadura do Proletariado

      A democracia é uma merda e tem gente tentando enfeitar a merda. Advinhem o nome do imbecil: Nickname

       

      “A democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos – tal é a democracia da sociedade capitalista. Se observarmos mais de perto o seu mecanismo, só veremos, sempre e por toda parte, nos “menores” (presentemente os menores) detalhes da legislação eleitoral (censo domiciliário, exclusão das mulheres, etc.), assim como no funcionamento das assembléias representativas, nos obstáculos de fato ao direito de reunião (os edifícios públicos não são para os “maltrapilhos”), na estrutura puramente capitalista da imprensa diária, etc., etc., só veremos restrições ao princípio democrático. Essas. limitações, exceções, exclusões e obstáculos para os pobres, parecem insignificantes, principalmente para aqueles que nunca conheceram a necessidade e que nunca conviveram com as classes oprimidas nem .conheceram de perto a sua vida (e nesse caso estão os nove décimos, senão os noventa e nove centésimos dos publicistas e dos políticos burgueses); mas, totalizadas, essas restrições eliminam os pobres da política e da participação ativa na, democracia. Marx percebeu perfeitamente esse traço essencial da democracia capitalista, ao dizer, na sua análise da experiência da Comuna: Os oprimidos são autorizados, uma vez cada três ou seis anos, a decidir qual, entre os membros da classe dominante, será o que, no parlamento, os representará e esmagará!

      Mas, a passagem dessa democracia capitalista, inevitavelmente mesquinha, que exclui sorrateiramente os pobres e, por conseqüência, é hipócrita e mentirosa, “para uma democracia cada vez mais perfeita”, não se opera tão simples nem tão comodamente como o imaginam os professores liberais e os oportunistas pequeno-burgueses. Não; o progresso, isto é, a evolução para o comunismo, se opera através da ditadura do proletariado, e não pode ser de outro modo, pois não há outro meio que a ditadura, outro agente que o proletariado para quebrar a resistência dos capitalistas exploradores.

      Mas a ditadura do proletariado, isto é, a organização de vanguarda dos oprimidos em classe dominante para o esmagamento dos opressores, não pode limitar-se, pura e simplesmente, a um alargamento da democracia. Ao mesmo tempo que produz uma considerável ampliação da democracia, que se torna pela primeira vez a democracia dos pobres, a do povo e não mais apenas a da gente rica, a ditadura do proletariado traz uma série de restrições à liberdade dos opressores, dos exploradores, dos capitalistas. Devemos reprimir-lhes a atividade para libertar a humanidade da escravidão assalariada, devemos quebrar a sua resistência pela força; ora, é claro que onde há esmagamento, onde há violência, não há liberdade, não há democracia.

      Engels o disse perfeitamente, na sua carta a Bebel, ao escrever, como o leitor se recorda:

      “O proletariado usa o Estado, não no interesse da liberdade, mas sim para triunfar sobre o adversário e, desde que se possa falar de liberdade, o Estado como tal deixará de existir.

      A democracia para a imensa maioria do povo e a repressão pela força da atividade dos exploradores, dos opressores do povo, por outras palavras, a sua exclusão da democracia – eis a transformação que sofre a democracia no período de transição do capitalismo ao comunismo.

      Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, só então é que “o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade”. Só então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma. Só então a democracia começará a definhar – pela simples circunstância de que, desembaraçados da escravidão capitalista, dos horrores, da selvajeria, da insânia, da ignomínia sem-nome da exploração capitalista, os indivíduos se habituarão pouco a pouco a observar as regras elementares da vida social, de todos conhecidas e repetidas, desde milênios, em todos os mandamentos, a observá-las sem violência, sem constrangimento, sem subordinação, sem esse aparelho especial de coação que se chama o Estado.”

      Lenin, Estado e Revolução.

       

      1. Mas não foi isso que aconteceu

        Mas nos locais onde se instalou o comunismo, o que se viu não foi o definhamento do Estado, mas o seu agigantamento, à medida em que assumia funções que no regime capitalista são parte da dinâmica da sociedade civil.

        Uma premissa que não se cumpre põe abaixo todo o edifício de suposições que se ergueu sobre ela.

