Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Comunicação ‘alt-right’ cria dissonâncias cognitivas para aloprar cenário político, por Wilson Ferreira

O “gênio” é “aloprar” o cenário político. Criar uma profusão de acontecimentos, reviravoltas, desmentidos, vazamentos, delações, “caneladas”

Comunicação ‘alt-right’ cria dissonâncias cognitivas para aloprar cenário político

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

O escândalo das joias das arábias. Um militar ajudante de ordens operador financeiro e vendedor de muambas, além de não saber deletar arquivos do celular. Um hacker contratado para um trabalho inútil: hackear urnas eletrônicas sem ligação com Internet. O presidente que atiça o golpe com empresários no WhatsApp. Bem-vindos ao primeiro golpe de Estado anunciado à luz do dia na História! O “gênio” da comunicação alt-right é “aloprar” o cenário político. Criar uma profusão de acontecimentos, reviravoltas, desmentidos, vazamentos, delações, “caneladas”. Em síntese, criar uma atmosfera de dissonância cognitiva. Acelerar o tempo político para coincidir com o tempo midiático da velocidade e instantaneidade com não-acontecimentos que simulam suposta tentativa de golpe para criar dissonâncias cognitivas e ocultar o verdadeiro golpe militar híbrido que já aconteceu. Esconder os rastros das FFAA e fazer a esquerda reagir com o fígado.

No filme Entrevista com o Vampiro (1994) há uma sequência em que o vampiro Louis (Brad Pitt), junto com a vampira infante Claudia (Kirsten Dunst), viajam a Paris em busca de seus semelhantes. Lá encontram uma companhia teatral formada exclusivamente por vampiros.

Do balcão do teatro, Louis e Claudia assistem ao espetáculo e fazem um comentário críptico sobre a peça teatral: “vampiros fingindo que são humanos fingindo que são vampiros”. E Claudia completa: “Que vanguarda!”.

A ironia de Louis e Claudia referia-se não mais a atores tradicionais que representavam, mas imitadores que simulavam uma representação sobre outra representação – fingir que é um ator representando um personagem, um vampiro, o que é a verdade.

Essa sequência é uma analogia perfeita para a irônica estratégia de comunicação alt-right que nesse momento assistimos ao vivo, em todas as telas: o escândalo das joias e rolex das arábias, presentes presidenciais apropriados por Bolsonaro e vendidos nos EUA pelo seu ajudante de ordens, o militar Mauro Cid. Num flagrante do uso do Estado para enriquecimento ilícito.

E a volta à cena do hacker de Araraquara, Walter Delgatti, com a inacreditável história do serviço pago para invadir urnas eletrônicas que não possuem conexão com a Internet. E criar um código fonte fake, sem ter acesso à sala em que estava o sistema das urnas.

No momento em que a CPI dos 8 de janeiro começava a se aproximar de membros da cúpula militar que ocupavam postos de destaque no governo Bolsonaro, foi posta em ação a indefectível estratégia alt-right que, genericamente, podemos chamar de “aloprar o cenário político”. 

E, como sempre, com o prestativo auxílio da grande mídia. E a esperada reação pavloviana da esquerda, sempre pensando com fígado.

Para entendermos as conexões entre o filme Entrevista com o Vampiro com o “alopramento” do cenário político (o “gênio” da estratégia de comunicação da direita alternativa) temos que partir de alguns pressupostos:

(a) O tão temido fantasma do golpe militar, invocado por todo o governo Bolsonaro (“a corda está esticando!”, ameaçava), cujo ápice foram os ataques em Brasília em 08/01, na verdade nunca passou de uma fantasia de Halloween – na verdade, a ocupação militar do Estado já aconteceu e ninguém percebeu, porque foi um golpe militar híbrido. A realização da promessa de Bolsonaro aos formandos da Aman em 2014, prometendo que seria o presidente em 2018 para “endireitar” o Brasil;

(b) O fantasma do golpe e a “questão militar” criam uma paralisia estratégica na esquerda, sempre temerosa em “esticar a corda” de um suposto “núcleo golpista” das FA, supostamente seduzidos pelo aventureiro Bolsonaro. Cheia de dedos e pisando em ovos, colocam sua esperança na judicialização – que o STF defenda a democracia, colocando os “golpistas” na cadeia;

(c) A operação psicológica militar (sempre partindo da ideia de que a guerra é a arte do engano) consiste em apagar as suas digitais desse golpe híbrido, criando uma estratégia de comunicação diversionista – criar um teatro para as mídias (jornalistas e “colonistas”) cujo script consiste em contar a história de aloprados que tentaram dar um golpe. Para nossa sorte, tão aloprados e incompetentes que o plano não deu certo. Reforçando o velho estereótipo, desde a ditadura militar (1964-1985), de que os militares não passam de “gorilas”, truculentos e burros.

Só que, dessa vez, o estereótipo cai como uma luva na atual estratégia alt-right de comunicação militar. E aí entra a chave de interpretação inspirada na linha de diálogo do filme Entrevista com o Vampiro.

Políticos e pequenos escroques

O que notabiliza a comunicação alt-right é como ela escolhe como militantes os não-políticos (ou aqueles que fingem ser, através da mis-en-scène na mídia, como Bolsonaro). Mas, principalmente, pequenos escroques: zé-ninguéns, subcelebridades, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundem militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte.

São personagens vindos do Brasil profundo, do anonimato de corporações ou de instituições militares, religiosas etc. Em geral, frustrados e ressentidos por questões pessoais, utilizam a política como significante da sua dor psíquica.

Na guerra híbrida brasileira podemos perceber duas gerações de pequenos escroques que se sucederam.

Na primeira fase (na conquista do Estado através do golpe militar híbrido), espécimes como Ju Isen (modelo anônima, famosa por tirar a roupa em uma das manifestações Anti-Dilma na Avenida Paulista em São Paulo, segurando cartazes anti-PT ); Junior de França (passando-se por jornalista organizava acampamentos de patriotas em frente à Fiesp, acusado de estelionato); o procurador Douglas Kirchner que em parceria com a revista Época fez vazamento de denúncias contra Lula e fiel de uma seita denunciada por explorar crianças e adolescentes, acusado de manter a esposa em cárcere privado no interior de uma das igrejas da seita; Janaína Paschoal, jurista obscura que foi colocada na ribalta ao gritar ensandecida num ato de apoio ao impeachment de Dilma: “Acabou a República da Cobra!”. 

Ex-anônimos que de repente ganharam visibilidade midiática para engrossar o caldo que normalizou o golpe híbrido.

E a segunda fase, com novos escroques que, dessa vez, ganharam mais do que os 15 minutos de fama: tornaram-se deputados e protagonistas das “alopragens políticas” (mais à frente detalharemos esse conceito) em CPIs e inquéritos do STF e PF. 

Alguns exemplos: deputada Carla Zambelli (de consultora de Negócios da KPMG pulou para as ruas ao lado de Sara Winter (outro espécime da mesma cepa) para integrar grupo feminista ucraniano Femen e movimentos de extrema-direita Anti-Dilma; Walter Delgatti, o “hacker de Araraquara”, com histórico de antecedentes criminais de 2013 a 2015 envolvendo desvios de dinheiro de contas bancárias e estelionato; Frederick Wassef, o “advogado de Bolsonaro” que em 2014, internado num hospital, viu o discurso de Bolsonaro na TV e “ houve identificação imediata como discurso pró-Brasil, pró-família”; a “Doutora do Pix” (advogada que requebra ao som funk do “Sentadão” no Tik Tok), alvo de busca e apreensão da PF em Santa Catarina por usar sua conta bancária para realizar pagamentos via Pix para financiamento da caravana dos “patriotas” golpistas; a dona “Fátima de Tubarão” (SC), condenada por tráfego de drogas em 2014, aos 67 anos, presa na Operação Lesa Pátria, viu o STF torna-la ré por participação nos atos golpistas do 08/01; senador Marcos do Val: após os minutos de fama em 2008 no Programa do Jô, da Globo, virou palestrante sobre segurança pública e instrutor na preparação de atores para cenas de ação como Tropa de Elite 2.