  6. Ante o vácuo da política, o que fazer?

    Consolidado o golpe contra Dilma, a indagação que tem incomodado profundamente desde então é: como as coisas se desenvolverão no quadro político brasileiro, com ou sem Lula retornando à presidência? Está claro que o poder estabelecido não aceitará alterações relevantes na sociedade nem mesmo através do gradualismo, ou seja, dentro das normas democráticas concernentes ao Pacto Social com as quais ele próprio (o poder) aquiesceu. Isso já foi demonstrado por meio do falso impeachment, que conferiu insegurança ao processo democrático. Não vale mais a escolha povo, que fica subordinada à concordância do poder real.

    A solução mais emergente para superar o entrave, como já deixei implícito em texto de minha autoria, seria a guerra civil. Dado que o poder recusa a mediação da política, resta abandonar essa via pacífica e partir para o conflito. Todavia, o custo em termos de sofrimento humano é imprevisível, principalmente num quadro de normatividade criado, a partir de 2001, para reduzir os direitos e liberdades individuais em função da disseminação da falsa bandeira de segurança contra o terrorismo. Hoje, coletivos organizados politicamente estão sendo criminalizados vigorosamente em torno do mundo. Tenta-se enquadrar todo e qualquer movimento popular como “terrorista”. Sendo assim, há de ser ponderado, no processo de escolha do meio de luta, se as condições materiais de existência da maioria da população são de tal ordem indignas que justificam a tomada do poder pelo proletariado independentemente do preço a pagar.

    Além disso, por paradoxal que possa parecer, a implementação das redes sociais como mecanismo de troca de informações e disseminação de ideias de forma ultrarrápida parece ter caminhado na direção contrária da que se supunha seguiria, conduzido os indivíduos a um processo de atomização acelerado. O processo foi facilitado, propositalmente, pelo mecanismo algorítimico utilizado na internet para a escolha dos temas que aparecem nas telas de cada um. Com cada um entricheirado em suas próprias posições ideológicas, recebendo basicamente as informações com as quais concorda, a aglutinação da população em torno de um projeto audacioso e extremamente perigoso, como é o de enfrentar a violência estrutural criada para estagnar o modelo de hierarquização da sociedade, fica efetivamente quase inviabilizado. Isso, aliado ao processo de enfraquecimento das representações sindicais e da fragilidade dos estados nacionais frente à mobilidade do capital criado pela globalização, gera uma certa incredulidade na capacidade de modificação da estrutura de poder através da mobilização popular.

    Ao que parece, um levante popular na contemporaneidade exige o surgimento de condições de indignidade existencial de extrema magnitude, não bastando o mero testemunho da pobreza e da miséria, pois são percebidas, ainda que erradamente, como transitórias e circunstanciais a um “programa econômico de governo” e não como o resultado inevitável do sistema em si. Nisso, o papel da grande imprensa é fundamental para defender os pontos de interesse do poder real. Num governo incômodo, uma taxa de crescimento de três por cento será alardeada como insuficiente em vista da grandeza da dívida pública. Num governo mais simpático ao poder, um crescimento de dois décimos percentuais será comemorado, mesmo ante uma dívida pública muito maior do que aquela que se dizia iria quebrar o país.

    Se a política se revela ineficiente como meio de alteração gradativa do quadro do poder e povo está desmobilizado para conquistar à força a fatia a que faz jus desse latifúndio, como resolver essa equação? A sugestão de unir as diversas frentes de afirmação (gênero, orientação, etnia, etc) em um único projeto de mitigação das desigualdades provocadas pelo modelo de hierarquização social é bastante interessante, mas esbarra na constatação de que cada um desses coletivos é formado por múltiplas orientações políticas individuais, tratando-se de missão bastante difícil lhes conferir coesão.

    Resta a cada um o trabalho de Sísifo de conscientizar, conscientizar e conscientizar, tarefa difícil por envolver a entrada na profunda trincheira da opinião política do outro. É um trabalho árduo e certamente será demorado. Após o impeachment de Dilma e mesmo que, surpreendentemente, Lula seja reeleito em 2018, as circunstâncias do Brasil não permitem crer em um tempo inferior a dez anos para a cura das feridas abertas pelo ataque à democracia.

    Mas, há um trabalho a ser feito. Que o façamos, pois.

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