“Parece coisa de novela”

“Vampiros fingindo que são humanos fingindo que são vampiros”, dizia Louis em Entrevista com o Vampiro. Na comunicação alt-right também temos também essa lógica meta: não políticos que fingem ser políticos que fingem que mentem. Ou numa outra formulação, mentirosos que fingem que são políticos que fingem que mentem. 

Como não-políticos, são completamente diferentes da cena política clássica, a qual sempre foi tributária da chamada cena italiana do teatro (palco e plateia) onde o poder era colocado em cena – o político que representa um personagem que usa da retórica para mentir.

O ponto crucial desses pequenos escroques é a canastrice: eles não mentem, mas fingem que mentem: suas atuações cênicas são over, propositalmente exageradas e estereotipadas. Num palco político tradicional, estariam mais para a ópera bufa e comédia do que para o drama ou tragédia, pathos tradicional da política.

Marcos do Val com bottons da SWAT na lapela do paletó ou trajando camisetas com um enorme selo nacional estampado nas entrevistas para a TV; Zambelli perseguindo com uma arma de fogo um jornalista pelas ruas de bairro nobre de São Paulo; Wassef que se deixa fotografar comprando um novo celular no mesmo shopping onde foi alvo de um mandado de busca de quatro aparelhos telefônicos.

Tal como uma comédia de erros ao estilo Fargo dos Irmãos Cohen, são estabanados, desajeitados – como o contato de Zambelli e seus assessores com Delgatti para um serviço sem pé nem cabeça: hackear urnas eletrônicas que não possuem conexão com a Internet.

Ou o ajudante de ordens do presidente que “esquece” de apagar 17 mil e-mails da lixeira do celular.

Zambelli que se interna num hospital de Brasília para “tratar de diverticulite” horas antes do depoimento do “hacker de Araraquara” na CPI.

A “Doutora Pix” que requebra ao som do funk na rede social enquanto usa conta bancária pessoal para financiar um golpe de Estado. Isso sem falar nas ordens de Bolsonaro em grupos de WhatsApp de empresários que discutiam a possibilidade de golpe de Estado.

São tantos áudios vazados, e-mails e prints de mensagens de WhatsApp que até os próprios jornalistas corporativos (peças-chaves para a normalização da canastrice) confessam a estupefação em atos falhos: “é a primeira vez que vejo uma tentativa de golpe de Estado feita à luz do dia” (Otávio Guedes, no Studio I); “Parece coisa de novela” (Carla Bonfim, Conexão Globo News); “Parece roteiro de filme da Netflix” (Dan Stulbach, no “Fim de Expediente” da rádio CBN); “Tudo muito bizarro!” (Miriam Leitão, Conexão Globo News); “Cada mergulho é um flash” (César Tralli na Edição das 18h, numa alusão à ficção da novela O Clone)

O caso Mauro Cid é emblemático: preso preventivamente em função das falsificações no cartão de vacina do ex-chefe e de sua filha, vinha se mantendo em silêncio, mas, de acordo com seu advogado, agora estaria disposto a falar. Para depois voltar atrás… e “esquecer” de apagar material sensível da lixeira do celular…

Soma-se a tudo isso o vídeo do Estadão com um Bolsonaro “humildão”, supostamente encontrado numa padaria em Abadiânia tomando pingado e comendo pão na chapa, falando baixo, respondendo repeitosamente a todas as perguntas feitas por dois repórteres. Um vídeo criado, plantado e calculadamente tosco. Como aquele vídeo do então presidente se chafurdando no frango e farofa. 

Todos fingem ser mentirosos (pela sua estudada canastrice e mise-en-scène estereotipada) que fingem que mentem (falam coisas que, sabem, serão desmentidas por posteriores “vazamentos”, plot twists, desmentidos etc.).

Continue lendo no Cinegnose.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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